Por que o MST assusta tanto? por Frei Betto
O movimento segue rigorosamente os ditames da Constituição Cidadã de 1988. A Carta defende o uso social da terra, que deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva.
Publicado 10/05/2023 09:25 | Editado 10/05/2023 10:17
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é um dos movimentos populares mais importantes do Brasil, que luta por um direito básico, a reforma agrária, e representa cerca de 500 mil famílias assentadas e 100 mil acampadas.
Criado em 1984, e obedecendo todos os princípios da Constituição de 88, o MST tem como objetivo a luta pela democratização da terra e a produção de alimentos saudáveis e sustentáveis. Neste artigo, escrito por Frei Betto, destaca-se a importância do movimento na luta pela reforma agrária e pela justiça social no Brasil, além de abordar a formação política de seus militantes, o cuidado com o meio ambiente e a soberania alimentar.
No texto, Betto enfatiza que a ocupação de terras pelo MST não é uma invasão, e que o movimento é responsável pela maior produção de arroz orgânico da América Latina, defendendo a Reforma Agrária Agroecológica como forma de alcançar o desenvolvimento sustentável o combate à fome e a insegurança alimentar. O autor também aborda a campanha “Abril Vermelho”, que evoca a memória dos sem-terra assassinados em Eldorado dos Carajás, no Pará, em 1996.
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Betto também critica o agronegócio por promover o desmatamento e a concentração da produção em poucos produtos, controlados por grandes empresas transnacionais. Ele finaliza dizendo que a fome no mundo não é resultado da falta de alimentos, mas da falta de justiça, uma vez que o alimento tem valor de troca e não de uso no sistema capitalista.
Leia a íntegra abaixo.
O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), que vi nascer e ao qual permaneço vinculado, é o mais popular, combativo e democrático movimento popular do Brasil. Congrega, hoje, cerca de 500 mil famílias assentadas e 100 mil acampadas. Luta por um direito elementar, jamais efetivado no Brasil, um país de dimensões continentais e onde há muita gente sem terra e muita terra sem gente – a reforma agrária.
É, no mínimo, uma vergonha constatar que no século XXI os únicos países que não fizeram reforma agrária na América Latina foram Brasil, Argentina e Uruguai. O modelo de propriedade da terra que ainda perdura em nosso país é o das capitanias hereditárias. E a relação de muitos proprietários de terras com seus empregados pouco difere dos tempos de escravidão.
Nascido em 1984 e prestes a completar 40 anos em 2024, o MST sabe, desde seus primórdios, que governo é como feijão, só funciona na panela de pressão… Ainda que tenha contribuído decisivamente para eleger Lula presidente, o MST jamais se deixou cooptar pelo governo. Mantém a sua autonomia e sabe muito bem que a relação de governo com movimentos sociais não pode ser de “correia de transmissão” e, sim, de representação das bases sociais junto às instâncias governamentais. Muitos políticos enchem a boca com a palavra “democracia”, mas temem que passe de mera retórica para ser, de fato, um governo cujo principal protagonista é o povo organizado.
O MST se destaca também pelo cuidado que dedica à formação política de seus militantes, o que muitos movimentos e partidos de esquerda negligenciam. Os sem-terra mantêm, inclusive, um espaço próprio para o trabalho pedagógico, a Escola Florestan Fernandes, em Guararema (SP). E em todos os eventos que promove, o movimento valoriza a “mística”, ou seja, atividades lúdicas (cantos, hinos, painéis etc.) e símbolos (fotos, artesanato etc.) de caráter emulador.
O MST segue rigorosamente os ditames da Constituição Cidadã de 1988. A Carta defende o uso social da terra, que deve respeitar o meio ambiente e ser produtiva. E exige algo ainda em compasso de espera e imprescindível se o Brasil quiser alcançar o desenvolvimento sustentável e abandonar sua submissão aos ditames das nações metropolitanas, que nos impõem a mera condição de exportadores de produtos primários, hoje elegantemente chamados de “commodities”…
Ocupação não é invasão. Jamais o MST ocupa terras produtivas. Hoje, o movimento é o maior produtor de arroz orgânico na América Latina e defende a Reforma Agrária Agroecológica, capaz de facilitar o acesso à terra como direito humano; produzir alimento saudável e sustentável para toda a sociedade brasileira; oferecer ao mercado alimentos salubres e livres de agrotóxicos; valorizar o papel da mulher trabalhadora do campo; expandir o número de cooperativas de agroecologia; e ampliar a soberania e a biodiversidade alimentares no combate à fome e à insegurança alimentar.
A campanha do “Abril Vermelho” não usa o adjetivo como evocação da cor preferida dos símbolos comunistas (e, também, das vestes solenes dos cardeais), como querem interpretar os detratores do MST. É, sim, a cor do sangue dos 19 sem-terra cruelmente assassinados pela Polícia Militar em Eldorado dos Carajás, no sul do Pará, a 17 de abril de 1996. Sete vítimas foram mortas por foices e facões, e os demais por tiros à queima-roupa.
Cerca de 100 mil famílias aguardam assentamento no Brasil. E é no mínimo um desserviço o agronegócio promover o desmatamento de nossas florestas para expandir a fronteira agrícola, usufruir de isenção fiscal na exportação de seus produtos e concentrar sua produção em apenas cinco mercadorias: soja, milho, trigo, arroz e carne, controladas por grandes empresas transnacionais.
A fome cresce no mundo. Já são quase 1 bilhão de pessoas afetadas. E isso não resulta da falta de alimentos. O planeta produz o suficiente para alimentar 12 bilhões de bocas. Resulta da falta de justiça. No sistema capitalista, o faminto morre na calçada à porta do supermercado. Porque o alimento tem valor de troca e não de uso. Ora, enquanto a produção alimentar não seguir os padrões agroecológicos e a terra e a água, recursos naturais limitados, não forem considerados patrimônios da humanidade, a desigualdade tende a se agravar e, com ela, toda sorte de conflitos. Paz rima com pão.
O MST assusta tanto porque luta para que o Brasil, uma das nações mais ricas do mundo, e que figura entre as cinco maiores produtoras de alimentos, deixe de ser um país periférico, colonizado, marcado por abissal desigualdade social.
Tomara que, um dia, nunca mais se torne realidade os versos cantados por João Cabral de Melo Neto em “Funeral de um lavrador”: “Não é cova grande / É cova medida / É a terra que querias / Ver dividida”.
Frei Betto
01.05.2023
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