Recessão na Argentina abala o mercado interno, apesar do superávit fiscal
O Vermelho consultou uma professora universitária e um sindicalista para saber como vivem os argentinos em meio às estatísticas distorcidas de Milei
Publicado 25/04/2024 17:30 | Editado 28/04/2024 17:37
Na Argentina, o cenário econômico de 2024 é marcado por uma crise de consumo que atinge indiscriminadamente todos os setores do mercado doméstico, de supermercados a eletrodomésticos, de automóveis a restaurantes. Esta crise, que se diferencia por sua amplitude, não poupa nem mesmo as farmácias, refletindo uma situação de profunda recessão que desafia empresas e consumidores em todo o país.
Embora haja sinais positivos, como a desaceleração da inflação nos últimos meses, a economia argentina continua enfrentando desafios significativos, especialmente nos setores dependentes da evolução dos salários e do emprego. Este processo é visto como inédito, obrigando todas as empresas a redefinirem suas estratégias de negócios.
A recessão é particularmente severa nos setores de alimentos e medicamentos, com uma queda de 10% nas vendas de produtos da cesta básica. As farmácias também sofrem com uma queda de dois dígitos no primeiro trimestre do ano, impactando até mesmo tratamentos prolongados em áreas carentes.
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O Portal Vermelho procurou o depoimento de dois argentinos que vivem esta realidade de recessão e observam o andamento do Governo Milei em meio a turbulências como a gigantesca Marcha Universitária, ocorrida nesta terça-feira (23), em todo o país. Uma professora universitária e um sindicalista da simbólica indústria do couro.
Deja vú do industricídio
Marcela Oliver, psicanalista e escritora, além de professora na Universidade de Buenos Aires (UBA), compartilhou suas perspectivas sobre a atual crise política e econômica na Argentina, descritas por ela como um desastre.
Para ela, a situação atual evoca uma sensação de déjà vu, comparando as políticas neoliberais propostas por Milei com as implementadas durante o governo de Carlos Menem nos anos 1990. Ela enfatizou que essas políticas já demonstraram ser falhas no passado, resultando em privatizações “a preço de banana” e deterioração dos serviços públicos.
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“Só que, agora, a coisa está mais brava ainda, porque nem no governo do Macri, que era um governo de direita, se atacou a educação e a saúde públicas, e a ciência também, como se está atacando neste momento”. Para ela, a direita representada por Milei vai muito além da tecnocracia econômica neoliberal.
“Esta não é apenas uma questão de macroeconomia e ajuste fiscal, mas uma tentativa clara de desmantelar instituições que são consideradas dos ‘zurdos’ (canhotos), ou seja, aqueles que se preocupam com a ciência, educação e saúde pública”, afirmou Marcela, citando o apelido dado por Milei aos que considera de esquerda. Ela explica que as instituições que estão sendo fechadas são autossustentáveis.
Ernesto Quiqui Trigo, secretário-geral do Sindicato Argentino dos Fabricantes de Couro (SAMC), denunciou as medidas adotadas pelo governo argentino, descrevendo-as como desastrosas para o setor industrial do país. Com a liberalização das importações, entram produtos de todo tipo no país numa competição desleal com a indústria local.
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Segundo ele, o argentino paga até 400% a mais por serviços como luz e gás, além do aumento dos impostos. “Uma situação catastrófica! Acreditamos que em alguns meses isso pode explodir, porque as pessoas não vão poder se alimentar.” Ele diz que os preços argentinos para comer já são mais caros que na Europa, onde os salários são muito maiores e a Argentina é um dos maiores produtores de alimentos do mundo. O preço dos aluguéis também explodiram afetando a entrada de turistas, segundo ele.
Ernesto expressou sua preocupação com essas consequências negativas das políticas econômicas implementadas pelo governo Milei. “As medidas adotadas pelo governo, através da Lei Ómnibus, são desastrosas. É um industricídio para o âmbito da indústria”, declarou o sindicalista, destacando o impacto devastador das políticas neoliberais. Ele alertou que a liberalização da economia resultou na inundação do mercado com produtos estrangeiros, levando a uma queda abrupta nas vendas e na produção industrial.
Falácias da economia
Marcela expressou preocupação com a precarização crescente, que não é uma novidade no governo atual, mas destacou que agora estão sendo atacadas as ferramentas que poderiam proteger a população desses abusos. “Estes caras traficam com números sem pensar que têm pessoas por trás deles”, lembra a psicanalista.
Ela também abordou questões econômicas, destacando a precarização do trabalho e o aumento da pobreza e da informalidade, problemas que não surgiram apenas no governo atual. Ela criticou a falta de consideração do governo pelos impactos sociais de suas políticas econômicas e a ideia de que a inflação diminuirá automaticamente com a queda do dólar.
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Marcela apontou a desconexão entre a queda do dólar e o aumento contínuo dos preços. “O dólar baixou e os preços continuam subindo. Então, essa ideia peregrina de que vai chegar o famoso efeito V (após a recessão profunda, a economia apresentaria uma trajetória célere de crescimento, retomando o padrão pré-crise), parece que não está acontecendo”, acusa ela.
Ela questionou a eficácia das medidas econômicas do governo. Na área da saúde, a queda nas vendas em farmácias revela que as pessoas estão deixando de tomar seus medicamentos. Enquanto isso, denuncia ela, o “liberal” Milei intervém nos preços de planos de saúde privada, onde acredita que estão seus eleitores.
Ernesto explicou que a indústria de couro enfrentou uma redução significativa nas vendas, enquanto os custos de serviços essenciais, como energia elétrica, gás e transporte, aumentaram drasticamente, exacerbando ainda mais a crise econômica. “Em três meses do governo de Milei, isso gerou queda de vendas e de produção entre 40% e 50%”, afirmou.
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Contudo, Ernesto destacou que sua categoria foi o sindicato que mais aumento porcentual teve no ano passado. Os trabalhadores das fábricas de couro tiveram 277% de aumento, com uma inflação de 220% aproximadamente. “Foi uma conquista histórica que o nosso sindicato conseguiu, enquanto os servidores públicos, que negociam com o governo, ganharam um aumento de 20%”.
O sindicalista também criticou a desvalorização da moeda pelo governo, que resultou em altas taxas de inflação. Ele enfatizou que os trabalhadores argentinos estão sofrendo com salários mínimos (US$ 200) inadequados diante do aumento dos preços dos produtos básicos, tornando a vida na Argentina extremamente cara.
Para Ernesto, o governo é cínico quando vai a TV dizer que, pela primeira vez, em muitos anos, havia superávit fiscal. “Tem superávit fiscal, porque o governo não paga o que deve. Não se pagou as universidades, não se pagou os tratamentos oncológicos dos cidadãos argentinos que estão se tratando de câncer, como exemplo. Então, quando não se paga, se perde dinheiro no bolso”, diz o sindicalista.
Mobilização nas ruas
Diante desse cenário preocupante, Ernesto anunciou planos para uma grande mobilização sindical no Dia do Trabalho, visando protestar contra as políticas governamentais e exigir melhores condições para os trabalhadores argentinos.
“O movimento sindical tem planejado fazer uma grande mobilização no Primeiro de Maio”, revelou. “Estamos falando de mobilizações como a paralisação do dia 24 de janeiro”, disse ele, citando gigantescas paralisações com quase dois milhões de manifestantes.
A psicanalista também comentou sobre as manifestações recentes, destacando a importância da educação pública como um meio crucial de mobilidade social. Ela enfatizou que as marchas não se tratam apenas da falta de recursos para as universidades, que ela conhece como professora e aluna, mas também da defesa da mobilidade social proporcionada pela educação pública.
Marcela abordou ainda o debate sobre o suposto doutrinamento nas instituições públicas de ensino. Ela citou o escritor Martin Kohan, que diz que falar de doutrinamento implica um docente autoritário e um aluno com uma cabeça oca. Ela destacou que os professores agora enfrentam a possibilidade de serem denunciados por doutrinamento, uma medida que ela considera autoritária e prejudicial para a liberdade acadêmica. “Se isto não for uma caça às bruxas… bom, eu acho que é mesmo!”, concluiu
“É um governo que veio com um discurso de tirar os privilégios e negociatas da casta política e percebemos, claramente, que a casta somos nós, os trabalhadores perdendo direitos elementares”. Como diz Ernesto, basta olhar quem são os beneficiados pelas politicas: o setor financeiro, o setor da saúde privada, os setores especulativos e os capitais estrangeiros.