Argentina: mercado pagou para ver (e viu) o avanço da extrema-direita
Economista Javier Milei, de extrema-direita, recebeu pouco mais de 30% dos votos e liderou as Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias
Publicado 14/08/2023 16:29 | Editado 16/08/2023 07:48
As primeiras notícias na manhã desta segunda-feira (14) na Argentina eram previsíveis. Um dia após as caóticas prévias presidenciais realizada neste domingo (13) e marcadas por elevada abstenção (mais de 30% dos eleitores), o mercado era só alvoroço.
O dólar blue – que é uma referência de câmbio paralelo na Argentina – bateu recorde e passou de 605 pesos para 670. Para evitar uma desvalorização ainda maior da moeda, o Banco Central da Argentina fixou a taxa de câmbio oficial em 350 pesos por dólar. A taxa básica de juros disparou 21 pontos, chegando a 118% ao ano. Títulos argentino no “pré-mercado” de Wall Street desabaram 12%.
Tudo porque o economista Javier Milei, da chapa A Liberdade Avança, de extrema-direita, recebeu pouco mais de 30% dos votos e liderou as Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso). A chapa preferida do mercado, a do partido direitista “Juntos pela Mudança”, teve 28,7%, mas sua presidenciável, a ex-ministra de Segurança Patricia Bullrich, não passou de 16,98% dos votos gerais.
Já os peronistas, representados na chapa União Pela Pátria, alcançou 27,27% dos votos, um pouco mais que seu presidenciável, o atual ministro da Economia, Sergio Massa, que ficou com 21,41%. Foi o pior resultado do peronismo desde a adoção das prévias na Argentina, em 2011.
Os números podem aparentar certo equilíbrio, uma quase empate – 30,04%, 28,7% e 27,27% – e os otimistas podem dizer, com alguma razão, que, no fim das contas, a disputa ainda está em aberto. Mas o fato é que a Argentina é o mais novo país sul-americano a ser tragado pela onda ultradireitista.
Fã declarado de Donald Trump e Jair Bolsonaro – e talvez uma versão piorada de ambos –, Milei se vende como um anarcocapitalista, seja lá o que isso queira dizer. Seu projeto, no entanto, tem um inconfundível odor ultraliberal. O presidenciável quer extinguir o Banco Central, dolarizar integralmente a economia argentina, privatizar os sistemas de saúde e de educação, além de enxugar a máquina pública.
Podem parecer propostas ao gosto do sistema financeiro, mas a experiência de Bolsonaro no Brasil já serve de lição: gestores imprevisíveis são uma ameaça não apenas para o povo – mas até para o rentismo. Se liderarem governos de destruição com fachada populista, tanto pior.
Milei agradou parte do eleitorado porque, como Bolsonaro em 2018, se apresentou como um outsider, ainda que, tal qual o ex-presidente brasileiro, fosse um deputado inexpressivo e desbocado do baixo clero. Por suspostamente não pertencer ao sistema, seu nome seria mais credenciado para enfrentar as “mesmas velhas coisas que sempre falharam”.
Uma de suas eleitoras, a dona de casa Adriana Alonso, de 42 anos, declarou à agência Reuters que escolheu Milei devido à desilusão com os políticos tradicionais. “A inflação está nos matando e a incerteza do trabalho não permite que você planeje sua vida”, afirmou. Hoje, 19,7 milhões argentinos – 44% da população – vivem em estado de pobreza. Curiosamente, Milei é o candidato mais crítico a programas sociais, especialmente os de distribuição de renda.
Com Milei na Casa Rosada, pode haver, sim, uma política de austeridade fiscal, retomando a experiência neoliberal argentina. Mas tudo ao lado de uma permanente instabilidade política e social, já vislumbrada pela maioria dos analistas e agentes do mercado.
Até domingo, por conta das recentes pesquisas de intenção de voto, o “risco Milei” parecia descartado. Sua candidatura parecia perder fôlego, e a aposta era de que a eleição propriamente dita, em outubro, repetiria o tradicional duelo entre direita e esquerda – Patricia Bullrich versus Sergio Massa.
Esta era a tacada do mercado para dar as cartas na economia argentina, depois de apoiar, nos dois últimos anos, as nefastas imposições do FMI (Fundo Monetário Internacional) ao governo de Alberto Fernández e Cristina Kirchner. Nas contas do mercado, a crise abriria caminho para a vitória de Patricia Bullrich, já que Sergio Massa poderia encarnar uma continuidade, e Javier Milei, o caos. Em outras palavras, o mercado pagou para ver (e viu) o avanço extrema-direita, com certa cumplicidade da grande mídia local.
A campanha de Milei foi coordenada por sua irmã Karina, que também é taróloga e a quem o candidato faz consultas para saber, via cartas, se pode ou não pode confiar em algum político. Além do tarô, o presidenciável diz já ter tomado decisões por meio de telepatia. Uma vez eleito, o “Bolsonaro argentino” provavelmente governará por si mesmo – e talvez para si – apenas.
Faltam pouco mais de dois meses para as eleições de 22 de outubro. Como a imagem da polarização do Brasil é exemplar, o peronismo já começou a defender uma frente ampla para impedir a vitória da extrema-direita. “Precisamos do nosso compromisso de que o próximo governo não seja apenas de unidade da nossa coalizão, mas de uma unidade pelo país”, afirmou Massa, ainda no domingo, antes do fim da apuração. A sorte está lançada para os argentinos – inclusive para o mercado.