Sanções à Rússia transformam cúpula do G7 em “puxadinho” da Otan
Se havia alguma expectativa de que o G7 pudesse contribuir para um acordo de paz, tudo se evaporou já no primeiro dia da cúpula do grupo
Publicado 19/05/2023 19:51 | Editado 21/05/2023 11:45
Num artigo recente para o Financial Times, Simon Kuper evocou o momento em que Mikhail Gorbatchov anunciou a retirada de tropas soviéticas da Europa Oriental. A decisão não era um consenso na cúpula do Partido Comunista da União Soviética, o PCUS. Mas Gorbatchov alegava que não havia risco de invasão da Otan (Organização do Tratado Atlântico Norte) na região.
“O secretário de Estado dos Estados Unidos, James Baker, disse a ele que as fronteiras da Otan não ‘se moveriam um centímetro para o leste’. O chanceler alemão Helmut Kohl repetiu isso”, lembrou Kuper. Porém, a promessa era meramente verbal. “O Ocidente então rescindiu silenciosamente a oferta, que não apareceu no Acordo Final sobre a unificação alemã em 1990. As consequências repercutem até hoje.”
Diferentemente do que previu o último (e ingênuo) líder soviético, a Otan, sob a tutela norte-americana, avançou “para o leste” não um centímetro – mas centenas de quilômetros, até chegar à fronteira russa. A guerra na Ucrânia, iniciada em fevereiro de 2022, é reflexo dessa ofensiva – a Rússia diz ir à batalha para “desnazificar” e desmilitarizar o país vizinho.
Não é por acaso que o protagonismo da Otan no conflito fica cada vez mais explícito no campo de guerra e também no campo da propaganda, da narrativa. O pedido de adesão da Ucrânia à organização, em setembro de 2022, soou como mero protocolo, tamanha já era a ascendência dos Estados Unidos/Otan sobre as decisões militares do país. Esse conluio levou o presidente russo, Vladimir Putin, a falar em “guerra por procuração”.
Em abril, o norueguês Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan, foi a Kiev, a capital ucraniana, pela primeira vez e deu números da parceria. Primeiro, declarou que os Estados Unidos destinariam mais US$ 325 milhões para a Ucrânia, enquanto a Dinamarca e a Holanda enviariam mais tanques Leopard.
No dia seguinte, Stoltenberg agregou: “Mais de 98% dos veículos de combate prometidos para a Ucrânia já foram entregues. Isso significa mais de 1.550 blindados, 230 tanques e outros equipamentos, incluindo uma vasta quantidade de munição”. Dada a envergadura desse apoio militar, é muito provável que a conta da Otan incluía doações feitas desde o início da guerra.
Que a Otan abra o jogo e preste contas de suas credenciais, vá lá – quem há de se surpreender a esta altura da guerra? Mas, se havia alguma expectativa de que o G7 pudesse contribuir para um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia – por sua natureza mais econômica e menos militarista –, tudo se evaporou já no primeiro dia da cúpula do grupo em Hiroshima, no Japão.
A primeira medida anunciada no encontro, nesta sexta-feira (19), foi a adoção de mais sanções econômicas e comerciais contra a Rússia. O comunicado dos líderes de sete das nações mais ricas e industrializadas do mundo pareceu transformar a cúpula do grupo num “puxadinho” da Otan. De acordo com o texto, as novas restrições têm o objetivo de “privar a Rússia da tecnologia, equipamento industrial e serviços do G7 que sustentam sua máquina de guerra”.
Stephen Kinzer, professor da Universidade Brown citado na matéria do Financial Times, diz que Gorbatchov deveria ter obrigado os líderes ocidentais a formalizar por escrito a promessa de manter intactas as fronteiras da Otan. Não dá para saber quão diferente estaria a ordem global hoje. Mas a “época da inocência” precisa chegar ao fim.