Sobre as novas regras do “arcabouço fiscal”
O grande problema das novas regras são que elas, na prática, perpetuam o teto de gasto, ao manter a exigência de um resultado primário sempre superavitário ou pelo menos zerado
Publicado 04/04/2023 18:58 | Editado 06/04/2023 15:51
O Portal Vermelho passa a contar com a editoria de Economia e Desenvolvimento. Lecio Morais, Flávio Tonelli, Marcelo Fernandes, Diogo Santos, Nilson Araújo, Elias Jabbour e A. Sérgio Barroso se revezarão semanalmente abordando assuntos do cenário econômico nacional e internacional.
O projeto é aberto e poderá incluir outros autores, quer dizer, não se trata de emitir opiniões “oficiais”, mas de ouvi-las a partir de um ponto de vista onde as ideias são convergentes com o pensamento marxista, progressista e desenvolvimentista.
O primeiro artigo é de Lecio Morais, que busca fazer uma síntese da proposta do governo Lula denominada de “novo arcabouço fiscal”.
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Em dezembro passado, o Congresso revogou o dispositivo que criou um teto de gasto para o governo federal, congelando, por 20 anos o valor real do orçamento, e restabelecendo a lei complementar como norma definidora das regras fiscais.
A proposta de um novo “arcabouço fiscal” que, no fundamental, manteve um teto fiscal, relativizando agora ao “resultado primário”, um parâmetro determinado pela variação do Produto Interno Bruto (PIB).
A manutenção do teto de gasto, mesmo que relativa, vem sendo, com razão, o alvo principal das críticas.
Como a medida dos parâmetros estão expressos em frações de “resultado primário”, acho importante começar por uma discussão desse conceito fiscal.
O produto primário
O conceito de “resultado primário” expressa a soma de todo o gasto público não financeiro, do exercício, geralmente apresentado em relação ao PIB anual. Ele faz parte de um quadro de controle fiscal mais abrangente, denominado “Necessidade de Financiamento do Setor Público” (NFSP).[i] Quando uma conta do resultado primário aparece como positiva, a conta representa um superávit; se negativa tem-se um déficit, equivalendo à emissão de dívida pública.
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O conceito de resultado primário foi introduzido no Brasil no início dos anos noventa, como forma de identificar facilmente o gasto público, facilitando, posteriormente, a adoção do Plano Real, em 1994.
Esse conceito tem como vantagem ser um cálculo mais simples e instantâneo do comportamento da dívida pública, substituindo o resultado do balanço do governo, por ser mais complexo e sujeito a manipulações. Mas a simplicidade alcançada tem como objetivo principal disponibilizar, em curto prazo, informações sobre a situação da dívida pública (em títulos), indicando sua sustentabilidade e sua influência sobre a política monetária, o meio circulante e as reservas bancárias. Dado esse viés financeiro e de curto prazo, é indiferente ao resultado primário se o gasto público se destine ao consumo ou ao investimento.
Outra característica do resultado primário é que o gasto com juros não seja explicitamente considerado no cálculo do déficit público. A razão dessa exclusão é que, geralmente, os juros são liquidados pela própria emissão de dívida, sendo assim implícito na dívida pública.
O arcabouço fiscal
Vejamos agora o projeto do “arcabouço fiscal”. O grande problema das novas regras são que elas, na prática, perpetuam o teto de gasto, ao manter a exigência de um resultado primário sempre superavitário ou pelo menos zerado. Essa regra restringe a ação do governo em praticar uma política anticíclica efetiva em caso de uma crise recessiva, permitindo, no caso, emissão de dívida pública entre 6% a 2,5% para financiar o déficit necessário, um montante pequeno e que terá de ser coberto no ano seguinte. O que, na prática, inviabilizará o retorno ao equilíbrio fiscal.
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Sem contar com uma ação anticíclica efetiva, o governo não tem como aliviar os efeitos destrutivos de uma crise, especialmente aqueles sofridos pelos trabalhadores, e até antecipando a recuperação econômica. Uma restrição que aliena o poder popular sobre a política econômica e à sua moeda, beneficiando apenas os interesses financeiros.
A previsão é que já nos exercícios de 2024-2026, o governo produza um superavitário entre 0,5% a 1% do PIB.
Infelizmente, muitos dos dados apresentados – como piso de investimento de 0,5% – são difíceis de avaliar, devido à falta de informação na apresentação oficial do “arcabouço”. Mas há uma sensação de que os limites de variação nos compromissos previstos nos parecem muito estreitos, sendo difícil acreditar que tais compromisso venham a ser alcançados ou cumpridos, criando cobranças políticas desgastantes ao governo. O que nos faz avaliar que o governo se inicia sob forte contenção.
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O mais estranho na proposta apresentada é nela não constar nenhuma projeção para o crescimento do PIB! Há muitas percentagens do PIB, mas não as do crescimento do próprio PIB.
É possível que tudo dê certo, caso se alcance percentagens robustas de crescimento do PIB e tais regras se mostrem virtuosas. Porém, a pesquisa de mercado do Banco Central está longe de indicar números promissores para o PIB prevendo 0% para 2023 e um pouco acima de 1,5% entre 2024-2026.[ii]
É verdade que os dois governos Lula também se deram sob exigências fiscais severas, com a média de superávits primários acima de 2% (até na crise, em 2009, houve um superávit de 1,2%) e uma taxa básica de juros da ordem de até 8% ao ano.
Para lograr esse êxito, os governos Lula contaram com condições externas muito favoráveis e uma condução de uma política monetária mais pragmática, garantindo um crescimento robusto e distribuição de renda.
Porém, agora, as condições internas e externas dificilmente estarão tão favoráveis. Em especial, quando a grande burguesia se apresenta mais forte e hostil do que no passado, controlando instituições tão fortes com um Banco Central “independente”, um mercado de câmbio livre e uma bolsa de valores maior e mais poderosa.
[i] A NFSP é formada, além do “resultado primário”, pelo de “Juros nominais” que, somados, constituem o “Resultado nominal”.
[ii] BCB, Relatório Focus, em 04/04/2023.