30 anos do crime impune de Yeltsin e o último herói soviético
O bombardeamento do Congresso Russo é assunto convenientemente esquecido pelos “defensores da democracia”. Mas na Rússia, muitos fazem questão de recordar.
Publicado 12/10/2023 08:00 | Editado 12/10/2023 17:26
O dia 4 de outubro marcou os 30 anos de um crime horrível que é vergonhosamente silenciado: o ataque ao Congresso dos Deputados do Povo da Rússia, em 1993, por ordem de Boris Yeltsin. Vamos relembrar, em linhas gerais, um pouco do que aconteceu. O Congresso dos Deputados do Povo da Rússia havia sido eleito por sufrágio universal e secreto em março de 1990, porém, embora a URSS ainda existisse por ocasião do pleito, o processo eleitoral já representou um afastamento da tradição soviética. Não havia mais debate e seleção pública dos candidatos nas Assembleias Populares e para viabilizar a candidatura bastava ter o nome indicado por uma entidade da sociedade civil. A campanha eleitoral foi ao estilo das democracias burguesas e as mudanças não trouxeram um resultado favorável aos trabalhadores. Como conta Luis Fernandes, no número 31 da Revista Princípios, em comparação com o último parlamento eleito em 1985 pelas regras soviéticas a representação de operários entre os deputados caiu de 35,3% para 5,4%. A de camponeses de 14,7% para 1,6%. A queda da representação feminina repetiu a dos operários. Boris Yeltsin foi eleito presidente do Congresso em maio de 1990. Com apoio da maioria dos deputados durante a campanha, elegeu-se presidente da Federação Russa em junho de 1991 por voto direto da população. Foi o Congresso do Povo que sediou a resistência contra o grupo de insurretos que tentou, em agosto de 1991, preservar a URSS. Também foi este mesmo Congresso que em novembro de 1991, já depois do fim da URSS, deu poderes autocráticos a Yeltsin por um ano. Até então, a mídia ocidental considerava o Congresso dos Deputados do Povo da Rússia um bastião da “democracia”.
Sinal verde para o golpe
No entanto, a gestão Yeltsin era desastrosa. Conta Luis Fernandes, no mesmo artigo já citado, que o valor real dos salários caiu 40% apenas de janeiro a agosto de 1992. A mortalidade infantil subiu de 10,8 por mil para 20 por mil (na década de 1960 era de 6,7 por mil). A produção industrial caiu 19% e a agrícola 12%. Existia, então, um clima de revolta entre o povo. Isso se refletia em cada vez mais deputados e líderes políticos que apoiaram a dissolução da URSS adotando posições críticas, “fomos favoráveis ao fim do comunismo, mas não somos favoráveis à destruição do Estado Russo”, declarou um deles. A esquerda “socialista” que havia sustentado a trajetória de Yeltsin em nome da “democracia” passou à oposição e os comunistas intensificavam a atuação e eram os mais decididos, embora, com o fim do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), estivessem dispersos em várias organizações. No fim de 1992 o Congresso de Deputados do Povo rejeita renovar os poderes autocráticos de Yeltsin. O parlamento passa a derrotar suas propostas de lei e combater suas crescentes violações da Constituição. O Congresso ganha apoio popular e sucedem-se manifestações de massa, ocultadas pela mídia do ocidente, com dezenas e dezenas de milhares de pessoas contra Yeltsin e a favor do Congresso. Em dezembro de 1992 Yeltsin começa sua articulação junto às lideranças ocidentais para dar o golpe contra o parlamento. Recebe, entusiasticamente, sinal verde.
A resistência
A escalada da crise teve muitas voltas e reviravoltas mas o ápice aconteceu no dia 21 de setembro de 1993 quando Yeltsin, sem ter poderes para tal, anuncia a dissolução do Congresso. Os deputados resistem e aprovam o impeachment do presidente, mas o prédio do parlamento (também chamado de Casa dos Sovietes ou Casa Branca) é cercado com arame farpado e tem a eletricidade, água e esgoto cortadas. Como conta Luis Fernandes, a partir daí começaram “gigantescas e combativas manifestações, que furaram o Cerco à Casa Branca e se transformaram em um princípio de insurreição (sob a bandeira da legalidade democrática!) (…) No decorrer deste período, a oposição unificada, sob liderança dos comunistas, se consolidou como centro da resistência ao golpismo”. Do dia 21 de setembro a 03 de outubro de 1993 o Congresso resistiu com apoio do povo. Retornando por um momento aos tempos atuais, no último dia 4 de outubro, em Moscou, em uma cerimônia do Partido Comunista da Federação Russa em homenagem aos “defensores da Casa dos Sovietes”, falou N.M. Kharitonov, que viveu diretamente o episódio histórico. Ele lembra bem do apoio ativo dos moscovitas em outubro de 1993. “Naquela época, foi organizada uma manifestação de cinquenta mil pessoas perto da Casa dos Sovietes em estímulo aos representantes do povo. Dos 1.150, 930 permaneceram no prédio; não aceitaram a decisão inconstitucional de Yeltsin de dissolver o Congresso dos Deputados do Povo. Com a eletricidade cortada, fazia muito frio à noite e os deputados dormiam em cadeiras e se cobriam com jornais. Os trabalhadores de Moscou levaram comida aos defensores da Casa dos Sovietes e arrecadaram dinheiro para eles”.
O “último herói”
E aí podemos retornar a 1993 e contar a história do que é conhecido hoje na Rússia como o “último herói soviético”, Igor Viktorovich Ostapenko. Igor era então um jovem tenente da marinha, com 27 anos de idade, casado e com uma filha recém-nascida. Não era membro de nenhum partido ou organização política. Na noite de 3 de outubro ele estava em sua unidade, na cidade militar de Noginsk-9, a cerca de 70 km de Moscou. Após saber das trágicas notícias, ele reuniu os marinheiros e explicou o que estava acontecendo na capital, instando seus camaradas a resgatar os defensores da Casa dos Sovietes: “Fiz o juramento e deveria estar entre os defensores da autoridade soviética. Não posso ordenar que vocês façam isso. Portanto, só levarei voluntários comigo.” 21 se voluntariaram. Armados, partiram para Moscou em um caminhão. No entanto, a polícia de Yeltsin foi avisada e preparou uma emboscada na estrada. Atacado e cercado por forças muito superiores, depois de uma curta resistência, Igor ordenou a seus homens que cessassem a luta e logo em seguida se suicidou com um tiro. Segundo seus camaradas, suas últimas palavras foram: “Os oficiais soviéticos nunca se rendem!”. Quando os pais de Igor Ostapenko chegaram à sua unidade para recolher o caixão com o corpo do filho, o General de Exército V. I. Varennikov tirou uma medalha do peito e deu-a aos pais de Igor – a Estrela Dourada de Herói da União Soviética. Em Shymkent, sua cidade natal, ele foi enterrado com todas as honras militares, e milhares de pessoas correram para o caixão – russos, cazaques, uzbeques.
Crime consumado
No dia 4 de outubro Yeltsin manda bombardear o parlamento e atacar os manifestantes. No dia 4 de outubro Yeltsin manda bombardear o parlamento e atacar os manifestantes. A ofensiva golpista resultou em 437 pessoas feridas, 147 assassinadas e em toda a Rússia cerca de 90 mil pessoas foram presas (a exemplo do Chile de Pinochet, foi preciso concentrá-las em estádios), além disso, a impressa foi mais uma vez censurada e o arbítrio político se instalou com o fechamento de jornais e diversos partidos postos na ilegalidade. No Brasil, o jornal Folha de S. Paulo festejou, em editorial, o banho de sangue, justificando-o como uma “defesa da democracia”. Quando Yeltsin morreu, em 2007, seu funeral foi assistido por dignatários russos e estrangeiros e altos potentados da igreja, mas o povo fez-se ausente. Enquanto isso, o túmulo de Igor Viktorovich Ostapenko foi transformado em um memorial, com a colaboração financeira de povos de toda a antiga União Soviética, e vive coberto de flores. No comício de Moscou que recordou os 30 anos do crime, o deputado da Duma V.P. Isakov, do PCFR, declarou: “Inclinando a cabeça diante da memória sagrada dos caídos, juramos continuar a luta pelo renascimento socialista da Pátria. Continuaremos a carregar a Bandeira Vermelha da Vitória junto com o povo. Não há perdão para os atos criminosos de Yeltsin e dos seus algozes! Ninguém é esquecido e nada será esquecido!”.
“Não existe garantia mais forte de fidelidade a uma aliança do que os aliados terem os mesmos inimigos. E que estes sejam poderosos.”
Tucídides, historiador e general ateniense, em História da Guerra do Peloponeso, Século V A.E.C.