Revolta dos Marinheiros, o último levante progressista nas FFAA

Dois mil marujos compareceram ao evento. Entre os presentes estavam lideranças estudantis, sindicais e até políticas, como o ex-governador gaúcho Leonel Brizola.

Os marinheiros brasileiros protagonizaram duas grandes rebeliões no século 20. A primeira, mais famosa, foi a Revolta da Chibata, em novembro de 1910. Sob a liderança de João Cândido, oficiais da Marinha (em geral negros) se sublevaram contra as chibatadas aplicadas como castigo por seus superiores (todos brancos).

A chibata representava as péssimas condições de trabalho nas Forças Armadas e simbolizava uma contradição. Enquanto o governo brasileiro investia na modernização da Marinha, com a compra de navios de batalha – os encouraçados dreadnoughts –, marinheiros e tenentes ainda eram tratados feito escravos.

Assim como a Rússia se surpreendeu em 1905 com um levante similar – a revolta no Encouraçado Potemkin –, o Brasil se espantou com a vitoriosa Revolta da Chibata. Navios de guerra foram tomados por tripulantes e bombardearam fortes militares. Embora o Congresso tenha aprovado uma anistia, a maioria dos amotinados foi dispensada da Marinha e centenas de oficiais foram presos. Mas os castigos corporais à moda escravocrata acabaram – e João Cândido, o “almirante negro”, virou herói nacional.

A segunda grande rebelião foi a Revolta dos Marinheiros, considerada o estopim do Golpe de 1964. Num movimento sem precedentes na história da Marinha, oficiais fundaram, em 1962, a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB). Para celebrar o segundo aniversário da entidade, um grande encontro de militares de baixa patente foi marcado para 25 de março de 1964, no Palácio do Aço – a sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro.

Em um Brasil altamente conflagrado, o ministro da Marinha, Sílvio Mota – que considerava a AMFNB ilegal –, tentou proibir a comemoração. Mesmo sob ameaça, 2 mil marujos compareceram ao evento. Para azedar ainda mais o clima, entre os presentes estavam lideranças estudantis, sindicais e até políticas, como o ex-governador gaúcho Leonel Brizola. Um dos mais aplaudidos foi João Cândido, que, aos 83 anos, levou sua solidariedade à categoria.

Não havia só festa. Os marinheiros reivindicavam melhores condições de trabalho e se manifestavam favoráveis às reformas de base do governo João Goulart, o Jango. Sílvio Mota, pressionado, ordenou a prisão dos organizadores do ato. Mas os fuzileiros encarregados da missão chegaram ao Sindicato dos Metalúrgicos, ouviram as propostas da AMFNB e aderiram à manifestação.

A celebração virou revolta. Os marinheiros decidiram continuar no prédio até que suas demandas fossem atendidas. As Forças Armadas logo notaram que a contestação, inicialmente restrita à Marinha, tinha potencial para comprometer as outras Forças. Jango nutria simpatia pela AMFNB – que, sem dúvida, esbanjava coragem e audácia.

A segunda operação contra os marinhos, já em 27 de março, foi bem-sucedida. Desta vez, tropas do Exército cercaram o sindicato e prenderam os manifestantes. Parecia o fim da Revolta dos Marinheiros, mas sobreveio uma escalada: a crise militar virou crise política. Jango anistiou os oficiais e exonerou Sílvio Mota. As medidas foram vistas pelas Forças Armadas como afrontosas.

Em 30 de março, numa das últimas agendas de seu governo, o presidente discursou para 3 mil sargentos no Automóvel Clube do Brasil e voltou a cobrar o apoio dos militares às reformas de base. Dois dias depois, nas primeiras horas de 1º de abril de 1964, as Forças Armadas iniciaram o golpe. Os militares que tomaram o poder perseguiram os rebelados da AMFNB com prisões, torturas e expulsão da Marinha.

Na última segunda-feira (25), circulou nas redes sociais um manifesto atribuído aos marinheiros “revoltosos de 1964”. O texto, lançado 60 anos após a rebelião, é nostálgico: “Mandaram uma Companhia de Fuzileiros nos prender e lá muitos companheiros aderiram ao nosso movimento, em um dos momentos mais emocionantes em nossas vidas. Alguns deles estão aqui conosco neste dia memorável”.

Segundo a Comissão Nacional da Verdade, dos 6.591 militares perseguidos após o golpe, 2.214 eram da Marinha. A maioria desses marinheiros participou da revolta. O manifesto de 2024 aponta que “mais de 1.500 (…) foram para a rua da amargura”, enquanto “120 companheiros foram julgados à revelia e condenados a mais três séculos de reclusão”. Alguns ficaram isolados por cinco anos nos presídios de Ilha Grande.

Se cabe alguma nostalgia em relação à Revolta dos Marinheiros, é pelo fato de que se trata do último levante progressista nas Forças Armadas. A ditadura (1964-1985) fez uma caça aos “subversivos” nas casernas. As punições às “quebras de ordem e hierarquia” foram endurecidas.

Uma revisão no currículo nas escolas militares ajudou a tornar as últimas gerações de oficiais ainda mais conservadoras. Antes disso, o líder da Revolta dos Marinheiros, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo, foi posteriormente cooptado pela ditadura e virou “cachorro” – um informante do regime.

Os tempos são outros. Nas décadas de 1960 e 1970, as Três Forças agiram para debelar a “ameaça comunista” em seus quadros. Hoje, não sabem o que fazer com os milhares de oficiais que se aliaram ao ex-presidente Jair Bolsonaro em tramas golpistas que atentam contra o Estado Democrático de Direito.

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