Hip Hop completa 50 anos celebrando as vidas negras
Eventos em SP celebram o movimento de jovens negros, que começou como uma festinha de volta às aulas e se transformou num movimento estético e cultural global.
Publicado 12/08/2023 10:51 | Editado 14/08/2023 17:38
O movimento hip hop tem como marco zero uma festa de aniversário, em 11 de agosto de 1973, organizada pelo DJ Kool Herc para sua irmã, no bairro do Bronx, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos. O Bronx dos anos 1970 e 1980 tinha uma população formada, majoritariamente, por negros e porto-riquenhos. A região vivia um contexto de pobreza, marginalização social, estigma e omissão do poder público.
Em São Paulo, o movimento será lembrado com um festival no Centro Cultural São Paulo, idealizado pelo DJ KL Jay. Para a cocuradora do festival, a jornalista Leandra Silva, o evento é uma “oportunidade de reverenciar pessoas que estão vivas”, em um mundo que coloca alvos sobre os corpos negros. “Chegar agora ao CCSP é um momento profundo de reafirmação da vida, da vida de pessoas, homens pretos. É extraordinário ver toda essa trajetória. Eles [os artistas que participam do evento] poderiam facilmente ter sido mortos, como Notorius [The Notorius B.I.G.] foi, como Sabotage foi”, pontua.
Com apenas 18 anos, o jamaicano residente em Nova York, Kool Herc, colocou em prática algumas técnicas de mixagem que vinha desenvolvendo ao colocar músicas nos bailes em que era convidado para tocar no início dos anos 1970. Mas não daria para definir o movimento só por uma característica musical. Assim como outros movimentos jovens, como o punk e a disco music que nasciam na mesma época, o que aqueles jovens negros e pobres produziam ia muito além da sonoridade, expandindo para todo o ambiente das artes plásticas, da moda, da atitude política, da poesia, do urbanismo, do esporte, do cinema, da dança e até da gastronomia.
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O que aconteceu na festa de condomínio?
Em 11 de agosto de 1973, o complexo de apartamentos de 102 unidades na 1520 Sedgwick Avenue, no bairro The Bronx, em Nova York, tornou-se mais do que apenas um edifício residencial. Tornou-se o berço de um novo e empolgante gênero musical chamado hip-hop e o início de uma revolução cultural que continua a evoluir, mesmo 50 anos após seu início.
Quando Cindy Campbell decidiu dar uma festa de volta às aulas na sala de recreação deste agora histórico arranha-céu, foi para arrecadar dinheiro para comprar roupas novas para o próximo ano letivo. A taxa de entrada era de 50 centavos para meninos e 25 centavos para meninas; e seus pais forneciam comida e bebida, que também vinham com uma taxa razoável. O mais importante desse evento foi a música, que ficou a cargo de seu irmão Clive Campbell, de 18 anos, ou Kool Herc , como era chamado na vizinhança.
O folheto promocional foi desenhado à mão e dizia “A DJ Kool Herc Party”, em letras grandes e em negrito. Abaixo, lia-se “Back To School Jam” e listava a data, hora e preço, além dos convidados especiais que estariam presentes. Mais de 300 pessoas compareceram ao evento dos Campbell na Avenida Sedgwick. Ninguém tinha ouvido falar do DJ Kool Herc antes daquela noite de verão em agosto, mas no dia seguinte ele era famoso em seu bairro e, algum tempo depois, seria celebrado como o arquiteto do que se tornaria a forma musical mais popular do mundo.
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“A festa foi importante não tanto por causa de seu tamanho ou playlist de Herc ou qualquer dança especial que foi apresentada”, explica Jeff Chang, autor de Can’t Stop Won’t Stop: A History of the Hip-Hop Generation (Não Pode Parar Não Vai Parar: Uma História da Geração Hip-Hop), em uma entrevista de 2013 à Paste Magazine. “[Mas] o fato de ter provocado uma cena que transformou a cultura jovem naquele bairro devastado. A festa de Cindy e Herc aconteceu bem no momento em que as gangues começaram a diminuir e os jovens estavam procurando maneiras de se reunir e se expressar.”
No primeiro mixer do gênero, Herc deu o tom com sucessos como “It’s Just Begun”, de Jimmy Castor Bunch, e faixas clássicas da Incredible Bongo Band, The Isley Brothers, James Brown e muitos mais. O que foi inovador nessa festa foi como as músicas foram tocadas. O DJ jamaicano introduziu uma técnica inédita que chamou de “carrossel”, em que usaria duas versões do mesmo disco para prolongar o intervalo da música – o que permitia que os break boys, ou ‘b-boys’, tocassem a pista de dança e se moviam no ritmo do que estava tocando.
Paralelamente à exibição desse novo e expressivo estilo, a amiga de Herc, Coke La Rock, demonstrou outra inovação de rimar palavras ao ritmo da música, ação que mais tarde seria descrita como “rap”. Também havia a pintura radical que era escancarada com letras gigantescas e coloridas pintadas com latas de spray e dançarinos vestidos com moletons que se contorciam em acrobacias de tirar o fôlego, girando o corpo no chão ao ritmo das batidas enfileiradas pelo DJ. Com a presença do DJ, mestre de cerimônias, b-boys e grafiteiros, um novo gênero nasceu e mudou a vida não apenas das pessoas que estiveram diretamente envolvidas com seu início, mas também alterou o tecido da cultura popular e o indústria da música como um todo nas décadas seguintes.
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Nos anos que se seguiram à fatídica noite de 11 de agosto de 1973, o hip-hop evoluiu dramaticamente. A influência de artistas como Queen Latifah , Snoop Dogg, LL Cool J e Jay-Z, entre outros, tornaram esse gênero ainda em crescimento uma marca global e provou que é muito mais do que apenas música. Tornou-se algo que acabaria por definir uma era – e além.
O que Cindy Campbell e seu irmão DJ Kool Herc criaram há cerca de cinco décadas começou como uma forma de ganhar dinheiro sem ter que recorrer a métodos que alguns diriam definir seu ambiente. Como muitas coisas nos bairros urbanos de todo o país, o hip-hop nasceu da necessidade. Deu voz ao desconhecido e forneceu uma saída de esperança para as pessoas que, por um tempo, acharam esse sentimento muito difícil de encontrar.
“O hip-hop veio de um começo muito humilde”, disse Campbell em entrevista ao Rock the Bells em 2021. “Não começou com dinheiro sujo, dinheiro ilegal ou dinheiro de drogas. Não foi iniciado a partir de nada disso. Estava enraizado em uma base muito forte.”
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Hip Hop paulistano
A capital paulista é palco, a partir deste sábado (12), de um dos eventos que festejam os 50 anos do movimento hip hop, com uma programação que inclui oficinas, mostra de vinis e shows. O Centro Cultural São Paulo (CCSP) irá hospedar, até o dia 30, artistas do Festival Sample – do Clássico ao Original, idealizado pelo DJ KL Jay.
O evento também celebra os 35 anos de carreira de KL Jay, integrante do grupo de rap Racionais MC’s. Antes de sintonizar o hip hop e fundar o Racionais MC’s, ao lado de Edi Rock, Mano Brown e Ice Blue, o DJ KL Jay, que tem como nome de batismo Kleber Simões, teve contato com o funk dos Estados Unidos, sobretudo na década de 1980. KL Jay iniciou sua carreira em 1987.
KL Jay descobriu o funk, que tem expoentes como James Brown, e correu atrás de outros cantores e outras bandas, de décadas anteriores, como a de 1960 e 1970, quando o gênero musical influenciou vertentes como a música disco.
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“Eu já estava ali. A cultura veio, já estava no barco e cruzei a fronteira. Me identifiquei com a dança, com o DJ, a cultura em si. Comecei a vir a São Bento, onde o pessoal que também se identificava se encontrava todos os sábados “, diz DJ KL Jay, que, antes da formação dos Racionais MC’s, já tocava com Edi Rock em bailes.
O artista compara o surgimento do hip hop com uma luz de poste que deu um norte à população negra e comenta que, para ele, se trata mais de uma cultura do que de um movimento, apesar de reconhecer seu potencial emancipador e mobilizador. “Penso que hip hop é uma cultura, cultura que liberta. Movimento eu penso que é outra coisa. Penso que o hip hop, com a trilha sonora do rap, mudou a realidade de muita gente, influenciou muita gente. As pessoas se identificam mais com a música, é uma coisa natural. A maioria se identifica mais com a música do que os outros elementos da cultura, mesmo que eles não sejam menos importantes. Mas a gente é mais pego pela música, naturalmente. A música rap, que faz parte da cultura hip hop, ajudou a influenciar muita gente”, afirma.
O mundo outrora secreto dos beats
Uma exposição de discos importantes para a cultura hip hop faz parte da programação do festival. O público terá a chance de conhecer tanto LPs que têm relevância por conta de faixas como pela arte gráfica das capas.
Quando se escutava algum sample usado pelos rappers, dependia-se da boa vontade de quem o tocava revelar qual música era. Conforme lembra a jornalista e cocuradora do festival Leandra Silva, alguns DJs e MCs chegavam a riscar a capa dos discos, para evitar que soubessem qual era a canção. Hoje, mesmo em meio à muvuca da plateia de duelos e batalhas de MCs, a descoberta se tornou muito mais fácil com os aplicativos de celular.
No domingo, o público poderá conferir a entrevista com DJ KL Jay e DJ Hum, conduzida pela jornalista Leandra Silva. Em 22 de agosto, o festival oferece a oficina Sample na Base – A arte de mixar e masterizar. A atividade será ministrada por BaseMC Beat e DJ Comum. No dia 23, quem quiser aprofundar os conhecimentos sobre sample encontra mais uma alternativa na master class Fazendo Sample, com DJ KL Jay, DJ Will e Kamau.
Durante o festival, DJ KL Jay também fará o lançamento oficial do compacto que contém Estamos Vivos, de ZL Killa, Fhato, Emmy Jota e Jota Ghetto, e Território Inimigo, de Anarka, Amiri e Jota Ghetto. Produzidas por DJ KL Jay, as duas faixas foram especialmente editadas em vinil de 7 polegadas para celebrar os 50 anos do movimento hip hop e reúnem artistas da gravadora KL Música, selo criado pelo DJ no começo dos anos 2000, para dar projeção a jovens artistas do rap nacional.
SERVIÇO
Festival Sample
De 12 a 30 de agosto de 2023
Centro Cultural São Paulo*
Rua Vergueiro, 1000 – Paraíso, São Paulo
*Ingressos para as atividades especiais serão disponibilizados para reserva na bilheteria online e presencial, uma semana antes da abertura do festival.
Confira a programação e o horário dos eventos:
Exposição:
De 12 a 30 de agosto
De Terças a sextas, das 10h às 20h.
Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h
Fechada às segundas-feiras
Praça das Bibliotecas
Abertura:
Show e performance:
Dia 12 de agosto, das 19h às 21h, na Sala Adoniran Barbosa
Materclasses:
Sample na Base – A arte de mixar e masterizar, com BaseMC Beat e DJ Comum
Dia 22 de agosto, das 19h às 21h, na Sala de Ensaio II
Fazendo Sample, com DJ KL Jay, DJ Will e Kamau
Dia 23 de agosto, das 19h às 21h, na Sala de Ensaio II
Show de Encerramento
Dia 30 de agosto, das 19h às 21h, na Sala Adoniran Barbosa
Com informações da Agência Brasil