Há cinquenta anos, em Santiago do Chile

Depoimento contundente, exclusivo ao Portal Vermelho, relembra o terror da ditadura que sobreveio ao golpe militar no Chile que hoje completa 50 anos

Membros do governo de Allende são presos no Golpe. Foto: reprodução internet

Há cinquenta anos. Embora pareça muito tempo, ainda não fico à vontade quando lembro daqueles momentos trágicos, cujas memórias me transportam aos mais dolorosos acontecimentos por que passei em toda minha vida.

O Chile. Após o golpe engendrado nos Estados Unidos que em 1964 derrubou o Presidente João Goulart, assim como outras democracias na América Latina, o Chile estava na mira dos perseguidos políticos que sobreviveram aos massacres ordenados pela ditadura. Chegar ao Chile, a partir de 1968, quando da promulgação do AI-5, era meta dos que corriam risco de vida, por suas ações contra o regime de exceção imposto pela ditadura.

Nasci em 1947 no Rio de Janeiro. Sou professora licenciada em História, pela UERJ. Em 1973, trabalhava como professora da Rede Estadual e tinha um curso particular. Sempre fui de esquerda, até porque sou canhota. Sempre preocupada com as desigualdades sociais, era ligada à ALN – Ação Libertador Nacional, onde contribuía no âmbito de apoio logístico. Hoje sou militante de Direitos Humanos e atuo no Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. Sou fundadora e moderadora do grupo Os Amigos de 68. Aposentada?

No início de 1973, no Rio de Janeiro, meu então companheiro Luiz Carlos Guimarães, jornalista, foi sequestrado pela ditadura. Sequestrado. Sequestrado. Esse tipo de ação de ditadura era ilegal, clandestina. Ninguém sabia para onde os “presos” eram levados e, em seguida encapuzados, violentados, torturados, muitas vezes, até a morte. Muitos eram assassinados. A crueldade da ditadura brasileira criou a figura do desaparecido político: pessoa sequestrada, assassinada cujo corpo nunca era encontrado. 

Depois de passar pela fase do “pau”, da tortura, no DOI-CODI do Rio e na OBAN de São Paulo, ele foi transferido para o DOPS, onde o vi pela primeira vez desde aquela manhã de abril do dia em que a PE o sequestrou na porta do Correio da Manhã. Ainda estava muito machucado, com manchas de hematomas e feridas oriundas dos choques elétricos e espancamentos. Magro e abatido. Menciono as marcas físicas. Nunca esquecerei do olhar fugidio dele, tentando esconder o horror por que passara. Quase milagre o fato de ele estar vivo, já que era militante da ALN, do GTA – Grupo Tático Armado. Temos ciência de que os governos militares que tomaram o poder em 1 o de abril de 1964, orquestrados pelo governo estadunidense, cometiam todos os tipos de ilegalidade e atrocidades com supostos opositores do regime: sequestravam, mantinham presos, torturavam, assassinavam, executavam pessoas e, ainda, desapareciam com seus corpos.

Um general amigo conseguiu o relaxamento da prisão dele, para que ele respondesse ao processo em liberdade, mas não podia garantir nada. Tínhamos que agir rápido. No dia seguinte à soltura, soubemos que a PE foi procurá-lo, de novo, no Correio da Manhã, onde ele trabalhava como jornalista.

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Assim, quando meu companheiro Luiz Carlos foi solto, quando ele saiu do DOPS, entramos os dois na clandestinidade e decidimos deixar o país. Tínhamos pressa, pois ele poderia ser preso, outra vez, a qualquer momento. Não havia tempo para esperar. Tínhamos muita pressa de abandonar o país. Iríamos para o Chile. Estávamos vivos.

Por terra, de ônibus, carro ou carona, depois de mil e uma peripécias chegamos a Buenos Aires. Ambos sem passaporte. Ele com documento falso, eu com carteira de identidade. Essa viagem e a estadia na Argentina constituem outros episódios. Em Buenos Aires onde estávamos, em agosto de 1973, recebi de um amigo meu passaporte.

Inverno. Muito frio. Adorei aquela linda cidade. Apesar da ótima hospitalidade e carinho dos argentinos, sentíamo-nos inseguros em Buenos Aires, recém-saídos do Brasil. Ele, da prisão, tortura e do medo da morte. Tínhamos receio de sair na rua por causa de nossos documentos, especialmente ele, por estar com identidade falsa.

Finalmente, com a obtenção do meu passaporte, resolvemos viajar para o Chile, depois de receber notícias daquele país. O povo chileno era legalista e lá não aconteceria nenhum golpe, apregoavam. Primeiro, de Buenos Aires a Mendoza, fomos de ônibus. De Mendoza a Santiago, viajamos de trem. Muito frio e, por causa das greves de transporte, tornou-se jornada mais que longa, onde me impressionou a imponência dos Andes, cordilheira masculina, com certeza. Andes. Másculo, colossal, alto, forte, quase sem vegetação, seco, duro, silencioso … lindo e assustador!

Sem tempo hábil para acalmar as águas turbulentas, turvas das emoções, as mudanças muito rápidas e radicais na vida, mundo que ficou para trás, sem falar no perigo de morte. Ainda muito abalados com a prisão, torturas, saída do Brasil, curta permanência/passagem pela Argentina, passaporte na bolsa, sem uso, chegamos poucos dias antes do golpe. Santiago, cidade singela emoldurada pelos mistérios dos Andes. Na viagem, ninguém, nenhuma autoridade pediu, para verificação, aquele meu passaporte virgem.

Ainda me emociono, me perturbo com essas lembranças da saída do Brasil, chegada e vivências (morrências) no Chile: medo, medo, coragem, tristeza, ansiedade…

Muita alegria e alívio em Santiago ao rever os amigos companheiros! Fomos acolhidos na casa do Reinaldo que vivia com a Dora, Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Reinaldo, meu ex-cunhado e grande amigo. Muito, muito frio.

Difícil, para mim, falar do Chile ou do golpe ou daquele filme vivo de terrores, ou da cidade cheia de cachorros abandonados. Hordas de cães nas ruas, nas esquinas, magros, esquálidos.

Naquele fatídico dia 11 de setembro, estávamos na casa do Reinaldo e da Dora, na Calle Ejército, onde morávamos – tínhamos chegado a Santiago há umas poucas semanas, no fim de agosto. O Reinaldo e a Dora não saíram de casa conosco. Depois de algum tempo, entraram na Embaixada do México.

A Lenise apareceu de manhã cedo com a notícia do golpe e foi embora…  Acordamos, naquela manhã, com a companheira Lenise que chegou, nervosíssima, e avisou: “O golpe! O golpe!”

Dia 11 de setembro de 1973. Tinha começado a segunda fase de terror da minha vida. Ligamos o rádio e ouvimos o discurso de despedida do querido presidente Allende. Teve início implacável perseguição e caça aos estrangeiros. Para não sermos presos, por segurança, com receio de delações, já que a vizinhança sabia que o Reinaldo e a Dora eram oriundos do grupo dos setenta revolucionários chegados em 1971, saímos da casa deles e rumamos para a casa da Lilliam e do Jaime. Lá, todos estaríamos a salvo.

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Apartamento no Centro, Calle San Martin perto da sede do Partido Socialista, em frente ao Corpo de Bombeiros. Manhã cinzenta. Simulando naturalidade, saímos dois a dois, apressadamente devagar, caminhamos em meio aos tiroteios, ouvindo rajadas de metralhadora. Estrondos. Lembro-me como se fosse hoje e entristeço-me sobremaneira.

Naquele momento, ingênuos, não imaginávamos o teor da crueldade, da violência, da destruição e dos horrores que o golpe iria levar ao Chile e à América Latina. Avaliação impossível de ser feita naquele dia.

Nunca mais vi a tão solidária querida companheira Dora. Ela e o Reinaldo refugiaram-se na embaixada do México, em Santiago. Em 1o de junho de 1976, ela se suicidou em Berlim.

No dia seguinte ao golpe, 12 de setembro, de tarde fomos presos todos da casa. Éramos sete brasileiros, estrangeiros naquele país aviltado pela sanha que patrocinava a subversão da ordem constitucional e tomada de poder por militares raivosos. Junto com dezenas de objetos úteis e inúteis, como cigarros, dinheiro, relógio de pulso, utensílios de cozinha e tubos de tinta óleo, meu passaporte foi surrupiado pelo pelotão de carabineiros chefiados pelo Capitão Gallardo que invadiu o apartamento. Aos berros, aos empurrões, armados até os dentes.

– Manos arriba! Manos arriba! Manos arriba!

Fomos agredidos fisicamente e ameaçados de morte porque éramos estrangeiros. Revistaram minuciosamente a casa e, apesar de não encontrarem nada suspeito, continuaram a nos bater. Jaime, Lilliam, Luiz Carlos Guimarães, Eliete Ferrer, Lu, Leyla e Serjão. Éramos sete prisioneiros.

Depois, agressivos, empurraram-nos até o terraço do prédio e nos colocaram lado a lado, junto com alguns uruguaios, também moradores do edifício. Fomos ameaçados de morte por meio de fuzilamento. Depois de duas ou três tentativas, percebemos que era encenação. Até então, seríamos fuzilados!!! Somente se percebe a farsa no fim.  Todos nós tínhamos sido “denunciados” por vizinhos chilenos.

Terror

Depois, meu companheiro e os rapazes foram capturados e levados não sabemos para onde. Nós, as três jovens mulheres, formos levadas de volta para o apartamento onde houve tentativa de estupro por parte do capitão Gallardo. Muita violência! Terror.

Nós, três moças, duas irmãs e eu cunhada, apavoradas depois da simulação do fuzilamento, empurradas, atropeladas, pelos carabineiros até a porta do apartamento. Acho que a porta tinha batido. Não tínhamos a chave para entrar. O Capitão Gallardo, chefe dos policiais, enfia a mão no bolso, puxa um volumoso molho de chaves e experimenta uma a uma. Logo encontra uma chave que abre aquela porta, para nosso espanto! Terror. Terror com muitos erres. Lilliam, Leyla e Eli. Sós. Sem SOS.

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Aprendi, naquele dia 12, o verdadeiro significado da expressão “tremer de medo”. O corpo todo treme, especialmente as pernas. Para manter-se em pé, ou para disfarçar tal constrangimento, a solução é encostar ou apoiar uma parte do corpo na parede, caso seja possível. Separadas em três cômodos, quando uma de nós fingiu desmaio, os carabineiros bateram em retirada. Não entendo como conseguimos sobreviver àquela tenebrosa noite, agarradinhas em um só corpo, aos prantos.

Dias depois, fizemos várias tentativas de entrar em alguma embaixada. Vãs. As embaixadas estavam cercadas de policiais. A companheira Nazareth nos levou à Cruz Vermelha chilena. Eu ganhei um papel, que conservo até hoje, que equivaleria a uma identidade, onde constava que estava sob a proteção da instituição que chamávamos “Cruz Roxa”, em castelhano Cruz Roja. Todo tempo barulho de tiros, rajadas, bombas. Tanques nas ruas.

Soubemos, mais tarde, que os meninos tinham sido levados para o Estádio de Chile e, posteriormente, para o Estádio Nacional. Não havia certeza de nada. Somente sabíamos que nesse Estádio havia maior concentração dos presos que tinham sido sequestrados em Santiago. Todos os dias eu ia para a Avenida Grécia, a fim de consultar as centenas de listas pregadas nos portões do Estádio Nacional, praticamente cercado por carabineiros e soldados. Jamais encontrei os nomes dos nossos queridos nas várias vezes que estivemos na porta daquele Estádio. Centenas de pessoas procuravam familiares e amigos, não obstante a apreensão e o medo. Levamos roupas, comida, escovas de dente e sei lá mais o quê. Entregamos esses objetos às mulheres da Cruz Vermelha. Eles nunca receberam tais provisões. Estrondos. Rajadas.

Não tínhamos quaisquer notícias dos que, supostamente, estavam presos. Estariam, realmente, presos? Onde? Estavam vivos? Olhos arregalados. Tinha muito medo de ir lá, no Estádio, pois não tinha documentos, já que os carabineiros levaram meu passaporte. Portava aquele papel da Cruz Vermelha que, na realidade, não valeria nada, naquelas circunstâncias. Eu era alta, esguia, morena e não tinha aparência chilena. Nas ruas, patrulhas revistavam qualquer um. Estampidos.

Na embaixada do Brasil em Santiago, quando pedi ajuda, fui tratada como um bicho com doença contagiosa.

Assim que houve abertura do aeroporto, chegaram, para nossa salvação afetiva, o Simões, pai de Lilliam e do Reinaldo e os pais do Jaime. O Simões é e sempre será meu grande amigo sogro. Em 1968, casei-me, pela primeira vez, com o filho mais velho dele e da Margot, eterna sempre amiga – e sogra segundo as regras do Direito Civil. O casamento foi cedo “para as picas”, mas a amizade com os familiares é perene. A minha ligação com a Margot constituiu extraordinário capítulo à parte na minha vida – hors-concours. Desde que a conheci, até seus últimos dias na face da terra, fomos grandes amigas.

Levadas pelo Simões, transferimo-nos para um hotel, apavoradas por estar em local, cuja porta poderia ser aberta com o molho de chaves do chefe do grupo de carabineiros que tinha invadido o apartamento. Certo dia, de táxi, fui outra vez até os portões do Estádio Nacional para consultar as famigeradas listas. Perigo. No caminho, entreguei um papel ao motorista, quando nos aproximamos de uma das várias patrulhas que allanavan, revistavam veículos. No papel, escrevi meu nome e o nome do hotel onde estávamos. Pedi que ele avisasse o Simões, caso eu fosse levada pelos policiais.

Nunca encontrei o nome do Luiz Carlos Guimarães nas centenas de listas. Risco. Desespero. Coração na boca. Nosso carro não foi parado. Tiros.

No dia 29 de setembro, creio, entramos eu e a Lilliam em Padre Hurtado, convento que se tornou um dos refúgios, “meio” protegidos pela ONU, isto é, pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, abertos em Santiago. Meu queridíssimo Simões, protetor, eterno sogro amigo, nos acompanhou até lá. Saudade. Medo. Angústia. Ansiedade. A Leyla voltou para o Brasil com o Simões. Depois que chegou, foi presa, em casa, no Rio.

A primeira pessoa que encontrei em Padre Hurtado foi o Érik, hoje Castor, sempre Roberto. Era amigo de muito, muito antes. Procurado pela polícia política, com seu retrato em cartazes espalhados pelo Brasil inteiro, às vezes, escondia-se lá em casa, no Rio. Saía sem ser visto. Dormia com o revólver ao lado do travesseiro. Sempre gostei muito dele. Adorei vê-lo. Seu rosto, um acolhimento naquele momento apreensivo, inferno futuro indeterminado. Os carabineiros podiam invadir a qualquer momento aquele lugar. Rajadas. Tiros.

Depois do Chile, de Padre Hurtado, nunca mais tive prisão de ventre.

Éramos muitos, estrangeiros de todas as nacionalidades: brasileiros, uruguaios, argentinos, bolivianos, paraguaios, costarriquenhos, etc. Alguns chilenos clandestinos também. Quase quinhentos éramos. De todas as idades, jovens, homens, mulheres, crianças e idosos. Muitas crianças e alguns nenenzinhos ainda de colo. Não havia, que eu lembre, nenhum europeu. Os cidadãos de países europeus foram protegidos pelas suas representações diplomáticas.

Dormíamos sob aquelas rajadas de metralhadoras que não acabavam mais. Terror. Eu e a Lilliam dividíamos um quarto. Muita gente que eu pouco conhecia. Desconfiança generalizada. Todos ou quase todos desmontamos as maçanetas das portas, que não tinham chave. Trazíamos conosco, sempre, a maçaneta do nosso próprio quarto. Todos. As maçanetas, iguais, cabiam em todos os quartos. Estrondos. Aquilo era um circo maluco ou um jardim zoológico. Em Padre Hurtado, eu vomitava quase todos os dias, no final da tarde.

Monsieur Lehnan (não tenho certeza se é esse seu nome), representante da Cruz Vermelha Internacional ou do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, suíço casado com brasileira, aparecia para nos visitar, com informes. Certa vez, ele chega ao refúgio com notícias do Estádio Nacional. Todos o cercam ávidos por informações. No meio da fala, ele abre a pasta e tira um livrinho. “Eu trago uma coisa que me deu um brasileiro no Estádio Nacional”, ele diz. “Quem é Eliete?”, pergunta, em seguida. Dei um passo à frente e disse: “Sou eu”. Ele abriu o passaporte, olhou meu rosto e me deu o documento. Caraca! Surpresa, emocionada, eu o abracei e dei-lhe um beijo no rosto, assim… Ele ficou vermelho, porque era um cara, realmente, muito branco, cabelo avermelhado, ruivo. Ficou vermelho, vermelho, como um camarão. “O senhor me desculpe, mas eu fiquei tão radiante!” Chorei para caralho.

Sempre tive vontade de encontrá-lo outra vez. Eternamente lembrarei daquele rosto rubro olhos azuis que trouxeram de volta minha pretensa identidade brasileira.

Somente na Suécia, o Luiz Carlos me contou, em detalhes, o que tinha acontecido. Sequestrados em Santiago, eles foram levados para uma delegacia. Enorme fila de estrangeiros e chilenos na espera… Fuzilamentos. Aquele pessoal todo na fila da morte ou coisa parecida… Muita gente, depois, foi morta. Dezenas de carabineiros circulando. Confusão. Pilhas de papéis e passaportes em cima de uma mesa. Um meganha, lá na frente, lia nomes e entregava documentos. “Eliete Ferrer”, ele gritou. O Luiz Carlos, na fila, respondeu “Yo”. O policial não percebeu que o nome era de mulher e nem abriu para conferir a foto. Milagre. Deram para o meu companheiro o livrinho verde e ele o guardou. Esse passaporte foi salvo não sei como.

O Luiz Carlos, asmático de carteirinha, tinha uma inseparável caixinha de couro, que tenho até hoje, onde guardava sua bombinha de asma. Nesse estojo muito elegante e todo forrado de cetim cabia não somente a bombinha mas, também, o vidro do remédio, a mangueirinha e a pera de borracha para insuflar. Refiro-me à bombinha usada antigamente. No Brasil, antes de sairmos, descosemos o forro e, sob o tecido, no fundo, foram escondidos os documentos verdadeiros dele. O meu verdinho não coube naquela caixinha mas permaneceu incólume, escondido na cueca, durante a passagem do meu companheiro pelo terror do Estádio de Chile e depois no Estádio Nacional.

Os militares chilenos não aprovavam a ingerência de espiões tupiniquins no Estádio Nacional. “Dessa vez você não me escapa”, disse-lhe o capitão “Mike”, torturador brasileiro conhecido de muitos, ao reconhecer o meu companheiro entre os prisioneiros em uma fila. Aquele monstro, de longe, fez sinais ao inquisidor chileno para que impedisse o Luiz Carlos de fumar. Ato contínuo e acintosamente, o policial, contrariado com a presença brasileira, ofereceu cigarros ao interrogado. Entretanto, mais tarde, junto com outro brasileiro, ele foi conduzido a certa parte do Estádio para esperar, pois seriam “devolvidos ao governo brasileiro”: portavam identidades falsas e, portanto, ninguém daria pela falta deles. Antes que fossem mortos, os dois conseguiram safar-se, na manhã seguinte, em um momento da troca da guarda. História de horror.

A violência do golpe atraiu organizações de Direitos Humanos Internacionais: ACNUR; CMI – Conselho Mundial de Igrejas; Cruz Vermelha Internacional; Anistia internacional. O Lehman recebeu do Luiz Carlos o livrinho lá no Estádio Nacional e o passou às minhas mãos em Padre Hurtado.

Que loucura era o Refúgio de Padre Hurtado!!!!

Todos com muito medo. Medo que os militares invadissem o local, medo de policiais infiltrados e, portanto, medo uns dos outros! Muito delírio, confraternizações, brigas, amores, adultérios, tensões, nervosismos, maluquices escancaradas… Havia três construções: a principal chamada Casa Grande, atrás ficava a “pajareira”, acho que de madeira, mais frágil e, ao lado, um pouco afastada ficavam as celas das religiosas, que chamávamos Vietnam. Eu e Lilliam nos acomodamos em um quarto no Vietnam.

Não tínhamos o que fazer e inventávamos de um tudo. Festas, artesanato, conversas, muitas discussões políticas, jogos… Todo mundo tomado pelo nervosismo, é claro! Certa vez, por exemplo, passei na frente da Casa Grande, sentei-me na escadaria da Casa Grande e comecei a tocar flauta, por volta das onze da manhã. Uma companheira veio até a janela e berrou raivosa:

– Eliete! Você não tem o que fazer não????

As refeições eram preparadas pelo pessoal do convento, intragável para alguns. Para resumir, houve de tudo em Padre Hurtado. Consolidaram-se amizades. Formaram-se lideranças. Um cidadão uruguaio mantinha um cabrito no quarto. Um grupo patrocinou uma grande festa com fogueira e vinhos do padre. Uma equipe nossa fazia revistas regulares nos quartos. Uma criança morreu afogada na piscina. Certa vez fomos despertados por terremoto…

Ficamos até meados de novembro quando viajamos para a Suécia, onde nos fixamos.

Nunca mais porei meus pés no Chile e não desejo que meu pior inimigo passe pelo que passei.

O capitalismo não perdoa. A humanidade resiste e esperneia.

Respirar é resistir. Existir é resistir.

À Resistência!

Viva a Humanidade!

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