Eles não sabiam que os anjos têm asas
Na adolescência, ergueu a voz. A visão alargou-se. O amor ganhou forma no jovem coração. Junto ao mar de Iracema, onde a jangada contempla infinitos, contraiu aquele impetuoso gosto pela liberdade.
Publicado 19/04/2023 21:18 | Editado 19/04/2023 21:19
(Para Ruth Cavalcante)
A loura menina despediu-se dos pais, disse adeus à Terta, e foi escrever sua história lá onde a terra encontra o mar.
Altiva – há quem diga indócil – no colégio austero a freira tolhia seus passos. E impunha a norma, instituía a disciplina, decretava a submissão. Adoremus nas mãos, olhos fixos no altar… o pensamento vagava pelos campos do Buenos Aires e veredas do Riachão.
Na adolescência, ergueu a voz. A visão alargou-se. O amor ganhou forma no jovem coração. Junto ao mar de Iracema, onde a jangada contempla infinitos, contraiu aquele impetuoso gosto pela liberdade. Nunca mais se deixaria acorrentar.
Foi quando suas mãos folhearam outros livros e seus ouvidos captaram outras mensagens. “O conflito que explica a história é a luta de classes”, dizia Marx. “A escola deve ser um espaço privilegiado onde se possa aprender a pensar”, apontava Paulo Freire.
Porém, na terra de Tiradentes e Dragão do Mar, o sol da liberdade já não brilhava em raios fúlgidos. Eram tempos de trevas. Fuzilavam-se jovens sonhadores nos sendeiros do Araguaia. Torturavam-se mulheres grávidas nos calabouços da ditadura, enquanto vozes raivosas bradavam: Brasil, ame-o ou deixe-o.
A loura menina outra vez empinou o nariz e disse: Não! E foi à luta, com a coragem que Seu Chiquinho aplaudiu e Donana abençoou. Um dia, o tirano embargou seus passos. Trancafiou-a, como se fosse possível aprisionar sonhos. Não sabia que os anjos têm asas.
Então, ela voou. E voou cada vez mais alto, levando força e fé aos companheiros. Jamais permitiria que a chama se apagasse. Mas, acossada, partiu. Na distância, conheceu a saudade infinda e cruel que avassala o peito dos exilados. E novamente decolou, sempre para mais longe, onde o carrasco fascista não pudesse alcança-la.
Estava à beira do Danúbio, ouvindo valsas de Strauss, quando, num raio de luz, desembarcou Mariana, aquela que viria ensinar-lhe a verdadeira dimensão do amor. Velhas canções de ninar embalaram as noites do desterro, enquanto a saudade aprofundava cicatrizes…
Até que ela voltou ao regaço da Pátria mãe. A ditadura agonizava. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia”, dissera, profético, o poeta. Não tardou e, de fato, a tirania caiu, esfacelou-se.
Seguiram-se tempos de regozijo, libertação e descobertas. Eis que, numa curva da estrada, seu olhar pousou sobre os ensinamentos de Rolando Toro. Ela, então, penetrou os meandros da afetividade. Aventurou-se pela poética do encontro. Essa força, esse olhar amoroso e transformador desenhou seus novos caminhos. CDH, Raio de Sol… por onde passava, a mulher madura, que tanta trilha percorrera, espalhava agora a mensagem da nova prática, que postulava a reeducação afetiva.
Sara e Davi vieram juntar-se ao ninho onde sobejava amor. Sorveram lições, cresceram, e agregaram novas brotações à grande árvore, que ampliou sua sombra para acolher Mel, Ana Lis, Vicente, Victor… E quem mais chegar.
Nessa narrativa, que se espraia das quebradas do Sertão até os Andes e os Alpes, há um doce nome que ressoa, em toda parte, com familiaridade e bem-querença: Ruth, estampam os documentos oficiais; Ruivinha, reza a certidão afetiva da Terta.
Italo Gurgel – Quixaba, 15/04/2023