Colapso do RJ mostra que recuperação fiscal é cilada para estados

Ministério da Fazenda já anunciou que vai melhorar os termos do acordo, para renegociar as dívidas em condições menos deletérias

Foto: Rafa Neddermeyer/ Agência Brasil

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), ameaça dar um calote bilionário na União em 2024. Em reunião nesta terça-feira (3) com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em Brasília, Castro voltou a implorar ao governo Lula (PL) que revise o Regime de Recuperação Fiscal (RFF) – um dos entulhos ultraliberais da gestão Michel Temer (MDB).

Idealizado com as tintas do mercado financeiro, o RFF é um acordo no qual estados aceitam fazer um ajuste fiscal dos mais ortodoxos para, em troca, renegociar o pagamento da dívida junto à União. Enquanto estiver em vigor, o regime leva a uma série de medidas “austericidas”, como privatizações, suspensão de concursos públicos e congelamento de salários e carreiras no funcionalismo. Ações de empresas públicas podem ser usadas como garantias de novos empréstimos.

Cláudio Castro aderiu a esse “pacto com o diabo” em junho de 2022, a quatro meses das eleições estaduais. Dos R$ 184 bilhões que o Rio de Janeiro devia na época à União, R$ 24 bilhões tinham de ser pagos de imediato. Com a assinatura do RFF, o rombo foi adiado, e o governador não teve muito trabalho para garantir a reeleição ao Palácio Guanabara.

“É um grande passo para o equilíbrio das contas estaduais nos próximos 10 anos”, tuitou Castro, de modo efusivo, no dia da assinatura do acordo. “Depois de 2 anos trabalhando pessoalmente nessa pauta, anuncio com satisfação que conseguimos avançar e solucionar todos os pontos que estavam sendo discutidos.”

Não foi bem assim. O colapso fiscal do Rio de Janeiro se tornou uma bomba-relógio camuflada, suspensa temporariamente, mas não desligada. A dívida do estado continuou a crescer, já que o Regime de Recuperação Fiscal não altera juros ou correções. Em campanha, o governador preferiu vender a imagem de gestor responsável e bem-sucedido, muito embora sua administração já tivesse ciência do caos à vista.

Uma vez reeleito, Castro – que apoiou o ex-presidente Jair Bolsonaro – acelerou a aproximação com Lula e sua equipe. Há vários interesses em jogo, mas, para o governo fluminense, nenhum é mais urgente do que mudar as regras do RFF. Em junho passado, ao se reunir com o presidente no Palácio do Planalto, Castro “passou o pires”. Segundo ele, as medidas eleitoreiras de Bolsonaro haviam prejudicado o Rio, que não tinha condições de honrar a dívida com a União.

No centro da choradeira estavam as leis complementares 192 e 194, de 2022. Para reduzir impostos de combustíveis, energia e telecomunicações, Bolsonaro sacrificou os estados, ao reduzir alíquotas de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Só com essas duas leis, o Rio de Janeiro alega ter perdido R$ 5 bilhões em arrecadação.

Num aceno político, Castro convidou Lula a participar de diversas inaugurações do governo estadual. Em agosto, quando o governador foi vaiado por petistas no Theatro Municipal, durante a cerimônia de lançamento do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o presidente saiu abertamente em sua defesa. Ao menos em público, a relação entre os dois parece harmoniosa.

Porém, no encontro com Haddad, o tom de Castro já era de desespero. Os pagamentos previstos do estado para a União somam de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões neste ano e cerca de R$ 8,6 bilhões em 2024. De acordo com o governador, se não houver mais flexibilização no Regime de Recuperação Fiscal, o Rio terá de optar entre pagar a dívida ou viver uma crise humanitária.

“Entendo as dificuldades que o ministro também tem, mas, se não avançarmos nisso, é quebradeira de novo dos estados, que já estão em situação difícil”, declarou Castro à imprensa, após a reunião. “É um problema que vai causar fome no estado, vai causar atraso de salário – e isso é algo que não podemos deixar acontecer de forma alguma.”

Tanto de Lula quanto de Haddad, Cláudio Castro ouviu palavras de compromisso. Seu discurso, porém, insinua uma corresponsabilização entre os governos federal e estadual pela crise fluminense. Não cola. Além do mais, o governo Lula já demonstrou sua atenção prioritária ao Rio de Janeiro, ao transformá-lo no estado com mais investimentos no Novo PAC.

Goiás e Rio Grande do Sul também aderiram ao Regime de Recuperação Fiscal, submetendo as contas locais a regras draconianas e ortodoxas. Em Minas Gerais, onde o governador bolsonarista Romeu Zema também defende a adesão, a resistência da oposição, dos servidores e do movimento sindical trava o acordo, para o bem da população.

O caso do Rio de Janeiro mostra que o RFF, tal como desenhado pelo governo Temer, é uma cilada para os estados brasileiros. O Ministério da Fazenda já anunciou que vai melhorar os termos do acordo, para renegociar as dívidas em condições menos deletérias. Até lá, já será um avanço se governantes como Castro e Zema deixarem de enganar os eleitores sobre a situação fiscal de seus estados.

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