O governo Allende e os 50 anos do golpe: do sonho à tragédia

O 11 de setembro de 2023 marca os 50 anos do golpe militar no Chile, que derrubou Allende e interrompeu a primeira tentativa de transição pacífica para o socialismo

Salvador Allende. Foto: Reprodução Fundação Astrojildo Pereira

A chamada “via chilena”, que prometia “uma revolução ao sabor de empanadas e vinho tinto”, foi um processo revolucionário único, atraindo olhares e pessoas de diferentes partes do mundo. Todavia, o sonho do socialismo democrático daria lugar a uma ditadura brutal que durou 17 anos, assassinando e torturando milhares de pessoas e transformando o Chile no primeiro laboratório mundial do neoliberalismo.

No dia 4 de setembro de 1970, Allende foi eleito presidente pela Unidade Popular (UP), uma coalizão que reunia socialistas, comunistas e outras agremiações menores. Nas eleições daquele ano, Jorge Alessandri, do Partido Nacional, era o franco favorito. O Partido Democrata Cristão (PDC) escolheu como candidato um integrante de sua ala esquerda, Radomiro Tomic. Allende concorreu com um programa que previa 40 medidas, que iam desde a nacionalização do cobre e a reforma agrária até assistência médica gratuita e a concessão de um litro de leite para cada criança. Após uma eleição acirrada, Allende foi eleito com 36,3% dos votos. Alessandri obteve 34,9% e Tomic, 27,8%. Ele obteve apenas 39 mil votos a mais do que o segundo colocado.

Ao ser empossado, no dia 4 de novembro de 1970, Allende e a esquerda chilena estavam completando uma longa jornada que se iniciara nos desertos de nitrato um século antes. Aos 62 anos, esse senhor de óculos fundos, bigode e bochechas de avô já era reconhecido em todo o mundo como um veterano revolucionário da América Latina. Após dezoito anos e três derrotas na tentativa de alcançar a presidência, o povo entrava com o “companheiro presidente” no La Moneda.

Trabalhadores em manifestação de apoio à eleição de Salvador Allende. Santiago, Chile, 5 de setembro de 1964.

O programa da UP previa quatro importantes reformas estruturais que, em conjunto, levariam ao controle social dos principais setores da economia: a recuperação das riquezas minerais básicas do país, como o cobre; a nacionalização dos bancos; a socialização de empresas estratégicas e uma reforma agrária. Essas reformas eram o cerne da Revolução Chilena. Ao tomar conhecimento do programa da UP, Zhou Enlai, o primeiro-ministro da China, escreveu uma carta a Allende: “Vocês querem fazer tudo isso num tempo tão curto com uma imprensa livre, um parlamento e os Estados Unidos na oposição? Estão indo rápido demais”. Ao contrário do que Fidel recomendara, o governo da UP daria passos demasiadamente revolucionários.

Em julho de 1971, o governo Allende aprovou emenda constitucional nacionalizando a indústria do cobre. Nem mesmo os direitistas se atreveram a votar contra a medida. Allende celebrou a votação como o “Dia da Dignidade Nacional”, referindo-se a ela como a “segunda independência do Chile”. Essa seria uma das poucas mudanças estruturais que a ditadura de Pinochet não reverteria.

A estatização do sistema bancário ocorreu mediante a compra de ações dos bancos privados pela Corporación de Fomento de la Producción (CORFO), criada por Aguirre Cerda em 1939, com a finalidade de promover a industrialização do país. Um ano após a posse de Allende, seu governo controlava 90% do setor bancário chileno.

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O programa socialista da UP propunha a criação de uma Área de Propriedade Social (APS) dirigida pela CORFO no caso das empresas mais estratégicas. Algumas delas seriam de propriedade do Estado, enquanto outras teriam um misto de participação pública e privada. Allende utilizou decretos e leis de décadas anteriores, mas a legalidade dessas medidas seria questionada e se tornaria um ponto de conflito permanente com a oposição e o Poder Judiciário.

O programa da UP previa uma reforma agrária gradual ao longo dos seis anos do mandato de Allende. No entanto, a inquietação e a pressão de baixo fizeram o governo acelerar a reforma. Em meados de 1972, 70% das expropriações já tinham sido realizadas. Assim, o governo Allende foi responsável pela reforma agrária mais rápida da história sem uma revolução violenta.

Em 1971, as perspectivas do governo eram positivas. O PIB cresceu 8,5%, e o desemprego caiu de 8,3% para 3,8%. A participação dos assalariados na renda nacional subiu de 42,2% para 50,4%. As políticas de educação, saúde e habitação beneficiaram as camadas populares. Em 1972, as reformas sociais transformaram o Chile em uma das sociedades mais igualitárias da América Latina.

No plano cultural, o movimento da Nova Canção atingiu seu apogeu no governo Allende. Enquanto artistas como Victor Jara, Isabel Parra e Ángel Parra deram voz à experiência dos camponeses e trabalhadores, grupos como o Inti-Illimani e o Quilapayún introduziram instrumentos andinos e sons indígenas na música chilena. O cantor Victor Jara, que tinha fortes vínculos com a UP e pertencia ao Partido Comunista, seria assassinado alguns dias após o golpe militar. Sua vida está registrada na bela biografia “Victor: Uma canção inacabada”, da sua companheira Joan Jara.

Apesar do êxito inicial, o governo cometeu erros que levariam a uma situação econômica caótica e à perda do apoio da classe média. A rápida estatização da economia causou danos à produção. O aumento do meio circulante faria a inflação disparar e atingir os três dígitos em 1973. À escassez de bens de consumo, o governo Allende respondeu criando as Juntas de Abastecimiento e Precios (JAPs), garantindo uma cesta básica à maioria dos chilenos.

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Com o agravamento da crise, Allende procurou dialogar com o PDC. As negociações passavam pela discussão de uma reforma constitucional que reverteria o processo de socialização da economia. O Partido Comunista apoiava um entendimento com o PDC. No entanto, o Partido Socialista opunha-se a qualquer acordo. O assassinato de Pérez Zujovic, ex-ministro de Frei, por um suposto grupo de extrema esquerda, foi explorado pela direita e afetou as relações do PDC com a UP.

A batalha pelo Chile saía cada vez mais dos salões do Congresso e ia para as ruas. Como no Brasil de 1964, a classe média foi instrumentalizada e realizou a “marcha das panelas vazias”. Surgiu o “Pátria y Libertad”, grupo paramilitar cuja pretensão era disputar as ruas de Santiago, tradicionalmente ocupadas pela esquerda. Por outro lado, cada vez mais camponeses e trabalhadores administravam seus locais de trabalho, moradores da periferia dirigiam seus bairros, povos indígenas desafiavam décadas de discriminação e opressão.

Em outubro de 1972, ocorreu a greve dos proprietários de caminhões, que logo recebeu a adesão de médicos e outras associações profissionais de classe média. O lockout geral tinha o objetivo de criar as condições para o golpe de Estado. Allende respondeu às ameaças incorporando as Forças Armadas ao gabinete e mobilizando a classe trabalhadora. O general Prats assumiu o ministério do interior e a vice-presidência. A mobilização popular em apoio ao governo foi extraordinária, mas insuficiente para deter o avanço da sedição.

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A UP estava dividida em relação à estratégia a ser seguida. A “revolução vinda de cima” estava paralisada no Congresso. A “revolução vinda de baixo” havia salvo o governo, mas a visão original de Allende de um caminho democrático para o socialismo parecia bloqueada. A ala radical da UP, liderada pelos socialistas, estimulava Allende a esquecer a “via chilena” e a aliança ilusória com a classe média e colocar-se na liderança do avanço revolucionário. A ala moderada da coalizão, liderada pelos comunistas, era favorável a um acordo com o PDC e à consolidação do conquistado.

O contexto internacional não permitia o êxito da “via chilena”. Os Estados Unidos cortaram todas as linhas de crédito em retaliação às medidas do governo Allende. Os projetos iniciados durante o governo Frei foram paralisados. O “embargo invisível” visava desestabilizar a democracia e pressionar os militares a superar sua neutralidade constitucional, conduzindo-os à intervenção política. Ao se referir ao bloqueio externo, o grande poeta Pablo Neruda dizia que o Chile era um “Vietnã silencioso”. Em dezembro de 1972, Allende denunciou a agressão imperialista na ONU. O governo da UP voltou-se para a URSS, que não tinha condições efetivas de ajudar o Chile. A solidariedade cubana era insuficiente para romper o cerco internacional.

Em março de 1973, a oposição tentou transformar as eleições parlamentares em um plebiscito sobre o governo Allende. Apesar do caos econômico e social, a coalizão governista recebeu 44% dos votos, enquanto a oposição amealhou 55%, distante dos 76% necessários para aprovar o impeachment no Congresso. Ao final, prevaleceu o impasse: o governo continuava minoritário e a oposição sem força para derrubá-lo pelas regras do jogo democrático.

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Em 29 de junho de 1973, houve uma tentativa de golpe militar por parte da extrema direita, rapidamente reprimido pelo general Prats e pelas tropas leais ao governo, que incluíam o general Augusto Pinochet. O chamado “tancazo” foi a cena de abertura do ato final da batalha pelo Chile, cujo clímax seria o golpe de 11 de setembro.

Em 22 de agosto de 1973, a oposição aprovou na Câmara dos Deputados uma moção condenando o governo por “romper a ordem constitucional”. Era a declaração que os conspiradores civis e militares precisavam para proporcionar cobertura política para o golpe. Uma semana depois, Tomic publicou uma carta profética, comparando os líderes do Chile a personagens de uma tragédia grega: “todos sabem o que vai acontecer, mas cada qual faz exatamente o necessário para que aconteça a desgraça que se pretende evitar”.

Os planos de conspiração militar avançavam, e o general Prats era o único obstáculo a um golpe. Pressionado pelas esposas de oficiais do alto escalão das Forças Armadas, os generais do Exército se recusaram a seguir apoiando Prats, que não queria dividir o Exército. No dia 23 de agosto, ele renunciou ao cargo de comandante-em-chefe em. Em seu lugar, assumiu Pinochet.

No dia 4 de setembro de 1973, uma multidão de 800 mil pessoas desfilou pelas ruas de Santiago em apoio ao governo, na maior manifestação política da história chilena. O presidente estava planejando convocar um plebiscito e, caso a UP perdesse, renunciaria. Temendo que a proposta de Allende reduzisse as tensões políticas e dividisse a oposição, as Forças Aramadas resolveram antecipar o golpe de Estado, previsto inicialmente para 18 de setembro.

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O golpe teve início na madrugada de 11 de setembro, com um levante da Marinha. Às 7h35, acompanhado de poucos assessores e da escolta pessoal, Allende chegou ao La Moneda. Tentou falar com Pinochet, e não conseguiu. Temia que tivesse sido preso. Somente às 8h30, quando soube de que lado estava o general, Allende perdeu a esperança de contar com o Exército. Seriam cerca de doze guardas com armas pequenas contra tanques, aviões e tropas das Forças Armadas. Com o AK-47 que Fidel havia lhe presenteado, Allende se preparou para comandar a resistência heróica.

Pouco depois das 10h, Allende fez seu último pronunciamento, um dos discursos mais importantes da história latino-americana. Suas palavras representavam a despedida de um homem que se dispunha a morrer, dignamente, no seu posto: “Diante destes fatos só me cabe dizer aos trabalhadores: Não vou renunciar! (…). Não se detêm os processos sociais nem com crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos”.

Em torno das 12h, jatos da Força Aérea Chilena bombardearam o La Moneda. Nas ruínas ardentes do palácio presidencial, Allende despediu-se dos seus companheiros e dirigiu-se ao Salão Independência. Os corredores do palácio esvaziado ouviram um grito: “Allende no se rinde, mierda!”. Com seu gesto, Allende privou os golpistas de seu prisioneiro político especial, negando ao regime militar legitimidade constitucional. Como cantou Pablo Milanés em uma bela canção dedicada a Allende, “cesó por un momento la existencia, morías comenzando a vivir”.

Salvador Allende sempre soube que lutava sobre o fio da navalha, que seu esforço para encontrar o caminho adequado para a transição democrática ao socialismo envolvia um grande risco. O projeto da UP era muito generoso e comoveu milhões de pessoas no mundo. No entanto, o Chile sofreu as consequências da tentativa de implantação do socialismo em um país dependente dentro da economia mundial capitalista. Apesar do desfecho trágico, Allende e a UP seguem vivos na memória de todos aqueles que lutam contra as injustiças e insistem em sonhar com uma sociedade mais justa e fraterna.

A íntegra deste texto está disponível no site da Fundação Maurício Grabois. Para ler, clique aqui.

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