Cansada da guerra, Kiev expõe a face cínica de quem banca sua destruição 

Enquanto o povo ucraniano corre para escapar de bombas em bunkers, os EUA celebram mais um envio maciço de armas e a adesão da Finlândia à OTAN

Moradores de Kiev se abrigam num bunker, enquanto mísseis russos explodem suas casas.

Os EUA anunciaram mais um pacote de armas para escalar a guerra na Ucrânia, no valor de US$ 300 milhões. Isso, no mesmo dia em que um episódio dramático relatado pelo New York Times, revelou o descaso com a população daquele país exausto de se ver refém de interesses que não são seus, depois de um ano e meio de devastação e morte. 

Do lado de fora de uma clínica infantil transformada em abrigo antiaéreo, os moradores fizeram a pergunta que assombra a capital da Ucrânia: quem foi o responsável pela porta trancada que deixou mulheres e crianças, em busca de segurança, expostas a um ataque de míssil?

Três pessoas, incluindo uma mulher e sua filha, foram mortas em uma explosão perto da entrada do bunker de seu bairro, logo cedo, tendo sido bloqueados no meio de um ataque aéreo. Pelo menos uma dúzia de outros ficaram feridos.

As mortes abalaram uma cidade acostumada a ataques aéreos e mísseis, levando a várias investigações, quatro detenções e luto generalizado. O tempo que costuma ser determinante para a vida e a morte, era algo que Natalia Velchenko, 33, Olha Ivashko, 34, e a filha de 9 anos de Olha, Viktoria, tinham de sobra, mas não foi suficiente para ficar em segurança.

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Homenagem a Viktoria Ivashko, morta aos 9 anos, porque não conseguiu entrar no abrigo antiaéreo

Suas mortes refletiram o pior cenário do que acontece quando os residentes de Kiev precisam navegar por uma teia às vezes confusa de centenas de abrigos antiaéreos, muitos fechados, outros em mau estado, espalhados pela cidade. Esses abrigos se tornaram cada vez mais importantes à medida que a Rússia aumentou os ataques aéreos à capital nas últimas semanas, após um inverno já brutal de ataques de longo alcance e falta de energia.

“Era necessário que as pessoas morressem para que os abrigos começassem a ser mantidos abertos em Kiev?” perguntou Tetiana Kukuruza, uma jovem de 26 anos que mora no centro da cidade, ao prefeito Vitali Klitschko, enquanto ninguém assume a culpa e um vigia é detido. “Eles deveriam ter lidado com esse assunto antes da invasão em grande escala, não quase um ano e meio após o início de uma guerra ativa.”

Enquanto os residentes se amontoavam e esperavam pela entrada no bunker, as defesas aéreas ucranianas, reforçadas por armas fornecidas pelo Ocidente, como mísseis Patriot, interceptaram apenas parcialmente um míssil balístico russo, desviando-o do curso, mas não destruindo sua ogiva.

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O hospital infantil que servia de abrigo antimísseis, mas estava trancado no momento de um bombardeio

Dia de festa em Helsinque

Enquanto isso, os EUA estão em festa. Após aprovar a suspensão do teto da dívida, mantendo os gastos militares, o governo de Joe Biden anunciou o mais recente de uma série de pacotes de envio de munição de tanque e outros equipamentos para a Ucrânia no valor de US$ 300 milhões, para se somar ao total de US$ 38,3 bilhões. 

Outra demonstração do entusiasmo americano são as declarações do secretário de Estado, Antony J. Blinken, na Finlândia, ao comemorar a incorporação do país como aliado da OTAN. A expansão de bases desta aliança militar nas fronteiras russas foi justamente o que provocou a guerra. 

Embora o território americano esteja distante da Rússia e bem protegido por tecnologia e defesas militares, países europeus fragilizados economicamente vão se comprometendo belicamente contra um gigante que mora ao lado. Os americanos estimulam estas hostilidades porque sempre tiveram interesses contra a Rússia. Fragilizar uma potência militar como a Rússia é uma forma de isolar a China, sua aliada, e principal alvo de disputas dos EUA. 

Com isso, vai se configurando uma guerra por procuração, em que a Ucrânia não passa de um fantoche para os interesses de alguém muito mais rico e poderoso. Por sorte dos EUA, quem governava a Ucrânia era apenas um ator de comédia da televisão, que age como se estivesse num estúdio de filmes de guerra com holofotes voltados para si.

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Antony Blinken na Finlândia

O longo e o curto prazo

Blinken disse que a invasão da Ucrânia pelo presidente Putin foi um fracasso estratégico. “O Kremlin frequentemente afirmava ter o segundo exército mais forte do mundo, e muitos acreditavam nisso. Hoje, muitos veem as forças armadas da Rússia como as segundas mais fortes na Ucrânia – seu equipamento, tecnologia, liderança, tropas, estratégia, tática e moral, um estudo de caso em fracasso, mesmo quando Moscou inflige danos devastadores, indiscriminados e gratuitos à Ucrânia e aos ucranianos. Estima-se que a Rússia tenha sofrido mais de 100.000 baixas apenas nos últimos seis meses, enquanto Putin envia onda após onda de russos para um moedor de carne de sua autoria”, afirmou Blinken, que é contra qualquer proposta de cessar-fogo.

O problema da declaração é que documentos vazados do próprio Pentágono avaliam que a Rússia tem condições de prolongar a guerra com tranquilidade por, pelo menos, mais um ano. Como sugeriu o ex-chanceler brasileiro Celso Amorim, em entrevista ao Financial Times, hoje, mesmo que a Rússia seja derrotada, os riscos de uma ampliação do conflito são enormes. Especialmente, considerando que a Rússia é uma potência nuclear.

Ao celebrar o que Putin mais temia, a expansão da OTAN para suas fronteiras na Finlândia, Blinken dobra a aposta. Agora, a OTAN se compromete a defender cerca de mais 1300 quilômetros de fronteira.

Apesar de milhões em todo o mundo estarem sofrendo as consequências dessa guerra, em algum nível, Blinken argumentou em Helsinque que Putin involuntariamente expôs e combinou a fraqueza das forças armadas da Rússia, prejudicou sua economia e inspirou a OTAN a se tornar mais unida e ainda maior. Em 1991, fim da Guerra Fria, 15 países faziam parte da aliança militar, um número que só cresceu, chegando a 30. Putin não provocou nada, pois já estava sendo cercado gradualmente, desde sempre. Um discurso de Blinken, portanto, que pode ser resumido apenas em “quanto pior, melhor”. 

Se os moradores de Kiev esperam ouvir palavras de esperança de um líder americano, não foi desta vez. Blinken incluiu notas de advertência sobre o que ele sugeriu que seria um caminho longo e difícil para Kiev, particularmente em meio ao que ele previu que seriam novos apelos mundiais para a suspensão dos combates.

“Nos próximos meses, alguns países pedirão um cessar-fogo”, disse Blinken. “Superficialmente, isso parece sensato – atraente, até. Afinal, quem não quer que as partes em conflito deponham as armas? Quem não quer que a matança acabe? Mas um cessar-fogo que congele as linhas atuais, com a Rússia controlando grandes partes do território ucraniano”, acrescentou, “não é uma paz justa e duradoura. É uma paz de Potemkin. Isso legitimaria a apropriação de terras pela Rússia. Recompensaria o agressor e puniria a vítima”, disse sob aplausos.

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