Libertação de palestinos revela apartheid judicial israelense
A realidade de torturas e abusos, especialmente contra crianças, chocou o mundo, conforme o Hamas obriga Israel a libertar centenas de palestinos
Publicado 29/11/2023 16:39 | Editado 29/11/2023 19:42
Na semana passada, a esperada libertação de 300 prisioneiros palestinos como parte de uma trégua humanitária entre Israel e Gaza revelou-se uma questão complexa e controversa. Enquanto Israel rotula os detidos como “terroristas” violentos, uma análise mais detalhada revela que a maioria deles não enfrentou acusações formais. Além disso, a proibição de celebrações por parte de seus familiares adiciona uma camada de tensão a esse delicado processo.
O ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben-Gvir, sustentou a proibição de expressões de alegria, alegando que tais manifestações equivaleriam a apoiar o terrorismo. Este é apenas o mais recente episódio em que Israel apresenta palestinos presos como “terroristas”, sujeitando muitos deles a alegações de abuso durante o período de detenção.
Em cinco dias de acordo, 150 palestinos confinados em prisões israelenses foram libertados em troca de alguns dos 240 reféns sob controle do Hamas desde o ataque de 7 de outubro. Composto majoritariamente por adolescentes de 14 a 18 anos, além de mulheres, o sistema prisional de Israel acabou expondo, involuntariamente, uma série de arbitrariedades contra o povo palestino — que permite, entre outras coisas, prisões sem provas e acusações e julgamentos de crianças por tribunais militares.
No entanto, dados reveladores mostram que quase 80% das 300 mulheres e crianças palestinas identificadas por Israel para potencial libertação não foram formalmente acusadas. A detenção administrativa, um processo quase judicial, é a principal ferramenta usada, permitindo que palestinos sejam inicialmente encarcerados por seis meses, com a possibilidade de prorrogação indefinida, sem acusação ou julgamento.
O sistema judicial de dois níveis, onde a maioria dos palestinos é julgada em tribunais militares, destaca-se pela discriminação. Em contraste, os cidadãos israelitas enfrentam julgamentos em tribunais civis, destacando uma disparidade preocupante no tratamento legal, que contribui para a existência de um apartheid em Israel.
A esmagadora maioria dos prisioneiros na lista de libertação de Israel não enfrentou acusações formais; são mantidos sob detenção administrativa. Surpreendentemente, muitos deles são crianças, com o mais jovem entre eles tendo apenas 14 anos. Das 233 pessoas nesta categoria, a maioria é proveniente da Cisjordânia ocupada, onde as detenções aumentaram desde o início da guerra de Israel contra Gaza em 7 de outubro.
Outro ponto de destaque é que quase metade dos prisioneiros não tem ligação com grupos políticos ou armados palestinos, levantando questões sobre a justificativa para sua detenção prolongada.
O prisioneiro detido por mais tempo tem enfrentado oito anos e meio de prisão, enquanto o mais recente foi detido há apenas dois meses. Essa disparidade nos períodos de detenção destaca as diversas histórias e experiências enfrentadas pelos prisioneiros palestinos.
Moataz Salaima, 15 anos, centro, posa para uma foto com seus pais ao chegar em casa em Ras al-Amud após ser libertado de uma prisão israelense.
Espancamentos, restrições e abusos
A trégua humanitária que possibilitou a libertação de alguns prisioneiros palestinos revelou uma realidade perturbadora de espancamentos e humilhações por parte das forças israelenses. Testemunhos indicam que, embora esses espancamentos tenham se intensificado durante a recente guerra, eles seguem um padrão duradouro de tortura e abuso que tem marcado décadas de detenção. Organizações de direitos humanos denunciaram não apenas os atos de violência, mas também a restrição significativa de recursos essenciais para os prisioneiros.
Desde o início do conflito, relatos de grupos de defesa dos direitos humanos destacaram a limitação severa de água, alimentos, assistência médica e itens essenciais aos detidos. Além disso, as visitas de familiares e advogados foram fortemente restritas ou suspensas, efetivamente retirando dos prisioneiros palestinos os poucos privilégios conquistados ao longo de anos de campanhas e greves de fome. As condições de superlotação nas prisões agravam ainda mais a situação, criando um ambiente precário e desumano.
Infância roubada
O tratamento de crianças palestinas nas prisões israelitas também vem à tona como uma preocupação urgente. Centenas de crianças, algumas com apenas nove anos de idade, foram detidas, o que muitos consideram uma violação direta da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. Lamentavelmente, as crianças não estão imunes aos abusos que ocorrem nessas instalações.
Um relatório da Save the Children, divulgado em julho, chocou ao revelar que 86% das crianças nas detenções israelitas sofrem espancamentos, enquanto 69% são revistadas e 42% ficam feridas durante o período de detenção. Entre os ferimentos documentados estão balas, ossos quebrados e outras lesões graves. Além disso, a organização destacou casos de violência sexual e transferências cruéis em pequenas jaulas entre tribunais e centros de detenção.
Um dos casos mais chocantes é do de Bassel Aiaede, preso desde criança, que passou 16 anos nas prisões israelenses, a maior parte na solitária. Ele perdeu a memória devido as torturas e, após a libertação, sequer reconheceu seus familiares, se comportando de forma catatônica.
A Save the Children aponta que as crianças palestinas são “as únicas crianças no mundo que são sistematicamente processadas em tribunais militares”, ressaltando que cerca de 10.000 delas foram detidas no sistema de detenção militar israelense nos últimos 20 anos.
Enquanto o mundo observa a complexidade do conflito no Oriente Médio, a preocupação com os direitos humanos e o tratamento adequado de prisioneiros, especialmente crianças, permanece uma questão premente que exige uma resposta global.
O recém-libertado palestino Rouba Assi abraça parentes durante a cerimônia de boas-vindas em Ramallah.
O complexo apartheid judicial
A detenção administrativa de palestinos por Israel continua a ser uma prática polêmica e opaca, gerando preocupações quanto aos direitos humanos e às liberdades individuais. Este método permite a detenção indefinida de indivíduos sem acusação formal, deixando prisioneiros, suas famílias e advogados às escuras sobre as razões e evidências subjacentes.
Conheça os efeitos desse sistema e como ele tem evoluído ao longo das décadas.
Um prisioneiro palestino recém-libertado (à direita) cumprimenta amigos e parentes ao desembarcar de um ônibus da Cruz Vermelha.
Detenção sem fim à vista
A detenção administrativa, empregada por Israel desde 1967, tornou-se uma prática controversa ao longo dos anos. Um relatório da ONU do ano passado revelou que cerca de um milhão de palestinos foram presos por Israel desde a ocupação de Jerusalém Oriental, Faixa de Gaza e Cisjordânia. Muitos desses casos envolvem a detenção administrativa, permitindo a manutenção de prisioneiros por anos sem apresentar acusações ou fornecer transparência no processo judicial.
Durante os últimos meses, Israel aumentou as detenções, especialmente após os ataques no sul do país em 7 de outubro. O número de palestinos sob custódia ultrapassou 10.000, antes de algumas libertações. No entanto, permanece a incerteza sobre os destinos dos presos, exacerbando as tensões em uma região já marcada por conflitos.
A “detenção administrativa” é um mecanismo legal herdado do Mandato Britânico da Palestina que autoriza a prisão de qualquer pessoa suspeita de ter cometido ou planejar cometer um crime no futuro. A prisão pode ser estendida indefinidamente com base em “evidências secretas”, o que faz com que muitos passem meses e até anos privados de liberdade sem uma acusação formal ou sequer saber pelo que estão sendo punidos.
Segundo Israel, o procedimento é uma forma de conter suspeitos enquanto reúnem evidências, mas organizações de direitos humanos classificam como uma violação ao devido processo legal.
Sistema judicial militar
Os Acordos de Oslo, que levaram à criação da Autoridade Palestina (AP), não eliminaram o sistema judicial militar israelense nos territórios ocupados. Israel mantém controle direto sobre grande parte da Cisjordânia, inclusive permitindo a construção de colonatos ilegais em terras palestinas.
A AP, sob acordos de coordenação de segurança com Israel, é obrigada a compartilhar informações sobre grupos armados palestinos. Mesmo com um código penal e poder judiciário próprios, os palestinos nos territórios ocupados podem ser submetidos aos tribunais militares israelenses, especialmente se acusados de ameaçar a segurança israelense. Isso cria um sistema jurídico dual, com palestinos sendo julgados sob tribunais militares e colonos israelenses sob tribunais civis.
Um prisioneiro palestino recém-libertado é carregado durante uma cerimônia de boas-vindas em Ramallah para prisioneiros libertadas das prisões israelenses em troca de prisioneiros israelenses libertadas pelo Hamas na Faixa de Gaza.
Acusações e consequências
Quando as acusações são apresentadas, frequentemente envolvem atividades “terroristas” ou “incitamento”, abrindo espaço para interpretações amplas e arbitrárias. Infringir leis de trânsito ou permanecer ilegalmente em Israel para trabalhar também pode levar os palestinos ao sistema judicial militar, onde a taxa de condenação é extraordinariamente alta, atingindo 99%.
A disparidade no tratamento judicial entre palestinos e colonos israelitas, que são julgados em tribunais civis, levou a acusações de discriminação e tem sido caracterizada por grupos de direitos humanos como uma forma de “apartheid”.
Enquanto a detenção administrativa persistir e o sistema judicial militar continuar a operar nos territórios ocupados, as questões em torno dos direitos fundamentais e da justiça na região permanecerão no centro do debate internacional.
Com imagens da Aljazira