China passa por cima de preconceitos ocidentais para expandir BRICS

Visto como bloco pró-China no Norte Global, BRICS mostra que a disposição do gigante asiático é mais complexa do que a caricatura que faz a imprensa ocidental

MOmento de descontração entre Lula, Xi Jinping e Ramphosa na cúpula BRICS de Joanesburgo.

A dimensão econômica da China comunista nos BRICS a destaca muito além de todos os demais países do bloco. Na mesma proporção em que suas articulações com países amigos preocupam Washington, a União Europeia e a OTAN. A Casa Branca se esforça para provocar a hostilidade chinesa, que quase sempre responde com sua paciência milenar. Não sem uma demonstração de seu poderio econômico e bélico, como também de uma retórica de orgulho ferido.

Por este motivo, é difícil falar de BRICS sem colocar o C da sigla na frente, seguida do R de Rússia, que segue numa campanha afrontosa e estável de guerra na Europa. Dois componentes ideológicos e nacionais que afetam as decisões do bloco a cada cúpula que realiza. Cada país membro precisa medir palavras para manter a neutralidade na relação com os parceiros ocidentais, EUA e Europa.

Imagem internacional

Mas é sabido que a narrativa hegemônica no Ocidente, tanto no Norte, quanto no Sul Global, é de tentar encaixar a China num imagem caricata de país autoritário, imperialista e anti-americano que ela não aceita. Aparentemente, os EUA criaram um marketing para acusar a China daquilo que eles mesmos fazem o tempo todo. 

Como o valentão que aprende que é melhor xingar os colegas de escola como precaução, antes que usem o mesmo xingamento contra ele. É assim que a China, que não é conhecida por alimentar conflitos armados mundo afora, é tratada pelos EUA como se fosse a maior ameaça bélica, entre outros xingamentos. 

Em vez disso, a China tem sido reconhecida por seus parceiros comerciais pela paciência, cordialidade e disposição por cooperar e exercer um comércio justo com o resto do mundo. Criou a Iniciativa de Cinturão e Rota, uma espécie de nova “Rota da Seda”, para beneficiar a infraestrutura de várias partes do mundo, com objetivo de facilitar o amplo comércio entre os parceiros. 

A parceria China e Índia

É esta visão controversa da China que salta aos olhos do mundo nesta última cúpula dos países BRICS em Joanesburgo, África do Sul. O encontro de líderes que acabou nesta quinta (24), demonstrou que nenhuma das apostas contra o bloco vingaram.

A Declaração de Joanesburgo dá uma demonstração clara disso em seu sétimo item. Colunistas fofoqueiros, com fontes duvidosas, diziam que o Brasil só apoiaria a expansão do BRICS se houvesse uma clara afirmação em defesa de sua entrada como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Algo que todos duvidavam que a China apoiaria, afinal, isso significaria apoiar a entrada da Índia, também. China e Índia disputam de forma hostil suas fronteiras.

Mas a declaração saiu, inequivocamente, apoiando uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, “com vista a torná-lo mais democrático, representativo, eficaz e eficiente”. Para isso, o BRICS quer “aumentar a representação dos países em desenvolvimento nos membros do Conselho”, apoiando as “aspirações legítimas” dos países emergentes e em desenvolvimento de África, Ásia e América Latina, “incluindo o Brasil, a Índia e a África do Sul”, de desempenharem um papel mais importante nos assuntos internacionais.

Cooperação e não subordinação

Xi Jinping, o líder chinês, que sempre defendeu a diplomacia de ganha-ganha de seus aliados e parceiros, reforçou, neste último dia da cúpula, estes valores. Esta postura soa atraente especialmente para países mais pobres ou emergentes, que são tratados com condicionantes perversas dos organismos financeiros como FMI e Banco Mundial, subordinados aos EUA.

Xi fala em busca de autonomia dos países do BRICS, com defesa dos direitos ao desenvolvimento e à modernização. Ele diz que o espírito do BRICS é de abertura, inclusão e cooperação de ganhos compartilhados, “e levaram a cooperação do BRICS a novos patamares, contribuindo para o desenvolvimento dos cinco países”.

Os países do BRICS, disse Xi, salvaguardam a equidade e a justiça nos assuntos internacionais e defendem o que é certo nas principais questões internacionais e regionais, aumentando a voz e a projeção dos mercados emergentes e países em desenvolvimento.

“Os países do BRICS não negociam princípios, nem se submetem à pressão exterior e jamais se deixam ser vassalos dos outros”, disse ele, acrescentando que eles possuem amplos consensos e objetivos comuns. “Todos os países do BRICS, precisam ajudar a reforma da governança global e torná-la mais justa e equitativa, a fim de trazer ao mundo mais certeza, estabilidade e energia positiva”, afirmou o presidente chinês.

Toda esta retórica pode ser ouvida de governos ocidentais neocolonialistas. Mas a China tem a vantagem de mostrar isso na prática. Agora, mesmo, anunciou o Parque Incubador China-BRICS para Ciência e Inovação para a Nova Era para cooperar com os parceiros em conhecimento científico, tecnológico e inovador. Uma atitude generosa que os EUA não compartilham, nem em meio a uma pandemia que pode matar milhões por todo o mundo. “Nenhum país deve ser deixado para trás no processo de modernização global”, defendeu Xi.

Guerra e Paz

Desde o início da ocupação russa na Ucrânia, a China expressou sua dificuldade em aceitar um ambiente de hostilidade e desestabilização regional, justamente no momento em que o gigante asiático está tentando se recuperar dos rigorosos lockdowns econômicos da pandemia. Para a China, um mundo em paz é muito mais útil para seu comércio crescente do que um ambiente travado pela circulação de armas. Por isso, a China é um aliado da disposição do Sul Global de trazer o presidente russo Vladimir Putin e o ucraniano Volodimyr Zelensky para uma mesa de negociações de paz, enquanto EUA e Europa lucram cada vez mais com a fabricação de armas.

Por isso, Xi disse que os países do BRICS devem manter a direção do desenvolvimento pacífico e consolidar a parceria estratégica, em que os membros devem fazer bom uso da Reunião de Ministros das Relações Exteriores e da Reunião de Altos Representantes de Segurança e de outros mecanismos, apoiar uns aos outros em questões relativas aos respectivos interesses fundamentais e aprimorar a coordenação nos grandes assuntos internacionais e regionais. “Precisamos fazer bons ofícios nas questões candentes para promover a solução política e acalmar a situação”, disse ele.

Desdolarização

A própria disposição de romper com a polaridade do dólar como moeda de troca hegemônica no mundo, não é  algo que parte da China. Todos os países membros demonstram preocupações profundas e legítimas com o modo como os EUA usam sua moeda e o sistema financeiro internacional para punir e pressionar outros países a se alinharem a seus interesses. 

Ao discursar na cúpula, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa expressou sua preocupação com o fato de os sistemas financeiros e de pagamento globais estarem sendo cada vez mais usados como instrumentos de contestação geopolítica. O novo membro, Irã, é um dos países que sofrem sanções severas no sistema internacional promovidas pelos EUA, assim como a Rússia. 

Desta forma, vai ficando difícil manter a narrativa única de que a China impõe seus interesses, conforme entram países que temem pelos mesmos riscos da ordem internacional vigente. A Argentina também tem muito a ganhar com mudanças nos mecanismos de financiamento baseadas em moedas locais. Mergulhada num endividamento crônico, o país vizinho ao Brasil pleiteia novos empréstimos que vêm da Europa acompanhados de condicionantes insuportáveis para uma economia fragilizada.

Sul Global

É certo que a rica China está no hemisfério Norte e vê o sol nascer primeiro que todo o mundo ocidental. Ter como parceiros países como Rússia e Índia, e agora países do Oriente Médio (Arábia, Emirados e Irã) e da África Oriental (Egito e Etiópia), também forçam o olhar do BRICS para o Oriente e suas demandas.

Mas a presença de países como Brasil, África do Sul e, agora, Argentina, reforçam o papel do bloco como uma voz do Sul Global, visto como o lado do mundo em que se encontram países em desenvolvimento, frequentemente ignorados nas decisões importantes do Norte Global. Neste agrupamento de países não completamente industrializados se incluem os demais países africanos e asiáticos do BRICS.

Ao incorporar os países africanos nas negociações deste ano, o BRICS transmite a mensagem de que o multilateralismo e o desenvolvimento comum devem incluir o Sul Global.

O BRICS mostra que o mundo dominado pelas potências ocidentais está funcionando mal. A pandemia, por exemplo, desnudou as desigualdades estruturais arraigadas e um Ocidente incapaz e indiferente. Sem mencionar uma resposta climática global, entre outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. É questionável se os países desenvolvidos ricos e cheios de recursos podem genuinamente cumprir suas promessas com uma liderança confiável.

O Sul Global, sofrendo com os choques do coronavírus, uma crise em andamento na Ucrânia e os aumentos agressivos das taxas do Fed dos EUA, caiu em si sobre a única saída viável: o autofortalecimento e a interdependência com nações com ideias semelhantes e interesses parecidos.

O cerne dos problemas globais é a concentração econômica que deixa muitas nações à mercê de muito poucas. Como disse o ministro das Relações Exteriores da Índia, Subrahmanyam Jaishankar, a reunião na África do Sul precisa “enviar uma forte mensagem de que o mundo é multipolar e está se reequilibrando.”

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