Jandira Feghali sobre João Donato: “um amoroso gênio!”
Em artigo publicado na revista Carta Capital, a Líder do PCdoB e deputada Jandira Feghali (RJ) exalta João Donato: “Não se negava às boas causas e com a humildade dos grandes se fazia presente e as valorizava enormemente”.
Publicado 27/07/2023 15:49 | Editado 27/07/2023 16:02
O Brasil é um país prodigioso. Muitos e diversos talentos. O mais incrível é que ao olhar, ou melhor, ouvir de perto cada um desses talentos, podemos encontrar um universo inteiro, com muito a nos ensinar. É o caso de João Donato, o genial pianista acreano que nos deixou, precocemente, no último dia 17, aos 88 anos.
Digo precocemente porque, apesar da idade formalmente avançada, Donato ainda era um menino. Possuía uma capacidade única de transmitir sentimentos a partir das teclas de seu piano, de uma pureza e transparência que só as crianças, com suas antenas livres de preconceitos, conseguem alcançar. “A Rã”, “Bananeira”, “Lugar Comum”, “Amazonas”, “A Paz”, “Emoriô” – cada clássico que este compositor, arranjador, produtor e instrumentista incrível compôs traz mensagens profundamente alcançáveis, numa simplicidade genial.
Já era assim aos 8 anos, quando compôs sua primeira música, uma valsa chamada “Nini”, para uma amiga pela qual se apaixonara. Nunca quis se afastar deste compositor-menino, que enxergava o mundo com
aqueles “olhinhos vivos que parecem de um bicho pequeno”, como definiu
certa vez a amiga Nara Leão. O mundo se tornou seu quintal.
Quando cantava “Danço bolero, danço samba, danço cha-cha-cha” em “Nasci Para Bailar”, Nara dava a senha de entrada para o universo de João Donato. Sua música é um amálgama sincopado e único do samba brasileiro, do jazz americano e de ritmos afro-cubanos – uma coisa única, brasileiríssima e sempre à frente de seu tempo. Pois, no início dos anos 1950, essa “extravagância” ainda era pouco vista. Os mais antenados, que já anteviam o que Donato estava construindo em seu piano nas boates de Copacabana, trataram de colar com ele (e ele com eles): João Gilberto virou seu parceiro de alma e Tom Jobim produziu seu primeiro disco, “Chá Dançante”, ainda em 1956 – com músicas formatadas por aquela turma nas madrugadas de
Copacabana.
Donato já exercia ali as características tanto pessoais como musicais que manteria por toda a vida: a generosidade, o olhar atento ao novo e ao diferente, a capacidade de incluir e agregar sempre. Foi a partir destas características que o artista moldou, diversificou e enriqueceu sua música. Ao ouvi-la, podemos imaginar uma sociedade igualmente generosa, aberta, diversa, inclusiva e agregadora. Estes são valores que, por si só, bastariam para resolver boa parte dos problemas do mundo. E que marcaram – e marcam até hoje – o melhor da nossa produção cultural e artística.
Mas as coisas não acontecem do nada, e sim como resultado de nossas movimentações pessoais e coletivas. Donato sempre soube disso. Tanto que, quando a bossa finalmente estourou, o gênio voou para longe. Em 1959, foi para os Estados Unidos, mas nunca andou só. Acabou “adotado” por mestres do jazz afrocubano, como Mongo Santamaría e Tito Puente, que contribuíram para encher de balanço caribenho o seu piano.
Também conheceu e tocou, ao longo dos anos 1960, com vários craques do jazz americano (Stan Kenton, Gerry Mulligan, Chet Baker, Stan Getz, a lista é grande). Quando voltou ao Brasil, no início dos anos 1970, todo o primeiro time, da então já configurada MPB, fez fila para compor, gravar e tocar com ele. Tudo isso sem abrir mão de sua simplicidade genial de menino.
Não se negava às boas causas e com a humildade dos grandes se fazia presente e as valorizava enormemente. Agradecemos por isto!
O que Donato sempre fez de melhor foi amalgamar gente em torno de sua atividade favorita, que era fazer música. Por meio de suas misturas musicais, sintéticas, econômicas e irresistivelmente suingadas, ele juntou, por toda a vida, todo tipo de artista, dos mais velhos, como Dorival Caymmi, aos contemporâneos (Gal, Chico, Martinho, Gil, Caetano, Macalé) e aos bem mais novos, como Marcelo D2 e Céu. E essa é outra chave definitiva do seu universo, muito bem resumida em seu último disco, “Serotonina”, do ano passado: “Eu gosto mais de sim / Do que de não”. Com sua amada companheira, Ivone Belém, e com os filhos amou, itinerou, fez felicidade acontecer de forma cotidiana. João Donato abraçou o mundo. E o mundo o abraçou de volta.