Mortes ligadas a operações policiais na Maré aumentaram 145% em 2022
Levantamento da ONG Redes da Maré mostra que nove em dez mortes têm indícios de execução extrajudicial; número é o maior em três anos
Publicado 13/03/2023 11:51 | Editado 14/03/2023 09:16
Um levantamento feito pela organização não governamental (ONG) ‘Redes da Maré’ aponta que nove em dez mortes (89%), ocorridas durante operações policiais no Complexo da Maré em 2022, tiveram indícios de execução extrajudicial. Só no ano passado, foram registradas 39 mortes por armas de fogo, 27 delas em contexto de operações policiais e 12 em ações de grupos armados. O perfil das vítimas aponta para um padrão em situações deste tipo: 97% eram homens e, destes, 81% foram identificados como pretos ou pardos e 61% tinham até 29 anos.
Os dados foram publicados na 7ª edição do boletim Direito à Segurança Pública na Maré, divulgado nesta segunda-feira (13). O estudo mostra também o descumprimento sistemático dos critérios definidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para a realização de operações policiais, estipulados pelo instrumento que ficou conhecido como “ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635) das Favelas” – tônica das incursões policiais ocorridas no conjunto de 16 favelas da Maré em 2022 e que resultou no maior número de mortes dos últimos três anos.
‘De Olho na Maré!’
De acordo com o projeto ‘De Olho na Maré!’, nas operações policiais realizadas foram descumpridas normas estabelecidas pela Suprema Corte, como a presença de ambulâncias para socorrer pessoas feridas, distanciamento de ações próximo a unidades de ensino e uso de câmeras de vídeo ou aparelhos GPS para monitoramento das operações.
O boletim destaca ainda como estas ações afetam o cotidiano dos moradores, com o fechamento de escolas, creches e unidades de saúde, além de denunciar múltiplas violações de direitos. “Ao todo, 62% das operações aconteceram perto de escolas e creches e 67% nas proximidades de unidades de saúde, colocando em risco a vida de moradores – em especial, crianças, adolescentes e idosos. Foram, ao todo, 15 dias de aulas e 19 dias de atendimentos em saúde suspensos por causa das operações policiais, acarretando transtornos no cotidiano das pessoas que trabalham, estudam e vivem no território.”, diz o documento.
Importante conquista das organizações sociedade civil no sentido de diminuir a letalidade e defender os moradores das sistemáticas violações de direitos durantes as operações policiais, a ADPF das Favelas contribuiu decisivamente para a redução de 82% das mortes entre 2019 e 2020. No entanto, entre 2021 e 2022 a decisão do STF tem sido descumprida pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, que até hoje não apresentou um Plano de Redução da Letalidade Policial que inclua as reivindicações da sociedade civil e de órgãos como a Defensoria Pública do Estado.
“Todo este contexto torna-se ainda mais dramático quando constatamos que grande parte das mortes tiveram indícios de execução. Nas operações policiais, o número chegou a 89%. Nestes casos, as vítimas não têm qualquer chance de defesa, elas sofrem uma sentença de morte onde as chances de investigação e responsabilização dos culpados é mínima”, analisa Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré. “Todo cidadão tem direito a uma defesa de qualidade, ao acesso à Justiça e, se for o caso, ao cumprimento da pena de forma digna”.
Aumento no número de mortes
A pesquisadora da ‘Rede da Maré’ e coordenadora do projeto, Camila Barros, diz que o que chama atenção nesse boletim “é o aumento do número de mortes em operações policiais. Se em 2021 muito por conta da ‘ADPF das favelas’ e da suspensão das operações por conta da pandemia, a partir da ADPF pelo STF, a gente teve uma redução considerável dos impactos das operações policiais e, consequentemente, das mortes. Então nesse ano de 2020 tivemos 5 mortes; em 2021 esse número cresceu para 11; em 2022 esse número cresceu para 27, o que significa um aumento de 145% quando a gente compara 2022 com 2021.”
Camila fala sobre duas operações emblemáticas que tiveram em 2022: “uma em setembro, na favela Baixa de Sapateiro, e a outra em novembro, na favela Nova Holanda, que são duas favelas que compõe o conjunto de favelas da Maré. Essas operações foram marcadas exatamente pelos indícios de execução a partir dos agentes da segurança pública.”
Ela detalha ainda que no episódio da favela Baixa do Sapateiro, “19 pessoas foram mantidas em cárcere privado [por policiais] numa casa. Houve uma mobilização muito grande dos moradores e das lideranças locais. Se não tivesse toda essa mobilização, possivelmente teria mais uma chacina naquela ocasião. Mesmo assim, duas pessoas foram executadas. O relato que a gente tem é que foram escolhidos a dedo e executados com um tiro na cabeça.”
Segundo a pesquisadora, a partir dessa perspectiva, “é importantíssimo a gente estreitar a relação dos movimentos sociais, os movimentos de favela e as instituições locais com o poder público para pautar o direito à segurança pública de fato. Assim como toda a política pública, a política de segurança pública está em constante disputa. E a gente precisa que o poder público de fato garanta o direito mais básico que é o direito à vida dos moradores de favela.”
Segundo Camila, os dados foram compilados com base em várias fontes, como a observação direta de colaboradores da ONG (que ficam de plantão durante os confrontos armados), relatos de testemunhas, evidências físicas dos locais dos crimes e laudos do Instituto Médico-Legal (IML).
Ampla violação de direitos dos moradores
O boletim abarca violências para além de mortes e ferimentos graves. Em 2022, foram constatadas 283 violações de direitos – a maioria delas contra moradores – sendo que 91,5% dos casos foram durante operações policiais.
Dentre as ações estão invasão a domicílio, violência psicológica, violência física, dano a patrimônio, cárcere privado, tortura, subtração de pertences, ameaças, violência verbal e assédio sexual.
Desde 2012, a Redes da Maré realiza a campanha “Somos da Maré. Temos Direitos!”, com ações de apoio a moradores com a difusão de informações sobre direitos fundamentais e esclarecimentos sobre os procedimentos legais em operações policiais e em que condições estas ações podem acontecer. A campanha também oferece informações sobre suporte legal e redes de apoio no território em caso de violações de direitos.
Dentre outros dados, informações e recomendações, o boletim apresenta também a série histórica do impacto da violência armada na Maré entre 2017 e 2022, o que viabiliza uma análise de longo prazo das consequências das operações policiais e confrontos de grupos armados na Maré. Os dados mostram ainda como intervenções do Poder Judiciário, como a ACP da Maré e a ADPF das Favelas, contribuem para reduções significativas no número de mortes, especialmente durante as operações policiais.
A íntegra do bolémt pode ser acessada aqui: www.redesdamare.org.br/publicacoes
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com informações de Redes da Maré