Esquerda francesa defende governabilidade com aplicação do programa eleito
Entrelinha Vermelhas entrevistou Silvia Capanema, parlamentar no Département de Seine-Saint-Denis. Silvia defende a aplicação do programa eleito para garantir a governabilidade
Publicado 12/07/2024 12:34 | Editado 15/07/2024 10:11
O programa Entrelinhas Vermelhas fez uma edição especial sobre o resultado eleitoral para a Assembleia Nacional da França, com Silvia Capanema, direto de Paris. Sílvia é brasileira naturalizada francesa, historiadora, professora na Universidade Sorbonne Paris Nord. É também conselheira parlamentar eleita em 2015 e reeleita em 2021 no Département de Seine-Saint-Denis, na periferia de Paris; integra o Movimento da França Insubmissa e a Nova Frente Popular.
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Sílvia Capanema também dá pistas sobre a formação do novo governo, visto que a Nova Frente Popular exige a aplicação de seu programa, mais do que a indicação de um primeiro ministro. O programa da Nova Frente Popular (NFP) tem um caráter transformador na economia e em vários outros setores e se choca frontalmente com o que defende o Juntos do presidente Macron e também a direita, ambos com um programa neoliberal. Isso dificulta uma composição que inclua a NFP e Silvia defende que a pessoa indicada a premiê precisará ter uma grande capacidade de articulação e sensibilidade social.
Diante das dificuldades, Silvia lembra que a vitória da NFP foi conseguida pela mobilização dos movimentos sociais e que a manutenção desse movimento é fundamental para pressionar pelas mudanças que levem a aplicação do programa mais avançado.
Assista à íntegra da entrevista
Principais trechos da entrevista
Alívio e celebração
“A vitória da Frente Popular foi um alívio e uma alegria enorme. Nós comemoramos dois fatos principais. Primeiro, a extrema direita ficou bem aquém do que as pesquisas previam. Elas indicavam que a extrema direita poderia obter a maioria absoluta, mas isso não aconteceu. Eles ficaram em terceiro lugar, apesar do aumento no número de parlamentares, algo que sempre merece atenção. Em segundo lugar, comemoramos o fato de nosso grupo, a Frente Popular, ter conseguido uma maioria relativa, algo que nenhuma pesquisa previa”, explicou Sílvia.
Estratégia de bloqueio à extrema direita
Ela destacou a importância da estratégia de bloqueio à extrema direita, que envolveu a desistência de candidaturas de terceiros e quartos colocados. “No próprio dia das eleições, eu disse que era possível haver uma reedição dessa estratégia de bloqueio, que já havia sido aplicada nas eleições legislativas de 2022 pela Nupes (Nova União Popular, Ecológica e Social). Embora nenhuma pesquisa previsse esse resultado, ele se concretizou, para nossa surpresa e alívio.”
Formação da Frente Popular
A parlamentar explicou que a estratégia não era de uma frente ampla, mas sim de uma união das esquerdas com o movimento social. “Logo após as eleições europeias, houve uma mobilização das frentes de esquerdas com movimentos sociais, sindicatos e a sociedade civil. Isso foi possível devido ao precedente das eleições legislativas de 2022, quando a Nupes foi formada. Em poucos dias, conseguimos refazer essa união, evocando a Frente Popular dos anos 1936, entre socialistas e comunistas, agora envolvendo todos os partidos de esquerda e a sociedade civil.”
Desistências estratégicas
Entre os dois turnos das eleições, a mobilização visou evitar a catástrofe da extrema direita. “Jean-Luc Mélenchon, líder da França Insubmissa, principal força da Frente Popular, anunciou que os candidatos da França Insubmissa e da Frente Popular desistiriam em casos de posicionamento desfavorável contra a extrema direita. Embora Macron tenha hesitado inicialmente, criticado por intelectuais, artistas e políticos, ele acabou retirando a maioria dos candidatos de seu bloco em casos de segundo turno contra a extrema direita”, detalhou a professora.
Comportamento dos eleitores
Sílvia ressaltou o papel crucial dos eleitores na aplicação dessa estratégia. “Mais do que os próprios partidos, foram os eleitores que, de forma responsável e inteligente, votaram estrategicamente para bloquear a extrema direita, mesmo em lugares com apenas dois candidatos. Esse comportamento, chamado de bloqueio republicano ou bloqueio democrático, não foi previsto por nenhuma pesquisa, mas foi essencial para o resultado final.”
A vitória da Frente Popular na França não apenas surpreendeu, mas também mostrou a força da mobilização democrática contra a ascensão da extrema direita, deixando uma lição sobre a importância da união e da estratégia política inteligente.
Desafios pós-eleitorais
Não obstante, emergir como a força majoritária nas eleições francesas, a ausência de uma maioria absoluta no parlamento implica a necessidade de alianças estratégicas para governar. Sílvia explicou de forma detalhada os próximos passos e desafios enfrentados pela nova Frente Popular.
A situação política na França requer um delicado equilíbrio e habilidades de negociação. Com um parlamento fragmentado, a Frente Popular enfrenta o desafio de implementar seu programa e responder às necessidades urgentes da população, mantendo a coesão entre suas diversas forças internas e buscando apoio pontual para governar de maneira eficaz.
Necessidade de alianças
“O esforço foi exitoso, mas nenhuma força tem a maioria absoluta. Isso significa que, para governar, será necessário formar alianças, o que não é uma prática comum na política francesa, diferente de países com sistemas de representação proporcional como a Alemanha”, explicou Capanema. “A extrema-direita e a direita estão completamente fora de qualquer discussão possível, restando apenas o centro, liderado pelo grupo de Macron, como potencial aliado. No entanto, isso é bastante complicado devido às políticas impopulares que Macron implementou recentemente, como a reforma das aposentadorias e medidas de austeridade.”
Políticas impopulares e desafios
Sílvia destacou que as políticas neoliberais e de austeridade de Macron aumentaram o custo de vida e precarizaram os serviços públicos, tornando uma aliança com seu grupo improvável. “A Frente Popular propõe uma ruptura com essas medidas neoliberais, e uma coalizão com Macron parece inviável. A alternativa mais provável seria governar com medidas pontuais, aprovando algumas por decreto e outras através de negociações voto a voto.”
Estratégias e programas
A parlamentar enfatizou a importância de um programa claro e divulgado. “Nosso programa é público e tem legitimidade, pois as pessoas votaram nele. Através desse programa, pretendemos aprovar medidas por decreto e negociar outras com o parlamento. A habilidade política será crucial, pois uma moção de censura poderia derrubar o governo a qualquer momento, especialmente no primeiro ano, onde não pode haver dissolução da Assembleia.”
Possível premiê
Sobre a especulação de que François Hollande possa ser o próximo primeiro-ministro, Capanema expressou ceticismo. “Hollande é visto por muitos eleitores de esquerda como alguém que aplicou medidas neoliberais e nomeou Macron como ministro, o que poderia ser considerado uma traição aos princípios da Frente Popular. O importante agora é a aplicação do nosso programa. Temos um lema: ‘o programa, nada além do programa, mas todo o programa’, para garantir que as promessas sejam cumpridas e evitar a desilusão com a democracia.”
Estabilidade governamental e aplicação do programa
A parlamentar e professora discutiu os desafios e as estratégias para a Frente Popular governar e implementar seu programa. Ela enfatiza a importância do debate democrático e da mobilização social para garantir a aplicação do programa da Frente Popular, trazendo justiça social e alívio econômico para a população francesa.
Convocação e aliança
“O ideal seria que Macron convocasse a Frente Popular para apresentar um governo e buscar o voto de confiança do parlamento. Temos aliados, mas essa forma de coligação não é comum na França”, afirmou Sílvia. Ela explicou que a nomeação de um primeiro-ministro da Frente Popular para aplicar o programa dentro dos dispositivos democráticos seria a solução ideal.
Programa econômico e social
Silvia destacou o programa claro e detalhado da Frente Popular, elogiado pela Nobel de Economia Esther Duflo. “Nosso programa é de ruptura com as lógicas de austeridade, propondo impostos progressivos e a supressão de nichos de isenções fiscais ineficientes. Isso permitirá financiar medidas sociais que impulsionarão a economia e aumentarão a arrecadação.”
Medidas pontuais e mobilização
Algumas medidas poderão ser aplicadas por decreto, como o aumento do salário mínimo em 15% e a indexação salarial à inflação. “Será necessário mobilizar sindicatos e a população para exigir a aplicação dessas medidas. A mobilização social é crucial para fazer valer a democracia e implementar o programa.”
Congelamento de preços
Silvia mencionou a possibilidade de negociar com o grupo de Macron em torno de medidas como o congelamento dos preços de produtos de primeira necessidade e da energia. “Essas são medidas de interesse comum que podem facilitar a negociação.”
Movimentos sociais e sindicatos
A parlamentar lembrou dos movimentos sociais recentes, como a greve contra a reforma das aposentadorias e os protestos dos Coletes Amarelos, que reclamavam principalmente do custo de vida. “Essas reivindicações foram incorporadas ao programa da Frente Popular, como o aumento salarial e a reforma das aposentadorias.”
Educação e gratuidade
Ela destacou também as demandas por melhorias na educação. “Estamos propondo a gratuidade total das escolas, incluindo cantina e material escolar. Movimentos de pais de alunos e sindicatos de professores já estão cobrando essas medidas do parlamento.”
Desafios e perspectivas
Diante das dificuldades programáticas e da resistência de outras forças políticas, a Frente Popular precisa manter uma mobilização popular constante. “Estamos organizados em comitês locais e recebemos 65 mil novas adesões entre os turnos das eleições. A mobilização social é um dos pilares da democracia plena e será fundamental para avançarmos.”
Ameaça a lideranças e à mobilização social
Em meio à crescente tensão política na França, um site de extrema direita chamado Reseau Libre tem incitado violência contra lideranças progressistas. O site convoca grupos reacionários e de extrema direita a cometer atentados contra advogados, jornalistas, líderes comunitários e políticos do campo progressista. O site chega a sugerir o uso de armas brancas, bombas e até atentados.
Incitações à violência
“A extrema direita pode ser muito perigosa. Historicamente, sabemos o perigo que representa”, alerta a parlamentar. Ela destacou casos recentes de agressões contra a população muçulmana em Stains e ameaças de morte ao prefeito muçulmano de Saint-Denis, que defende maior representação de imigrantes.
Mobilização progressista
Apesar das ameaças, ela enfatiza a importância da mobilização progressista. “A juventude que nos apoia não vai se intimidar. Chamamos para uma pacificação e uma conciliação de uma França diversa e inclusiva. As formas de resistência que promovemos são pacíficas”, afirmou. Ela ressalta que questões de segurança nacional devem ser tratadas pelas autoridades competentes, sem instrumentalização política.
Recuo na representatividade das mulheres
A parlamentar também destacou um retrocesso na representatividade feminina no parlamento, que caiu de 39% em 2017 para 36% este ano. “Isso está relacionado ao crescimento da extrema direita, que não tem pautas de paridade ou defesa dos direitos das mulheres. Pode até colocar em risco o direito à interrupção voluntária da gravidez”, disse.
Paridade e inclusão
Para Sílvia, a paridade deve ser garantida por legislação específica. “Não dá para confiar na boa vontade dos partidos políticos. A França precisa de dispositivos que garantam a paridade parlamentar. No nível local, já temos listas paritárias e chapas binômias”, explicou. Com isso, não apenas há paridade de candidaturas, mas de eleitas, também. Ela acredita que a presença feminina no poder impulsiona a diversidade e fortalece todos os direitos sociais.
Avanços e desafios
A Frente Popular, segundo a professora, tem um programa robusto para os direitos das mulheres, incluindo medidas contra a violência, garantia de moradia e igualdade salarial. “Temos muitos avanços a conquistar. A representatividade é crucial para uma sociedade mais justa e inclusiva”, concluiu.
Casos de racismo e sexismo
Silvia lamentou a não eleição de Rachel Kéké, uma mulher negra e camareira que liderou uma greve importante nos hotéis Ibis. “Ela recebeu mensagens racistas e sexistas após não ser eleita. Era uma candidata favorita da Frente Popular, mas perdeu para a extrema direita”, contou.
Esperança para a esquerda europeia
A recente eleição no Reino Unido trouxe um marco significativo com a derrota do Partido Conservador, os Torys, após 14 anos no poder, e a expressiva vitória do Partido Trabalhista. Sílvia vê este resultado como um sinal de esperança e possível reversão do avanço da direita na Europa.
Sopro de esperança
A vitória trabalhista no Reino Unido pode ser o início de uma reação ao avanço da extrema direita em países como Espanha, Portugal, Alemanha e Itália. “Sempre temos esperança de ganhar, pois representamos os interesses reais da maioria da população”, afirma a parlamentar. Ela ressalta que a luta é difícil e longa, especialmente devido à falta de recursos econômicos, mas enfatiza a importância de não desanimar e apresentar alternativas concretas.
Construção de alternativas progressistas
Silvia destaca a necessidade de construir uma alternativa socialista, comunista, ecológica e cidadã. “Estamos vivendo num contexto pós-Muro de Berlim, pós-queda do sonho comunista e todos os erros que foram cometidos. No entanto, continuamos a construir essa alternativa”, disse. Ela acredita que a única alternativa real e duradoura à extrema direita é o progresso social e humano, além da preservação ecológica, que considera uma urgência absoluta.
Apoio internacional e artístico
A parlamentar mencionou o apoio internacional e o papel dos artistas e atletas na política. “Aqui na França, o apoio do Raí, ex-jogador de futebol, foi muito importante. Ele é muito querido na França, não apenas pelo que foi como jogador, mas também pelo seu discurso de paz, democracia e progresso social”, disse. Ela observou que a participação de figuras públicas na política é uma novidade na França, inspirada por movimentos similares no Brasil e nos Estados Unidos.
Impacto da vitória de Lula
Ela também ressaltou o impacto positivo da vitória de Lula no Brasil para a esquerda francesa. “A vitória de Lula trouxe muito otimismo e uma retomada das relações internacionais. Foi um marco importante para a defesa dos direitos sociais e humanos”, afirmou.
Para Sílvia Capanema, a luta pela construção de uma alternativa progressista é contínua e essencial. “Não podemos desistir. A vitória trabalhista no Reino Unido é um sinal animador e nos motiva a continuar com nossa perspectiva de progresso social e ecológico”, concluiu.