Ao reabrir embaixadas, Lula aproveita oportunidades do continente africano
Especialista em Relações Internacionais diz que o Brasil pode estabelecer cooperações tecnológicas e ambientais com países que avançam para se tornar potências
Publicado 11/08/2023 18:01 | Editado 14/08/2023 17:39
O bolsonarismo expôs o quanto o brasileiro tem uma imagem equivocada e estereotipada da África, desde que Bolsonaro cortou relações com o continente, ao ponto de fechar embaixadas que foram conquistadas nas últimas décadas, para relacionar apenas com os EUA de Donald Trump. Agora, o governo planeja usar a viagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em dez dias, para anunciar a reabertura dessas embaixadas fechadas. Mais que isso, também vai avaliar o estabelecimento de novos postos diplomáticos nos 20 países onde ainda não tem presença.
Lula viaja para a cúpula dos Brics, evento que ocorre a partir do dia 21 de agosto. Mas passará depois por Angola e possivelmente fará uma parada na cúpula da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em São Tomé e Príncipe.
Em 2020, as representações brasileiras que tinham sido abertas pelo primeiro governo Lula nas cidades de Freetown (Serra Leoa) e Monróvia (Libéria) foram fechadas e seus serviços foram deslocados para a embaixada do Brasil em Acra (Gana). Agora, a ideia é a de retomar os trabalhos nesses locais e ainda considerar países importantes como Ruanda e Gâmbia.
Em entrevista ao Portal Vermelho, a especialista em Relações Internacionais, Flávia Loss (FESPSP), explicou que o fechamento de embaixada significa diminuição de relações. “Não adianta a gente ficar só no discurso. A gente precisa ter o nosso corpo diplomático presente nos países. Por isso que todos os países investem nisso”, justifica.
Mesmo com a tecnologia que existe hoje, afirma ela, “a presença física, o olho no olho, ter um diplomata próximo do governo de outro país é sempre muito importante para acompanhar o que está sendo feito, para levar a nossa agenda”.
Agora, a viagem de Lula marca uma retomada da agenda africana do Brasil. Nos oito anos relativos aos seus dois primeiros mandatos na presidência, ele fez 30 viagens para a África, enquanto seu então chanceler Celso Amorim realizou 67 missões para o continente.
Rupturas ideológicas
Bolsonaro, porém, não havia fechado postos apenas no continente africano, mas na maioria dos arquipélagos do Caribe, além da Venezuela, onde Lula já reabriu embaixada e consulados. No caso venezuelano, a decisão bolsonarista foi ideológica e deixou milhares de brasileiros que vivem na Venezuela sem assistência, além de dificultar as relações entre empresas brasileiras e venezuelanas.
Sob a gestão de Ernesto Araújo no Itamaraty, na primeira metade do governo Bolsonaro, o Brasil abandonou parte de sua agenda com os países em desenvolvimento e concentrou suas relações com os EUA, de Donald Trump, ou com governos liderados pela extrema direita.
O Brasil possui representações diplomáticas em praticamente todos os Estados do mundo, com exceção de 56 dos 194 países da atualidade. Os 20 países africanos sem embaixadas brasileiras são Burundi, Chade, Comores, Djibouti, Eritreia, Gâmbia, Lesoto, Libéria, Líbia, Madagáscar, Ilhas Maurícias, Níger, República Centro-Africana, Ruanda, Seicheles, Serra Leoa, Somália, Essuatíni, Sudão do Sul e Uganda. Desses, Burundi e Líbia mantém representação em Brasília.
Visão preconceituosa
A analista internacional explicou porque é tão importante atualizar esta agenda de relações com o continente africano. “É só a gente olhar o quanto esse continente está se tornando importante nas estratégias da China e da União Europeia. A China tem aumentado muito a sua presença física no continente todo e desenvolvido acordos de cooperação e comércio. A União Europeia tem um relacionamento mais estreito com a África do que têm aqui com a América Latina. Estão buscando recuperar esse terreno perdido com a América Latina, mas nunca perderam o foco na África”, destacou.
Flávia diz que a visão estereotipada do brasileiro comparece até quando se conversa com pessoas que deveriam ter interesse comercial no continente africano. “Tem ainda aquela visão de um continente extremamente pobre, com muitos problemas socioeconômicos, de guerra civil e só enxerga esse lado negativo que já mudou muito, da década de 90 pra cá”, afirma.
Ela diz que países como África do Sul e Nigéria emergem como potências do continente, com muitas oportunidades de negócio, de cooperação, que o preconceito na América Latina não deixa enxergar. “O governo Lula tem um olhar atento para essa questão”.
Agenda comum
Flávia diz que, diferente da China ou da Rússia, o Brasil tem uma herança comum, laços históricos, culturais e linguísticos, que tornam muito mais fácil estabelecer relações com a África. “Acredito que o governo Lula agora vai saber aproveitar esse capital cultural, esse soft power, e articular uma agenda comum”, diz a analista.
Em termos de agenda, ela reforço a agenda econômica comercial, com várias oportunidades que outros países estão aproveitando, além disso uma cooperação em vários aspectos. Ela cita o aspecto tecnológico, em que o Brasil avança em questões da revolução industrial 4.0, mais rápido que outros países.
Entre os países da América Latina, o Brasil é um dos que mais tem capacidade de oferecer uma contribuição. Mas Flávia acredita que Lula pode “puxar uma agenda para os nossos vizinhos em relação a isso”. “O Brasil tem uma boa entrada, tem uma boa imagem frente ao continente africano e isso pode ser aproveitado”.
Ela aponta outras agendas comuns que devem avançar nos próximos anos nesta relação, como a questão ambiental. “A segunda maior floresta tropical do mundo está localizada no continente africano, no Congo”, lembrou. “Assim, a Amazônia e a floresta do Congo têm uma agenda de cooperação para articular a pressão sobre os países ricos, para que eles nos ajudem na preservação dessas duas florestas”, declarou.
Flávia também cita um debate importante sobre imigração que o Brasil pode intensificar com os países africanos. “A gente tem uma agenda importante Brasil-continente africano, com oportunidades de negócios e de cooperação tecnológica, desenvolvimento, em termos de meio ambiente. E depois a gente pode ter uma agenda internacional com uma voz em comum para o mundo, sobre mudanças climáticas, transição energética, comércio justo, mudanças no sistema internacional, que ambos os lados do hemisfério desejam”, resume ela.
500 anos de relações
Para além do período colonial, em que as relações brasileiras com a África envolviam um relacionamento cultural, linguístico e econômico com o continente africano, a partir do século 20, a especialista diz que o B Brasil desenvolve uma relação mais moderna. “Mas a gente só vai passar a dar uma importância para o continente a partir da presidência de Jânio Quadros e da chamada política externa independente”, pontua. “É quando o Brasil começa, de fato, a abrir embaixadas e ter um relacionamento mais próximo com o continente africano”.
Depois, com o golpe de 64, ela conta que essas relações vão arrefecer, só vão ter uma retomada no aspecto comercial a partir dos governos Médici e Geisel. “O Brasil, no contexto da Guerra Fria, buscava novos mercados para os seus produtos, para além das commodities. Nesses dois governos, a gente tinha uma pauta de exportação significativa de manufaturados e um bom mercado entre os países africanos”.
Em 1975 teve também um marco nesse relacionamento porque o Brasil reconheceu a independência de Angola. “Foi a primeira vez que o Brasil se afastou de uma espécie de alinhamento que tinha com Portugal, em todos os assuntos que diziam respeito ao continente africano”.
Com a democratização, ela conta que, na década de 1990, reduz as relações conforme a situação econômica e política no Brasil, e na América Latina se complicam. O continente africano também vive uma série de convulsões, com o presidente Fernando Henrique Cardoso dando atenção para o continente, nesse período, por meio de visitas.
“Essa relação só vai mudar de fato com o governo Lula, a partir de 2003, quando vai haver uma nova era para esse relacionamento entre Brasil e África. Um relacionamento robusto, que vai envolver não só o aspecto comercial, mas de cooperação cultural, linguística e todas as áreas possíveis”, acentua.
Para ela, foi importante o Brasil projetar uma imagem forte de amizade com o continente, nessa que ela considera a “era dourada” entre as duas esferas diplomáticas. “É por isso que existem embaixadas em outros países, para marcar presença em territórios amigos. Abrimos novas frentes de negócios, novas frentes de cooperação, foi um relacionamento muito intenso”.
Depois, ela lembra que o governo Dilma não pode manter o mesmo foco, mergulhada que esteve nos próprios problemas brasileiros. “O Bolsonaro vai tentar desfazer tudo, fechar embaixadas. Se afasta não só do continente africano, mas a gente se torna um país ostracizado no sistema internacional, o que vai nos prejudicar muito”, diz.