Revoltas de Stonewall, evento catalisador do movimento LGBT+
Stonewall é menos um evento único na história LGBT+ e mais uma constelação histórica de expectativas e experiências
Publicado 27/06/2024 19:08 | Editado 28/06/2024 08:20
Milhões de pessoas saíram às ruas em todo o mundo nas últimas semanas para celebrar o “Orgulho LGBT+”. Aqueles que se encontram encharcados de purpurina ou envoltos em bandeiras de arco-íris podem pensar que esta é apenas uma festa anual de diversidade sexual e de gênero. Mas, o último fim de semana de junho é a âncora do Orgulho LGBT+ ao redor do mundo por um motivo: ele marca uma revolta que ocorreu no bar Stonewall Inn, em Nova York, há 55 anos atrás.
As revoltas de Stonewall foram uma série de protestos que ocorreram durante seis noites, começando na madrugada de 28 de junho de 1969, centrando-se numa “espelunca” queer (termo pejorativo que equivale a bichas) em Nova York. Estes eventos são amplamente creditados por terem impulsionado o movimento pelos direitos LGBT+ não somente nos EUA, mas em todo o mundo ocidental.
Quatro dias antes, em 24 de junho de 1969, a polícia, liderada pelo inspetor-adjunto Seymour Pine, invadiu o Stonewall Inn, prendendo funcionários e confiscando bebidas alcoólicas. No entanto, quando Pine liderou uma segunda invasão no dia 28, os frequentadores reagiram, com especial destaque para a revolta de lésbicas, travestis e transexuais negras. Aproximadamente 150 pessoas fugiram, se reagruparam na rua e invadiram o bar, prendendo os policiais dentro. Os manifestantes começaram a atirar tijolos, garrafas e lixo, e tentaram incendiar o bar.
O primeiro tijolo
Não está claro quem jogou o primeiro tijolo naquela noite. De acordo com a tradição queer, Marsha P. Johnson, uma mulher trans negra na vanguarda da libertação gay, ou Sylvia Rivera, uma mulher trans latina, foram as primeiras a reagir. No entanto, com base em seus próprios relatos da noite de 28 de junho de 1969, nenhuma delas atirou o primeiro tijolo.
O cenário mais provável não envolve um tijolo ou um coquetel molotov, mas sim os apelos de Storme DeLarverie, uma lésbica mestiça. Enquanto era colocada na traseira de um carro da polícia, ela perguntou aos seus irmãos e irmãs queer: “Vocês não vão fazer alguma coisa?”
Durante seis noites, os manifestantes confrontaram a polícia, enquanto marchavam e entoavam palavras de ordem nas proximidades da Christopher Street. O que começou com violência foi se tornando uma festa de rua com drag queens, profissionais do sexo, mulheres trans, gays, lésbicas caminhoneiras cantando, fazendo coreografias, jogando objetos e usando seus corpos para resistir à invasão policial.
No início, a revolta não era bem vista por toda a comunidade LGBT+, já que parte do movimento oficial era conservador, com predominância de homens cisgêneros (que se identificam com seu sexo biológico) bem educados. Esses consideravam que ainda tinham algo a perder e defendiam que os “homossexuais” deviam assumir que eram “doentes” para angariar uma eventual piedade dos heterossexuais hegemônicos.
Embora os detalhes das origens daquela noite permaneçam obscuros, o que está claro é que tanto Johnson quanto Rivera estavam lá e mais tarde se tornariam figuras centrais dos direitos dos homossexuais e da resistência queer. Seus protestos, bem como as ações de outros gays negros em atos de desafio anteriores, demonstram como as mulheres queer de cor eram frequentemente ignoradas, mas estavam na vanguarda da libertação gay.
Ambiente claustrofóbico
É importante lembrar a relação entre pessoas queer e a polícia, antes de Stonewall, para entender o contexto. Em 1969, atos homossexuais eram ilegais em todos os estados, exceto Illinois. Em Nova York, a polícia frequentemente visava locais frequentados por homens gays e pessoas trans.
Se presos, os nomes, idades, endereços e crimes dessas pessoas eram publicados nos jornais locais, o que frequentemente resultava em consequências desastrosas para os “revelados” na imprensa. Muitos eram rejeitados por suas famílias, demitidos de seus empregos ou expulsos desonrosamente das forças armadas. Alguns eram alvos de agressões ou assassinatos.
Assim, essas pessoas eram forçadas a viver clandestinamente ou expostos a todo tipode discriminação. A Christopher Street, em Greenwich Village, tornou-se um local relativamente seguro, com bares e cafés que atendiam secretamente à clientela LGBT+. Estes bares frequentemente eram operados pela máfia, que controlava as máquinas de cigarro e jukeboxes, e vendia bebidas alcoólicas adulteradas.
O Stonewall Inn, inaugurado em março de 1967, estava localizado em uma avenida principal, em vez de uma rua lateral. Sua clientela era majoritariamente masculina, mas também incluía segmentos marginalizados da comunidade, devido às suas duas pistas de dança. Em média, a polícia invadia esses bares uma vez por mês, geralmente avisando previamente para minimizar a interrupção dos negócios. No entanto, desta vez foi diferente. Os frequentadores do Stonewall já estavam irritados com a invasão de 24 de junho, então, quando uma pessoa resistiu à prisão, outros se juntaram, e a situação rapidamente escalou.
Cobertura jornalística enviesada
Na época, os jornais principais de Nova York não refletiram a importância desse novo movimento de direitos civis que estava se desenrolando na cidade. Os grandes jornais deram voz principalmente à polícia, enquanto veículos de mídia alternativa se misturaram entre os manifestantes para cobrir os eventos.
Os grandes jornais da cidade – The New York Times, The New York Daily News e New York Post – publicaram apenas algumas histórias, citando exclusivamente fontes policiais e oferecendo pouco contexto. O evento foi descrito como um caso de jovens desordeiros – uma revolta quase sem provocação.
Por exemplo, o primeiro artigo do Times sobre Stonewall, “4 Policemen Hurt in ‘Village’ Raid” (Quatro Policiais Feridos em ‘Invasão’ no Village), começou assim: “Centenas de jovens entraram em tumulto em Greenwich Village pouco depois das 3h da manhã de ontem, após uma força de homens à paisana invadir um bar que a polícia disse ser bem conhecido por sua clientela homossexual.”
As emissoras de TV locais, por sua vez, nem sequer relataram os distúrbios que aconteciam no coração de Manhattan. E perderam a oportunidade de ter as imagens históricas em seu acervo.
Em contraste, o jornal alternativo local mais popular, The Village Voice, deu destaque de primeira página às revoltas. Incluiu entrevistas e citações dos manifestantes, bem como relatos em primeira pessoa dos repórteres Howard Smith, que ficou preso dentro do bar com os policiais, e Lucian Truscott IV, que estava do lado de fora com os manifestantes.
A cobertura do Voice apresentou muitas das características dos veículos de imprensa alternativa. Ao incorporar as opiniões tanto dos manifestantes quanto da polícia, criou uma história mais complexa e nuançada. O jornal enquadrou as revoltas de Stonewall como uma expressão de libertação, e não de rebelião, com Smith escrevendo que os manifestantes estavam simplesmente “protestando contra a forma como eram tratados.”
No entanto, a cobertura do Voice não foi perfeita. O tom anti-LGBT+ no artigo de Truscott irritou os manifestantes, assim como algumas das políticas editoriais de longa data do jornal contra anúncios pessoais de mesmo sexo.
A história de Stonewall se popularizou com o lançamento de um filme em 2015, que foi criticado por encobrir a história e omitir o papel de pessoas queer negras e latinas. No filme, um homem branco gay atira o primeiro tijolo, mas quase todos os relatos públicos da noite desacreditam esta versão.
Precursores em Frisco
Stonewall não foi o primeiro ato de desafio público de uma comunidade gay. A revolta na Cafeteria Compton ocorreu cerca de três anos antes de Stonewall e a quase 4.800 km de distância, em São Francisco.
A Compton’s Cafeteria, localizada no distrito de Tenderloin, era um ponto de encontro popular tarde da noite na década de 1960 para pessoas trans, especialmente mulheres trans. Mas a direção da cafeteria e a polícia submeteram essas comunidades marginalizadas a assédio e maus-tratos constantes.
Em agosto de 1966, um incidente crucial acendeu as chamas da resistência. Quando um policial tentou prender uma das mulheres trans, ela desafiadoramente jogou sua xícara de café quente no rosto dele. Em poucos momentos, os clientes viraram um carro de polícia.
Stonewall é menos um evento único na história LGBT+ e mais uma constelação histórica de expectativas e experiências queer. Esta constelação captura a raiva, a dor, a alegria e a esperança de pessoas queer – tanto naquela época quanto agora – lutando para existir em um mundo que nega prazeres, intimidades e identidades atípicas.
O legado de Stonewall
Embora a revolta de Stonewall não tenha sido o primeiro evento desse tipo, ela serviu como um catalisador para promover os direitos da comunidade LGBT+, bem como aumentou a visibilidade dos problemas enfrentados pela comunidade nos EUA e ao redor do mundo. Os tumultos levaram à criação de inúmeras organizações de direitos LGBT+ em todas as principais cidades americanas, bem como em outros continentes. Em poucos meses, vários jornais foram criados para promover os direitos dos indivíduos LGBT+.
Além disso, um dos maiores legados da Revolta de Stonewall é provavelmente o estabelecimento da parada do orgulho. No aniversário de um ano, em 28 de junho de 1970, milhares de pessoas marcharam do Stonewall Inn até o Central Park, naquela que foi considerada a primeira parada do “orgulho gay” da América. Durante muito tempo, o termo gay foi usado para abarcar todas as identidades, embora seja mais associada aos homens homossexuais cisgênero.
Daquele dia em diante, todo ano, a Revolta de Stonewall tem sido marcada internacionalmente por esse ritual – uma parada anual do orgulho organizada em várias cidades do mundo todo. Em 2016, o então presidente Barack Obama designou o local dos tumultos como um monumento nacional em reconhecimento à contribuição da área para os direitos LGBT+.