“Regulação promove internet mais saudável para a democracia”, diz Renata Mielli

Ao “Vermelho”, Renata Mielli, primeira coordenadora a frente do CGI.br, refuta censura na regulação das plataformas e diz que é preciso enfrentar desigualdades na internet

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Apesar da paralisação da tramitação do projeto de lei das Fake News na Câmara dos Deputados, há consenso dentro do Comitê Gestor da Internet (CGI.br) para apoiar iniciativas políticas que busquem a regulação das plataformas digitais no Brasil.

Segundo a coordenadora do CGI.br, Renata Mielli, em entrevista para o Portal Vermelho, estimular o debate sobre a instituição da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet é uma dessas iniciativas regulatórias. “Há uma convergência de visões no Comitê Gestor da Internet sobre a necessidade de termos uma legislação para definir parâmetros e obrigações bastante claros para a operação destas plataformas digitais no Brasil”, diz Renata Mielli.

Alguns acontecimentos recentes colocaram o assunto novamente em evidência e entre as pautas prioritárias para o governo no início do próximo ano legislativo.

A conta na rede social X, antigo Twitter, da primeira-dama Janja da Silva foi hackeada por um adolescente de 17 anos, que fez publicações em nome de Janja contendo xingamentos e piadas. Na última sexta (22), uma jovem cometeu suicídio após seu nome ser vinculado a uma falsa conversa com o humorista Whindersson Nunes. Jéssica Canedo tinha 22 anos e foi envolvida na “fofoca” pela página Choquei.

Renata Mielli destaca que o PL 2630 (PL das Fake News) vem sendo discutido no Legislativo desde 2020 e que precisa avançar para que as regras não sejam definidas pelas próprias plataformas e criar um ambiente menos tóxico nas redes sociais.

“A esta altura a nossa expectativa era que já pudéssemos ter uma legislação no Brasil. Esta lei está sendo discutida desde 2020 e nós precisamos não só avançar no debate, mas aprovar essa legislação”, disse.

“Quando nós não temos uma legislação, ficamos a mercê das regras estabelecidas pelas empresas privadas. Ou seja, quem toma as decisões de forma discricionária são as plataformas privadas, que decidem sem nenhum tipo de parâmetro público como devem ser as ações delas com relação aos conteúdos de terceiros, a crimes que são cometidos nas suas plataformas e uma série de outras questões”, conclui Mielli.

“Nós precisamos regular para ter um ambiente digital mais saudável e com mais respeito pelas pessoas e pela democracia”

De acordo com a coordenadora do CGI.br, a paralisia do Congresso pode levar a um cenário no qual o Judiciário defina os parâmetros para as operações destas plataformas.

“Podemos ficar diante de uma situação no qual o Supremo e outras instâncias do Judiciário tomem decisões para serem implementadas no vácuo legislativo, no vácuo legal. E muitas dessas decisões do Judiciário podem ser positivas, mas tantas outras podem ser abusivas ao ponto de irmos criando jurisprudências e parâmetros que não são exatamente aqueles com os quais nós pretenderíamos trabalhar se tivéssemos discutindo uma lei baseada em princípios que, por exemplo, garantam os direitos humanos e a liberdade de expressão, mas também que tenha como parâmetro a defesa do Estado Democrático de Direito”, afirma.

Para a coordenadora, é preciso superar a ideia de que regular a internet é um plano autoritário para cercear a liberdade de expressão.

“Nós precisamos definir claramente quais as obrigações destas plataformas. E aqui não estamos falando apenas de conteúdo, mas de uma série de questões que permeiam a transparência em relação às suas atividades, como monetização de conteúdos, além de outras questões econômicas”, explica.

“Tem uma série de questões que o PL 2.630 cobre e que não tem nenhuma relação com censura. Acho que precisamos superar a ideia de regular é censurar. Não é na radiodifusão, não é na mídia impressa e não será no ambiente da internet das plataformas digitais. A regulação existe para definir parâmetros, inclusive no que diz respeito a liberdade de expressão”, conclui.

Consulta pública alimenta o debate sobre a regulação da Internet no Brasil

Com a intenção de promover mais debate sobre a internet no Brasil, o Comitê Gestor da Internet no Brasil vem abastecendo a sociedade com informações com a maior qualidade técnica possível, baseada nos princípios do multissetorialismo e transparência.

Por isso, no começo deste ano, o CGI.br lançou uma consulta pública para receber contribuições sobre a regulação de plataformas. O resultado foi publicado em dezembro em um documento intitulado “Sistematização das Contribuições à Consulta sobre Regulação de Plataformas Digitais”.

A consulta esteve aberta de 25 de abril a 16 de julho deste ano e recebeu 1.336 contribuições de 140 pessoas físicas e organizações dos quatro setores que compõem o CGI.br: setor governamental; 3º setor; setor empresarial; e comunidade científica e tecnológica.

A consulta é desenvolvida em torno destas três grandes questões:

  • Quem deve ser regulado?

“O PL 2630 tem um escopo, isto é, trata sobre redes sociais, serviços de mensageria e ferramentas de busca. Agora plataformas digitais são muitas outras. Nós procuramos entender como a comunidade compreende o que deve ser regulado para além destas que já estão no escopo, como plataforma de serviços, plataforma de mediação do trabalho”, explica Mielli sobre este eixo da consulta.

“Como caracterizar estas plataformas? Plataformas pequenas devem ter o mesmo tipo de tratamento que plataformas grandes? Essa foi a pergunta que fizemos sobre quem regular e o resultado disto é muito interessante, inclusive para a nossa compreensão deste novo ecossistema que surge entorno das plataformas digitais”, disse a coordenadora.

  • Como deve ser regulado?

“A segunda pergunta é como regular, ou seja, que tipo de regulação cada uma destas plataformas deveria ter dentro da sua atividade específica, principalmente, levando em perspectiva os interesses da soberania tecnológica do país, da soberania nacional. Sabemos que este é um ambiente concentrado em empresas privadas internacionais com impacto para o desenvolvimento do Brasil”, continua Mielli.

  • Quem deve regular?

“O terceiro eixo é quem regula. No Brasil não temos uma tradição de ter uma agência reguladora convergente das comunicações ou deste ambiente digital que consiga ter a capacidade, a competência de lidar com temas que vão desde conteúdos a temas econômicos. O Brasil tem espaço diversos, mas como faz essa regulação? Quais serão os organismos responsáveis pelo acompanhamento, aplicação e fiscalização da legislação que surgir no país?”, indaga Mielli.

“Daí surgiram sugestões e opiniões bastante interessantes, salientando visões diferentes de como essa regulação deverá ser feita. Há aqueles que professam uma ideia de autorregulação [pelas plataformas]. Há aqueles que buscam contribuir com uma visão, digamos, que tem sido chamado de autorregulação regulada, com mecanismos mais complementares. Há ainda aqueles que defendem a existência de uma agência única, concentrada, para fazer este papel da regulação. Por fim, há aqueles que defendem um sistema coordenado a partir dos vários órgãos existentes para tratar dos vários aspectos e camadas regulatórias que são necessárias serem observadas neste ecossistema de plataformas”, conclui.

Renata Mielli salienta que o trabalho final da consulta, um documento com mais de 250 páginas, não é uma opinião do Comitê Gestor da Internet no Brasil, mas uma sistematização das opiniões coletadas nos quatro setores constituídos do comitê.

O CGI atento para as desigualdades na internet.

Indicada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, a posse de Renata Mielli, em março de 2023, foi a primeira indicação de uma mulher para coordenar o CGI.br, órgão responsável entre outras atribuições por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no país.

“Me lembro quando participava do movimento dos blogueiros progressistas, que organizava vários encontros de blogueiros no Brasil. E, já naquela época, eram pouquíssimas as presenças de blogueiras mulheres sobre política. E quando era necessário escolher comentaristas de política dos sites, inclusive dos progressistas, acabávamos escolhendo os homens. A gente vê que as desigualdades se repetem no ambiente digital, as vezes até se acentuam”, recorda Mielli.

São inúmeros os exemplos que podem ser citados para delinear a permissividade da internet quando o assunto é desigualdade nas plataformas digitais. No ambiente digital, os homens são maioria na proporção de pessoas que realizam atividades de trabalho na Internet (41%), enquanto apenas 31% das mulheres desempenham essas mesmas atividades.

No que se refere à realização de transações financeiras, 55% dos homens afirmam fazer tais atividades, contra 47% de mulheres. Cerca de 45% dos homens utilizam a internet como lazer, praticando jogos online, contra 30% das mulheres. Até mesmo o consumo de vídeos, programas, séries ou filmes nas plataformas contabiliza uma maioria masculina: 84% dos homens e 77% das mulheres.

Por isso, o CGI.br promoveu, em novembro, a “Agenda de Gênero, Raça e Diversidade para estimular Internet mais inclusiva no Brasil”, resultado de uma investigação sistemática sobre barreiras que impedem a plena participação de mulheres – em todas as suas diversidades – em áreas relacionadas à internet.

“A gente já promove há alguns anos um trabalho bastante focado na interseccionalidade de gênero, raça, diversidade no ambiente digital, na internet. Não é de se espantar que as desigualdades que a gente vivencia na sociedade se reflitam no ambiente digital. E de maneira ainda mais acentuada. Hoje o que vemos é um ambiente digital muito adverso para participação e presença das mulheres. Mesmo atividades que a gente de alguma maneira já tem mulheres a frente, no ambiente digital a gente observa mais dificuldades”, afirma Mielli.

A agenda elenca 10 grandes desafios ligados ao tema e, para cada um deles, apresenta uma lista com propostas de ação.

“As mulheres são as maiores vítimas do discurso de ódio, do preconceito e dos ataques, da violência no ambiente digital. Isso acaba fazendo com que muitas mulheres que poderiam estar participando de forma mais ativa da internet se afastem porque é bastante agressiva e pesada a violência que as mulheres sofrem neste ambiente”, lamenta a coordenadora do CGI.br.

“A nossa agenda tem o intuito de trazer este debate e surge como fruto de uma oficina realizada pelo CGI, que reuniu mulheres que trabalham em entidades que atuam no campo digital. A agenda procura apontar alguns mecanismos para promover a participação das mulheres e evitar a violência no ambiente digital. É uma contribuição que o CGI se orgulha muito e que precisa ser disseminada e apropriada”, concluiu Mielli.

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