Espionagem, favorecimento de filhos e golpe despontam na Abin paralela sob Bolsonaro
Investigações explicitam o uso da estrutura pública para vigiar desafetos do ex-presidente em seu governo, alimentar gabinete do ódio e tirar proveito das informações obtidas
Publicado 12/07/2024 12:46 | Editado 15/07/2024 10:06
O emaranhado de crimes e atos ilícitos revelados pela Polícia Federal na quarta fase da Operação Última Milha, ocorrida nesta quinta-feira (11), revela como o bolsonarismo usou a estrutura pública para espionar ministros do Supremo Tribunal Federal, parlamentares e jornalistas por meio da chamada “Abin paralela”. As investigações também trouxeram à tona elementos relativos à minuta do golpe e ao uso da agência para beneficiar filhos do ex-presidente e para colher informações sobre o caso Marielle.
A instrumentalização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) para esse tipo de expediente mostra o uso ilegal e o aparelhamento dos órgãos públicos por interesses pessoais por parte do bolsonarismo e remete às práticas de perseguição típicas da ditadura militar, que utilizava o extinto Serviço Nacional de Informação (SNI) contra opositores.
Trata-se, portanto, da prática de velhos hábitos que marcam a história política brasileira sob o comando da direita — tais como o patrimonialismo, o autoritarismo e a corrupção, entendida aqui de maneira mais ampla, como o uso de meios ilegais em benefício próprio no âmbito do serviço público.
Esse conjunto de ações, mais uma vez, desmente o discurso antissistema e anticorrupção usado pela extrema direita. Se bolsonaristas sempre encheram a boca para dizer que não votavam em “ladrão” nem em “corrupto”, certamente os últimos dias reforçaram o vazio dessas máximas quando usadas em favor de um ex-presidente que se apropria de joias do Estado e usa estruturas sob seu comando para tirar vantagens políticas e pessoais — isso sem falar de outros crimes sob investigação envolvendo Bolsonaro e seu entorno.
Prisões e crimes
Nesta quinta (11), quatro pessoas foram detidas preventivamente na quarta fase da operação: Mateus Sposito, ex-assessor da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República; Giancarlo Gomes Rodrigues, militar e ex-servidor da Abin; Marcelo de Araújo Bormevet, policial federal que atuava na Abin; e Richards Dyer Pozzer, responsável por disseminar notícias falsas. Rogério Beraldo de Almeida, também apontado como responsável por perfis falsos nas redes sociais, está foragido.
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Segundo nota da PF, “os investigados podem responder, na medida de suas responsabilidades, pelos crimes de organização criminosa, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, interceptação clandestina de comunicações e invasão de dispositivo informático alheio”. No período em que as ações clandestinas ocorreram, o atual deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) era diretor-geral da Abin.
Entre os objetivos da organização criminosa estaria, entre outros, atrapalhar investigações da Polícia Federal e apurações na Receita Federal e alimentar o “gabinete do ódio” para a disseminação de mentiras ou informações manipuladas sobre desafetos e para descredibilizar o processo eleitoral e ministros do Supremo que também compunham o Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Espionagem de desafetos
Segundo as apurações, no âmbito do Judiciário, foram monitorados por meio da ferramenta israelense First Mile os ministros do STF, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Luis Roberto Barroso e Luiz Fux.
Além disso, entre outros pontos trazidos pelas apurações, há uma conversa entre o agente da PF Marcelo Araújo Bormevet e o militar do Exército Giancarlo Gomes Rodrigues em que dizem que Moraes merecia “algo a mais”, um “head shot” — ou um “tiro na cabeça”.
No Legislativo, o atual presidente da Câmara, deputado federal Arthur Lira, além dos deputados Rodrigo Maia (então presidente da Câmara), Kim Kataguiri e Joice Hasselmann; e os senadores Alessandro Vieira, Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues. Também foram alvo o ex-governador de São Paulo, João Dória, servidores públicos e jornalistas como Mônica Bergamo e Vera Magalhães.
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Conforme apontou o ministro Alexandre de Moraes, que autorizou a nova fase da operação tendo como base as evidências apresentadas pela PF, as investigações mostram que Ramagem “teria instrumentalizado a mais alta agência de inteligência brasileira para fins ilícitos de monitoramento de alvos de interesse político, bem como de autoridades públicas, sem a necessária autorização judicial”.
Um dos documentos apreendidos pela PF “remete à tentativa de associar deputados federais, bem como exmo. ministro relator Alexandre de Moraes e outros parlamentares à organização criminosa PCC”, diz trecho do relatório da investigação.
Entre os parlamentares monitorados estão os senadores Alessandro Vieira, Omar Aziz, Renan Calheiros e Randolfe Rodrigues, que fizeram parte da CPI da Covid. O colegiado investigou e apontou uma série de crimes cometidos durante a pandemia e pediu o indiciamento de Bolsonaro e outras 80 pessoas, entre as quais ex-ministros de seu governo.
Favorecimento dos filhos do presidente
De acordo com as apurações, as operações ilegais da Abin também foram usadas para favorecer filhos de Jair Bolsonaro.
No caso do atual senador Flavio Bolsonaro (PL-RJ), o objetivo seria atingir auditores da Receita Federal que atuaram no relatório que deu origem a uma investigação sobre desvio de salários de assessores, as “rachadinhas”, quando ele ainda era deputado estadual.
Vale destacar que no material colhido nas investigações há uma gravação, com mais de uma hora de duração, de uma conversa entre Bolsonaro, o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno e Ramagem, “possivelmente” gravada por este em agosto de 2020, segundo a PF.
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Ainda sob segredo de Justiça, ao que parece a gravação pode trazer conteúdos bastante comprometedores. Do que é público até agora, parte da conversa está relacionada justamente ao uso ilegal da Abin para obter informações sobre a investigação da “rachadinha” de Flávio Bolsonaro.
Neste áudio, segundo o relatório, “é possível identificar a atuação de Alexandre Ramagem indicando, em suma, que seria necessária a instauração de procedimento administrativo contra os auditores da Receita com o objetivo de anular a investigação, bem como retirar os auditores de seus respectivos cargos”.
A investigação da Polícia Federal concluiu que os assuntos tratados na conversa gravada se concretizaram e provam a atuação da Abin paralela durante o governo do ex-presidente. Em 2020, um dos três auditores foi exonerado.
Além disso, segundo a PF, um policial federal que atuava na agência foi designado para espionar Allan Lucena, ex-sócio de Jair Renan Bolsonaro em uma empresa de eventos. O filho do ex-presidente é acusado de tráfico de influência e lavagem de dinheiro pelo Ministério Público.
Minuta golpista
Outro elemento revelado pelas investigações é que ao menos dois dos investigados presos nesta quinta-feira (11) — o militar Giancarlo Gomes Rodrigues e seu superior, o policial federal Marcelo Araújo Bormevet, responsáveis por operar diretamente o programa First Mile — tinham conhecimento da minuta do golpe, conforme diálogos mantidos entre os dois.
Para os investigadores, “as referências relacionadas ao rompimento democrático declaradas pelos policiais é circunstância relevante que indica no mínimo potencial conhecimento do planejamento das ações que culminaram na construção da minuta do decreto de intervenção”.
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Além disso, pontuou a PF, os crimes supostamente cometidos na Abin “se situam no nexo causal dos delitos que culminaram na tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito”.
A minuta golpista compõe outro inquérito, que tem como alvo o ex-presidente Jair Bolsonaro e assessores próximos. As duas investigações tramitam sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Caso Marielle
As apurações da PF também apontaram que a estrutura da Abin foi usada para monitorar ilegalmente o andamento da investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018, no Rio de Janeiro.
De acordo com o relatório da investigação, agentes foram designados para buscar informações sobre a promotora do Ministério Público do Rio de Janeiro, Simone Sibilio, e o delegado da Polícia Civil do Rio, Daniel Freitas da Rosa, que atuaram na investigação do homicídio.
Para a PF, o monitoramento das investigações sobre o assassinato da vereadora ocorreu para “antecipar eventuais referências que vinculassem o núcleo político” do esquema ilegal do monitoramento na Abin, ou seja, saber se a família Bolsonaro teria sido citada na investigação.
“O resumo das denúncias relacionadas ao caso Marielle foi impresso pelo delegado Alexandre Ramagem enquanto diretor da Abin. A impressão de documentos e informações se prestava para que informações da inteligência pudessem ser levadas aos destinatários, em regra integrantes do núcleo político”, concluiu a investigação.
Com informações da Agência Brasil