Centenário resgata debate sobre desafios e papel do rádio no Brasil
Neste 20 de abril, a Rádio MEC, a mais antiga em atividade, faz 100 anos. Data traz à tona os desafios colocados para o meio, que segue popular e querido entre os brasileiros
Publicado 20/04/2023 14:20 | Editado 24/04/2023 14:36
“O rádio é tão fabuloso que a gente não tem um centenário, a gente tem vários”. É desta maneira que Marcelo Kischinhevsky, professor da UFRJ, se refere a mais um aniversário deste meio de comunicação, celebrado nesta quinta-feira, 20 de abril. Nesta data, em 1923, era fundada a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.
Atualmente com o nome de Rádio MEC, a emissora é a mais antiga ainda em operação no Brasil e pioneira na radiodifusão pública e educativa. Em 1936, foi doada ao então Ministério da Educação e Saúde Pública, que depois veio a ser o MEC, e se tornou um órgão oficial do governo federal, condição que mantém até hoje.
A história do rádio no Brasil, no entanto, é ainda mais antiga e comporta outras datas importantes. “O padre e cientista brasileiro Roberto Landell de Moura fez sua primeira transmissão de rádio em longa distância durante a década de 1890 em data não confirmada, em São Paulo, entre a Ponte das Bandeiras e o Colégio Santana”, explicam ao Portal Vermelho a musicista e professora universitária Janete El Haouli e o professor do Instituto de Artes da Unicamp, José Augusto Mannis.
Eles completam lembrando ainda que o físico Guglielmo Marconi escreveu sua dissertação sobre telegrafia sem fio em 1895 e que realizou em 1936 sua primeira transmissão entre dois navios de guerra italianos, distantes 13 quilômetros. Portanto, apontam, “há a possibilidade de que a primeira transmissão experimental de voz em longa distância por ondas hertzianas tenha acontecido no Brasil”.
Quanto às primeiras transmissões públicas, os professores destacam a de 7 de setembro de 1922, no Rio de Janeiro, a partir do cume do Corcovado, durante a Exposição Internacional do Centenário da Independência, promovida com apoio da empresa norte-americana Westinghouse Electric and Manufacturing Company, que forneceu um transmissor de 500 W e 80 receptores, instalados na capital federal, em Niterói, Petrópolis e São Paulo. Naquele dia, foi transmitido o discurso de abertura do evento, feito pelo então presidente Epitácio Pessoa, além de trechos de música erudita, incluindo a ópera “O Guarany” de Carlos Gomes, que estava sendo apresentada no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
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Eles lembram ainda que a Rádio Clube de Pernambuco (PRA-8), fundada em 6 de abril 1919, já havia feito transmissões de músicas por rádio. “Após o grande evento de 1922, Edgard Roquette-Pinto se mobilizou para que o equipamento utilizado nas comemorações do centenário da Independência do Brasil pudesse permanecer no Rio de Janeiro. Assim, surgiu a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em 20 de abril de 1923 por ele e Henrique Morize, como uma sociedade civil, com o objetivo de difundir a cultura brasileira”, explicam Janete e Mannis.
A partir dos anos 1930, a tendência que se estabelece no Brasil é a de viés norte-americano do rádio, com a inclusão de publicidade na programação e a realização de programas patrocinados por empresas, diferente do modelo europeu que privilegiava o perfil cultural e educativo. “É pelo rádio que chegam ao Brasil a Coca-Cola e o sabonete Gessy, por exemplo. Nesse mesmo período, o rádio brasileiro também se tornou veiculador de mensagens do Estado, como muitas das emissoras no exterior numa fase de luta ideológica precedendo a Segunda Guerra Mundial”, contam Janete e Mannis.
Ao Vermelho, o professor Marcelo Kischinhevsky, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e diretor do Núcleo de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que “ao longo das décadas no Brasil a gente teve uma apropriação do rádio pelas empresas privadas e principalmente por algumas empresas familiares que se tornaram proprietárias de um grande número de emissoras. Hoje há dezenas de afiliadas pelo Brasil reproduzindo aquela mesma programação gerada em alguns grandes centros urbanos, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro”.
Apesar desse cenário, apontam Janete e Mannis, “as rádios educativas se mantiveram resistindo em sua missão, enfrentando dificuldades financeiras para seu funcionamento e manutenção, fato esse que permanece até o presente, incluindo as emissoras universitárias, que em princípio se enquadram na legislação de rádio educativa. Além disso, acrescenta-se que muitas das rádios educativas têm priorizado conteúdos e agendas estabelecidos para manutenção de uma audiência configurada”.
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Desafios
Assim como outras datas alusivas à criação do rádio, o marco dos cem anos da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro traz à tona discussões importantes, mas não novas, sobre o rádio brasileiro.
O professor Marcelo Kischinhevsky, que também faz parte da Frente em Defesa da Empresa Brasileira de Comunicação, coloca como um dos pontos centrais para falar do rádio hoje o papel desempenhado pelas emissoras na formação dos ouvintes — considerando que o espectro em que operam é uma concessão pública — e o papel do Estado como formulador de políticas públicas e como regulador da radiodifusão; afinal, apesar de todo o avanço da internet e das plataformas digitais, o rádio continua sendo relevante no ecossistema midiático brasileiro mesmo em seu formato tradicional.
Levantamento feito em 13 regiões metropolitanas do país pela Kantar Ibope Media em 2021 mostrou que 80% da população ouve rádio, 71% em casa. “A média de escuta no país está acima de quatro horas diárias, então o rádio é importantíssimo como meio de informação, de formação cidadã, de entretenimento e como um espaço de representação, de diversidade social e cultural. Por isso, é fundamental que a gente tenha o rádio como objeto de políticas públicas para que ele seja ainda mais representativo e plural do que é hoje”, explica Kischinhevsky.
O professor ressalta que durante a pandemia e nos anos de governo de Jair Bolsonaro, “a gente viu muitas emissoras de rádio fazendo um papel terrível, lamentável, de disseminação desses discursos de desinformação que já circulavam livremente nas mídias sociais e que vão também para o dial. Esse é um problema central porque a gente está falando não só de representatividade, de identificação dos ouvintes com as emissoras; a gente está falando de um meio que é poderoso”.
Com a popularização e maior acesso à internet e às redes sociais e o surgimento de novos formatos — como os canais de vídeo que também transmitem as rádios ao vivo, além dos podcasts e das transmissões de rádio via canais de tevê, entre outros modelos —, o rádio ganhou novas plataformas de veiculação e renovou sua forma de chegar ao grande público, o que também ajudou a conquistar os mais jovens. Neste sentido, ainda que possam enfrentar dificuldades, as emissoras acabaram ganhando novas perspectivas de ampliação de seu alcance e de inovação em seus formatos e linguagem.
Segundo Kischinhevsky, “o que a gente vê hoje estatisticamente é que o rádio continua sendo muito ouvido em todas as faixas etárias. A gente não tem essa concentração de ouvintes só entre os de mais idade, acima de 50 anos. Temos emissoras especializadas nessas audiências, mas também outras voltadas para o público jovem”.
Para os professores Janete e Mannis, “o rádio tradicional segue firme e com audiência significativa. É uma mídia presente na vida das pessoas e acreditamos que isso ainda permanecerá por muito tempo. Contudo, observa-se a preponderância de um modelo de rádio utilitário e de entretenimento, como que buscando a manutenção de indicadores de audiência, sobretudo levando ao ar aquilo que se espera ouvir, sem muita surpresa. Observa-se que quantitativamente ainda há poucas iniciativas que buscam provocar a escuta com novos conhecimentos, ideias, reflexões, atitudes, propostas e questionamentos, o que permitiria o desenvolvimento de raciocínio crítico e o enriquecimento do saber”.
Quanto à perspectiva para os próximos anos, Kischinhevsky defende que é preciso aproveitar o momento aberto com a chegada de Lula à presidência para trazer à tona pautas importantes para a população e que ficaram represadas nos últimos anos. “Acho que é o caso de a gente recuperar discussões sobre dois eixos centrais: a re-regulação das rádios comunitárias e o fortalecimento da radiodifusão pública e educativa como um todo, uma radiodifusão que ficou relegada a segundo plano na maior parte da história brasileira e que foi priorizada somente no governo de Dilma Rousseff, quando a gente teve o último plano nacional de outorgas”.
Para ele, “isso tudo passa por reconhecer o rádio como um meio expandido, ou seja, essas emissoras têm de estar nas várias plataformas, e é preciso buscar recursos para isso. Ao mesmo tempo, a gente tem de pensar em rádio digital e em outras mudanças que virão nos próximos anos”.