Levantamento inédito mostra aumento de 70% nos despejos no Brasil

Especialistas explicam motivações que provocam avalanche de remoções forçadas no último ano. Obras públicas promovem ondas de despejos e coloca governos no centro do debate

O acampamento Nova Palestina na beira da represa Guarapiranga pressiona o governo por moradia digna. Foto: Marcelo Camargo/ABr

Um levantamento inédito divulgado nesta quarta-feira (14) pela Campanha Nacional Despejo Zero trouxe à tona uma alarmante realidade no Brasil: mais de 1,5 milhão de pessoas foram vítimas de despejos ou remoções forçadas entre outubro de 2022 e julho de 2024. Esse número representa um aumento de 70% em comparação a outubro de 2022, quando 898.916 brasileiros haviam enfrentado essa situação.

O mapeamento reúne casos coletivos de remoção forçada de pessoas e de comunidades inteiras, que foram expulsas de seus locais de moradia. Isso inclui não só os casos judicializados, mas também processos administrativos promovidos pelo poder público.

Segundo a Campanha Nacional Despejo Zero – articulação nacional composta por 175 organizações que atuam na luta pelo direito à vida na cidade e no campo e que fez o mapeamento de forma coletiva – esse número pode ser ainda maior já que a pesquisa não considera a população em situação de rua e pessoas que estão ameaçadas por desastres socioambientais.

Causas e contexto do crescimento dos despejos

O advogado Marcelo Leão, conselheiro do IBDU

Marcelo Leão, conselheiro regional sul do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) e vice-presidente do Instituto Gentes de Direitos, observa a correlação entre a crise econômica e o aumento das remoções forçadas. “O país ainda está doente da pandemia, e esse estresse coletivo não é trabalhado de forma adequada na economia. A reforma trabalhista piorou as condições salariais e de emprego, o que impacta diretamente o poder aquisitivo das classes baixas”, explica ele, em entrevista ao Portal Vermelho. Com o aumento da exploração dos trabalhadores, muitas famílias já não conseguem arcar com os custos de moradia, levando ao aumento dos despejos.

De acordo com o presidente da Confederação Nacional das Associações de Moradores (Conam), Getúlio Vargas Jr., a Campanha Despejo Zero nasceu justamente em resposta ao agravamento da crise econômica e social desencadeada pela pandemia de covid-19, que exacerbou a vulnerabilidade das famílias de baixa renda.

Getúlio Vargas Jr

“Detectamos que a pandemia estava acelerando o número de despejos em todo o Brasil, e percebemos a necessidade de defender o direito à moradia para todos, especialmente em um momento em que a recomendação era ficar em casa”, afirmou Vargas Jr.

A campanha resultou em várias ações importantes, incluindo a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828, que suspendeu temporariamente milhares de despejos em todo o país. “A ADPF 828 junto ao STF suspendeu despejos que teriam afetado mais de um milhão de pessoas, fruto de prorrogações e mobilizações até a decisão final do ministro Barroso”, destacou Vargas Jr.

A crise habitacional brasileira tem classe, gênero e raça, revelou o levantamento. A grande maioria dos afetados é formada por pessoas que se autodeclaram pretas e pardas (66,3% do total), mulheres (62,6%) e que ganham até dois salários mínimos (74,5%). Do total de vítimas dessas remoções e despejos, cerca de 267 mil são crianças e mais de 262 mil, pessoas idosas. 

“O levantamento não traz surpresa em relação ao enegrecimento das vítimas de despejo. Tem recorte de gênero, de classe e de raça”, comenta Leão. Segundo ele, o estudo, que não abrange populações de rua ou outros grupos em situação de vulnerabilidade fora das ocupações, pode não expressar o número real de afetados, refinamento que já deve estar no radar da Campanha.

O que o levantamento conseguiu apontar é que, do total de vítimas de despejos ou remoções forçadas, 333.763 correspondem a famílias ameaçadas, 42.098 a famílias despejadas e 78.810 a famílias vivendo com o despejo suspenso.

Entre as regiões mais afetadas, São Paulo lidera o ranking com o maior número de famílias ameaçadas (90.015) e despejadas (9.508). O estado de Pernambuco aparece na segunda posição no ranking de famílias ameaçadas (43.411) e em quinto no de despejadas (2.194). Já o estado do Amazonas aparece na segunda posição em número de despejados (5.541) e em terceiro no de ameaçados (31.902).

O conselheiro também ressalta a peculiaridade de São Paulo, estado com os maiores índices de despejos e remoções, destacando a “perversidade” do papel da capital paulista como centro do capitalismo e da especulação imobiliária no Brasil. “São Paulo é a meca do capitalismo brasileiro, da especulação e da apropriação da terra urbana enquanto mercadoria”, afirma Leão, acrescentando que o estado serve de modelo para a política de despejos em todo o país.

A relação entre o Estado e o mercado imobiliário, segundo Leão, é fundamental para entender o fenômeno dos despejos. Ele aponta que muitas das remoções são motivadas por investimentos públicos em infraestrutura que acabam por valorizar as áreas de interesse para o mercado imobiliário. “Esses investimentos não são feitos por acaso. Existe todo um conluio articulado entre Estado e mercado imobiliário”, denuncia.

Leão argumenta que, ao desapropriar terras sob a alegação de necessidade pública, o Estado frequentemente valoriza áreas que, a princípio, tinham pouco ou nenhum valor imobiliário. “Como são terras de valor muito baixo, porque nada foi construído ali ainda, eles se beneficiam. É um jogo de ganha-ganha só pro lado do Estado, que está a serviço do mercado”, explica. Esse processo é utilizado para criar estoques de terra, que posteriormente são gentrificados, expulsando populações vulneráveis e atraindo classes sociais mais abastadas.

Essa dinâmica de valorização artificial é visível em diversas regiões do país, como no caso do Guarujá, onde áreas antes habitadas por populações caiçaras foram progressivamente ocupadas pela classe média, resultando em um ciclo de superlotação e degradação, seguido por processos de “revitalização”, um termo que Leão critica duramente. “Dizer que uma área da cidade não tem vida porque só tem pobre, ou porque é poluída, ou grafitada, é um dos termos mais fascistas no urbanismo”, afirma.

O caso da Cracolândia, em São Paulo, exemplifica como investimentos públicos podem ser utilizados para remover populações vulneráveis e valorizar áreas para o mercado imobiliário. Segundo Leão, o governo estadual e municipal têm aplicado essa lógica de remoção e requalificação, sem considerar o destino das pessoas afetadas. “É consenso entre especialistas comprometidos com o direito à cidade, que não faz sentido despejar sem garantir para onde vão as pessoas, e de preferência próximo de onde moravam ou conectados à cidade”, alerta.

O papel do poder público e da especulação imobiliária

Essas remoções forçadas ou despejos são motivados principalmente por reintegração de posse, quando há conflito entre a pessoa que se diz proprietária do imóvel ou da terra e as famílias que estão ocupando esses locais. Como segunda principal razão estão as remoções forçadas impulsionadas pelo poder público, principalmente por grandes obras, especialmente em projetos relacionados a grandes eventos ou obras de infraestrutura.

“Em boa parte das remoções, o poder público age em favor de interesses privados e da especulação imobiliária, desalojando famílias sem oferecer soluções adequadas de moradia”, disse Vargas Jr. Essas remoções forçadas, muitas vezes sem uma realocação que atenda às necessidades das famílias, têm gerado traumas profundos, rompendo laços sociais e culturais das comunidades afetadas.

Desafios na mediação e perspectivas

Apesar dos esforços contínuos de movimentos de moradia e organizações sociais, a resposta do governo federal ainda enfrenta desafios. Vargas Jr. apontou que, embora alguns comitês de mediação tenham sido formados, a falta de estrutura do Ministério das Cidades tem dificultado a mediação eficaz dos conflitos.

“A estruturação do Ministério das Cidades para liderar os comitês de mediação é fundamental. Estamos pressionando para que o governo federal, em coordenação com o Ministério da Justiça, crie fóruns e espaços necessários para evitar as remoções”, explicou Vargas Jr.

Além disso, ele destacou a importância de negociar com os tribunais de justiça em todo o país para assegurar soluções mais efetivas, levando em conta a função social da moradia.

Considerando que grandes obras públicas são as maiores promotoras de despejos, como observa o levantamento, Marcelo Leão defende a criação de comissões de conflitos fundiários urbanos dentro das administrações públicas, semelhante ao que já ocorre no Poder Judiciário, considerado por ele o mais hermético, mas que mesmo assim tem criado comissões de conflitos fundiários urbanos em alguns Tribunais de Justiça, como é o caso de Santa Catarina, para garantir a participação e controle social nos processos de remoção. Ele argumenta que é necessário considerar não apenas o impacto das remoções nas comunidades afetadas, mas também assegurar alternativas habitacionais dignas e próximas às áreas de origem dos despejados.

Leão destaca ainda que, embora existam dispositivos legais que exigem a participação social e o controle desses processos, como o parágrafo 3º do artigo 4º do Estatuto da Cidade, eles são raramente aplicados. Esse dispositivo determina que todos os instrumentos da política urbana que envolvam dispêndio de recursos públicos devem ser objeto de controle social, com a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil.

Como solução, essas comissões seriam responsáveis por avaliar o impacto de obras e desapropriações, garantindo que os interesses das populações afetadas sejam considerados. “Essas comissões não são da mera liberalidade do poder público, elas são uma obrigação”, enfatiza.

Em suma, Leão critica a lógica capitalista que guia o planejamento urbano no Brasil, onde o déficit habitacional é utilizado como ferramenta para manter terras baratas para especulação, e onde o interesse público é frequentemente invocado para justificar a remoção de populações vulneráveis. “Os investimentos públicos compõem uma rede de conformação da cidade capitalista, que decide quem, quando e onde as pessoas vão morar”, conclui.

Mobilização e esperança

Embora o cenário atual seja desafiador, Vargas Jr. reafirmou o compromisso da Conam e de outras organizações em continuar a mobilização. Ele expressou esperança de que, com o apoio de um governo democrático, seja possível avançar na proteção das famílias contra os despejos e garantir o direito à moradia digna.

“A vontade política deve se traduzir em ações concretas para impedir que mais famílias sejam despejadas. Continuaremos mobilizados e pressionando para que o governo federal e os tribunais atuem para evitar essas remoções injustas”, concluiu o líder social.

O advogado, por sua vez, conclui que a naturalização dos despejos no Brasil é um reflexo da lógica capitalista na produção das cidades, onde os investimentos públicos muitas vezes servem para facilitar a especulação imobiliária em detrimento do direito à moradia. “Esses investimentos públicos compõem uma rede de conformação da cidade capitalista, que decide quem, quando e onde as pessoas vão morar”, finaliza.

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