Oppenheimer e os dilemas éticos de um cientista
A tragédia da ciência em tempos de guerra e as consequências éticas de uma descoberta revolucionária
Publicado 03/02/2024 08:05 | Editado 03/02/2024 14:12
O filme de Christopher Nolan, Oppenheimer, traz ao centro da tela os dilemas éticos de um cientista. As perguntas mais difíceis que poderiam ser feitas levaram à desgraça um físico brilhante, depois que sua descoberta científica foi usada para matar perto de 35 mil pessoas, na hora, e mais de 100 mil, nos anos seguintes, vítimas da radiação atômica nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki.
Julius Robert Oppenheimer acreditava que a simples demonstração do funcionamento de sua bomba atômica seria suficiente para acabar com a guerra. No entanto, os EUA não apenas usaram a bomba, como avançaram para a criação da bomba de hidrogênio. Assim, transformaram o mundo em um lugar muito mais perigoso para se viver, ao obrigar a União Soviética a entrar numa corrida armamentista. Hoje, há bombas capazes de destruir o planeta várias vezes, espalhadas por todo o mundo.
Com um tema tão complexo e fascinante para a compreensão da história humana, o Portal Vermelho não poderia ficar no escuro, e pediu ao físico e historiador da ciência, Olival Freire Jr, por meio das perguntas elaboradas pelo jornalista Pedro Oliveira, para explicar até que ponto o filme foi capaz de abordar com amplitude os temas envolvidos no julgamento de Oppenheimer.
O cientista baiano é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ex-presidente da Sociedade Brasileira de História da Ciência e da Comissão para a História da Física Moderna, da International Union of History and Philosophy of Science.
Leia os comentários com spoilers de Olival, após assistir ao filme:
O argumento para detonar a bomba atômica
Se os bombardeios atômicos ao Japão foram justificáveis, este é o objeto de uma grande controvérsia histórica. O argumento, que comparece no filme Oppenheimer, é o de poupar vidas norte-americanas. Esse argumento aparece em muitos momentos, como quando se usa a expressão: “trazer os garotos de volta”.
Mas isso é muito discutível, porque há outra motivação, que fica clara na forma como os Estados Unidos conduziram o Projeto Manhattan na relação com os soviéticos. Já estava em curso o que viria depois da guerra, com a disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética. Assim, a motivação para o bombardeio do Japão envolvia também um importante movimento geopolítico, com os norte-americanos liquidando a guerra no Pacífico sem os recursos dos comunistas.
Os soviéticos declarariam guerra ao Japão e entrariam em campo. Então, esse fator, certamente influenciou, assim como o de que, para a opinião pública americana, era justificável bombardear com as novas armas os “povos amarelos”, muito mais do que europeus.
Se a guerra poderia terminar sem os bombardeios? Possivelmente, sim. Embora seja verdade que a atitude psicológica do povo japonês diante da guerra é realmente um elemento difícil de compreensão.
Lembre-se do caso que tivemos, aqui no Brasil, quando a colônia japonesa não acreditava que o Japão tivesse se rendido, porque achavam que o imperador nunca faria isso. Chegaram a organizar grupos no Brasil para atacar os japoneses, seus conterrâneos, que diziam que a guerra havia acabado com a rendição. Isso está bem documentado no livro Corações Sujos, do Fernando Moraes.
Não podemos aceitar o argumento de que os americanos queriam apenas o fim da guerra com o Japão. Isto não é suficiente. Como todas as decisões complexas, há muitos fatores em jogo. Nesse sentido, o filme, e talvez o filme refletindo o livro, não coloca esses outros elementos em tela. Fica só o argumento de que era imprescindível confrontar e liquidar o Japão o quanto antes, para poupar vidas americanas e japonesas.
Guerras quentes e frias
Não se pode compreender o filme sem entender que a disputa política internacional mudou dramaticamente, antes e depois da Segunda Guerra. Antes, a aliança que se formou foi entre EUA-URSS-Reino Unido-França Gaulista, além das resistências nos vários países, muitas vezes lideradas pelos partidos comunistas, versus as potências do Eixo, —no caso, a Alemanha nazista, a Itália fascista e o Japão. Sem isso, você não entende qual foi a motivação primeira para a construção da bomba, que foi a percepção de que os nazistas construiriam-na primeiro, porque tinham alguns dos melhores físicos da época.
Esse contexto muda completamente quando acaba a guerra. Mal o Eixo é derrotado, você vê que tem muita referência no filme à conferência de Potsdam, que é a conferência na qual os líderes americanos, britânicos e soviéticos desenharam o mundo pós-guerra.
Então, nesse mundo, a competição que se estabelece inicialmente, é entre a União Soviética e Estados Unidos. E essa competição vai evoluir rapidamente para a Guerra Fria, uma disputa aberta entre os dois.
Guerra Fria foi o nome que se utilizou, mas, parte da disputa era o domínio das armas atômicas, foi a corrida armamentista que começou de 1948 para a frente. Cabe notar que desde os bombardeios no Japão, armas atômicas não chegaram a ser lançadas, nem contra a URSS, nem contra os EUA; embora o mundo tenha se engolfado em uma corrida armamentista de modo que temos hoje cerca de 15.000 armas atômicas espalhadas em diversos países.
É nesse contexto que você tem o macartismo [a perseguição aos comunistas] nos EUA, e um endurecimento ideológico na URSS. E claro, nesse contexto do macartismo, Edgar Hoover, do FBI, que era um convicto anticomunista, passou a ter um papel mais importante. McCarthy era um senador de menor expressão, que virou uma grande estrela, porque, o que ele fez, correspondia ao ambiente da época, de tensionamento no contexto da Guerra Fria, o que ocorreu a partir do momento que a URSS lançou a primeira bomba em 1949, e do momento que o Partido Comunista ganhou a guerra na China.
São esses dois contextos que mudam completamente. O filme reflete isso, e, para entendê-lo, Oppenheimer é o homem que transitou nesses dois contextos. No primeiro, ele era um cara com inclinações esquerdistas, relacionado com jovens comunistas, e, mesmo assim, foi convidado pelo engenheiro militar Leslie Groves para liderar o projeto norte-americano.
Passada a guerra e com a vitória, Oppenheimer entrou em colisão com essa realidade. Ele não apostava as fichas na Guerra Fria, não queria a corrida armamentista, por isso, vai se opor à construção da bomba de hidrogênio. Ele diz no filme, muito claramente, que a construção da bomba de hidrogênio pelos Estados Unidos só levará os russos a, também, fazer o mesmo; o que se revelou uma previsão correta.
Foi o que aconteceu. Passada a guerra, Oppenheimer tornou-se uma pessoa que estava em colisão com o contexto global de competição entre EUA e URSS. Por isso, ele teria sua influência reduzida. Strauss é um personagem menor, movido pelo ciúme e inveja em relação a Oppenheimer, que fez o papel sujo de articular a retirada de suas credenciais de acesso aos segredos atômicos. O Lewis Strauss é isso, um personagem menor, assim como o senador Joseph McCarthy, mas que foram grandes naquele momento.
Do mesmo jeito que o Strauss é barrado pelo Congresso para um outro posto importante, o senador McCarthy também perdeu sua influência, porque, no pico do macartismo, ele começou a procurar comunistas dentro das forças armadas americanas. Nesse momento, o apoio a ele foi retirado.
O filme não mostra o declínio de McCarthy, mas aparece o de Strauss. O último julgamento que acontece no filme é, exatamente, a audiência para que Strauss ocupasse um cargo importante no governo americano.
Strauss e o descarte de Oppenheimer
No filme, há que notar que Lewis Strauss participa da decisão da Comissão de Energia Atômica (AEC), que retira as credenciais de segurança de Oppenheimer. Ele apoiou a decisão de negar o acesso de Oppenheimer a informações confidenciais, citando preocupações sobre sua confiabilidade e sua capacidade de manter segredos sensíveis relacionados às armas nucleares.
Anos depois, ele é questionado no Senado, quando é indicado para o cargo de secretário do Comércio. Duas audiências em momentos distintos: na primeira —em que as credenciais do Oppenheimer são retiradas—, é o Strauss que articula dentro da AEC essa posição. Na segunda audiência, o Strauss tropeça na própria empáfia e inveja, quando algumas das testemunhas que ele pensou em levar, testemunharam contra ele. No final, ele perde por pouquíssimos votos, e eu não sabia que aquele último voto tinha sido do jovem senador John F. Kennedy.
Por fim, aquela frase dita por Einstein a Oppenheimer na beira do lago: “Agora é sua vez de lidar com as consequências de sua conquista.” A gente não tem suficiente documentação histórica para saber se aquilo foi dito mesmo, ou se é uma relembrança do Oppenheimer.
Temos que lembrar que o Einstein morreu logo em 1955, mas o filme pode ter sua liberdade poética, e, nesse sentido, o filme é muito interssante. O Strauss acha que o Oppenheimer ficou falando mal dele para o Einstein, e, na verdade, o diálogo entre os dois era do Einstein como pessoa mais madura, dizendo a Oppenheimer: não se engane, porque eles vão te usar — o sistema norte-americano, o aparato armamentista—, e depois vão ficar te dando umas medalhinhas, mas você não vai ter mais nenhum papel na definição da política internacional.
É premonitório, porque foi o que aconteceu, depois que o Oppenheimer perdeu as credenciais. Ele recebeu essas medalhas do presidente, mas nunca mais voltou a ter influência na política norte-americana. Ele não quis participar do projeto da bomba de hidrogênio, foi contra. Isso é exatamente o que o colocou em colisão com o interesse militar dos Estados Unidos para confrontar os soviéticos.
Comunismo e macartismo
O Oppenheimer via como inimigo principal o nazismo, e não a União Soviética. Não só ele, mas também o F. D. Roosevelt, que fez aliança com a URSS, algo que muda depois com a derrota dos nazistas.
O filme apresenta a tentativa de um dos amigos comunistas do Oppenheimer de extrair informações sobre a bomba. É esse episódio que os serviços de segurança norte-americanos tinham informação e foi usado, tanto contra o Oppenheimer, como também para perseguir os alunos dele, que eram comunistas. É o caso conhecido como “Os quatro jovens físicos e a experiência do terror vermelho”, título da tese em história de Shawn Mullet na Universidade Harvard. São quatro alunos do Oppenheimer, Bernard Peters, David Bohm, Joseph Weinberg, e Giovanni Rossi Lomanitz; além do próprio irmão, Frank Oppenheimer, que tinham inclinações comunistas.
Dois aparecem no filme. O irmão, que é o Frank Oppenheimer e Ross Lomanitz. Não aparecem David Bohm e Bernard Peters, que havia fugido da Alemanha com a ascensão do nazismo.
Quando o macartismo se votou contra eles, o Bohm foi demitido e veio para o Brasil, acolhido na Universidade de São Paulo; o Bernard Peters foi para a Índia, e depois a Dinamarca, e o Frank foi cuidar de rancho, enquanto Lomanitz foi sobreviver de trabalhos manuais.
A curiosidade que o filme não trata em detalhes —e não precisava tratar—, é que, hoje, sabemos que o principal canal de informação que os soviéticos tiveram não envolvia o Oppenheimer. Um dos canais foi o físico alemão Klaus Fuchs, que veio com a equipe britânica se juntar ao projeto Manhattan. Sabe-se, hoje, que havia também um outro canal de um grupo de jovens norte-americanos, que o filme não trata, que também funcionaram repassando informações para os soviéticos. Essas histórias têm conexões com o episódio do casal Rosenberg, judeus-americanos executados sob a acusação de terem passado os segredos atômicos para a URSS.
É preciso dizer que esses canais de informações sobre a bomba estão hoje bem documentados, e que os soviéticos se beneficiaram disso. Mas é evidente que só conseguiram construir a bomba, porque tinham fôlego científico, tinham recursos e conseguiram produzir a bomba em 1949. O filme mostra isso.
A ingenuidade do cientista
Faltou dizer que Oppenheimer, efetivamente, teve uma opinião dúbia quanto a lançar ou não a bomba no Japão. Ele relata para o comitê norte-americano, que estava ali reunido, as opções, as opiniões que existiam, contra e a favor. Então, a neutralidade, naquele momento, não foi a melhor posição. Muitas vezes, ele foi criticado, tanto pelos inimigos, quanto pelos aliados, por ter essa conduta dúbia e ambígua.
Agora, a decisão de lançar a bomba não foi do Oppenheimer. Se ele tivesse dito que não se lançasse, ela seria lançada do mesmo jeito. Isso o filme retrata bem com a cena do presidente com o secretário de estado, que diz: daqui para a frente a decisão da bomba é nossa, não tem mais nada a ver com vocês. O presidente pede que ele seja retirado da sala, porque estava com aquelas ingenuidades.
A tragédia é exatamente essa. Cientistas produziram a bomba, mas a bomba virou uma arma nas mãos do estado norte-americano, e, do outro lado, do estado soviético. Foi uma ilusão e ingenuidade do próprio Oppenheimer achar que eles controlariam o destino da bomba que tinham acabado de criar.
O confronto entre Oppenheimer e Einstein
As divergências entre os físicos J. Robert Oppenheimer e Albert Einstein, tal como retratadas no filme, têm várias camadas de divergências.
Certamente, que eles tinham divergências quanto ao problema de interpretação da mecânica quântica. O Oppenheimer mais do lado do Niels Bohr, e o Einstein mais do lado dele mesmo, — uma posição mais realista na mecânica quântica. E o Bohr numa posição mais antirrealista, digamos assim, do ponto de vista filosófico.
Mas eu não acho que essa divergência fosse o crucial naquela altura de 1939 para a frente. O próprio Einstein, como os físicos todos, compreenderam claramente a questão da bomba, e é por isso que ele assina a carta ao Presidente dos EUA pedindo pressa na construção da bomba.
Eu diria que Einstein aparece como personagem secundário. Salvo aquele apoio inicial, na medida que o projeto Manhattan começa a se desenvolver, ele não tem um papel central.
A ponderação de que Einstein seria pouco efetivo no projeto Manhattan faz sentido, basta ver o perfil daquela turma que compôs o projeto, todos de uma geração posterior à dele. Gente muito jovem, com dinamismo.
Havia uma outra dimensão no projeto Manhattan, pelo tipo de física aplicada: a nuclear e a mecânica quântica. Duas áreas em que o Einstein tinha desacelerado o seu engajamento científico. Desde início dos anos 1930 para a frente, ele se dedicava, exclusivamente, ao campo da relatividade geral, a qual ele foi o criador, e à sua generalização buscando a unificação com o eletromagnetismo. Aliás, Oppenheimer também se dedicava a este tema, conforme demonstra o trabalho dele antecedendo a ideia de buracos negros, o colapso gravitacional, que vai nessa direção. Portanto, havia também um problema e uma diferença entre os dois, nesse sentido.
Quando monta o projeto, Oppenheimer pega o pessoal que podia dar uma contribuição mais imediata. E, certamente, o Einstein não se enquadrava nisso. O que o filme não trata, é que o Einstein não era confiável ao FBI, como demonstra o enorme dossiê sobre ele na polícia federal. Então, a questão é, se o Oppenheimer tivesse pensado em levar o Einstein para Los Alamos, o FBI teria autorizado? É uma interrogação.
Por fim, o filme tem enorme atualidade. A imagem que mais me impressionou foi a cena final: um mundo carregado de artefatos nucleares, os quais, se usados, podem eliminar a espécie humana da face do planeta. Esta cena final impressiona porque vivemos hoje em um mundo no qual a polarização opondo, de um lado, Estados Unidos, apoiados pela Europa e Japão, e, de outro, a aliança entre China e Rússia criou um mundo muito instável, no qual o uso de armas nucleares passou a ser considerado de forma quase banal. Me lembrei de uma conversa com Renato Rabelo, em que ele afirmava justamente isso, a instabilidade do mundo, consequência da polarização.
Então o filme ilumina uma outra face da tragédia a que me referi. Os cientistas do projeto Manhattan produziram a bomba atômica na esperança de cria-la antes que os nazistas o fizessem. Foi a escolha moral certa. Mas essa escolha teve como consequência não planejada o fato de que a corrida por essas armas transformou o mundo, arriscando a própria sobrevivência da humanidade.