Moeda comum: retórica integracionista ou estratégia geopolítica?

Há um consenso de que moedas digitais são tendências crescentes em governos de todo o mundo, e claro, o Brasil e América do Sul não podem ficar de fora

Presidente Lula e Alberto Fernández durante cúpula da Celac, em Buenos Aires. Foto: Ricardo Stuckert/PR

A possibilidade de criação de uma moeda regional na América do Sul tem sido um tema polêmico nas análises, mas quais são as principais transformações centralizadas nessa proposta?

Aos críticos, de imediato destacamos que se trata de uma moeda regional e não uma moeda única, como é o Euro para a União Europeia. No caso sul-americano, seria uma moeda para transações comerciais (do comércio internacional) entre os Estados da região, que decidam incorporar-se, ou seja, não se trata de uma moeda de “circulação” interna. De acordo com diversas fontes, tudo indica que se chamará “Sul”, ou “Sur” na sua tradução em espanhol. 

Quando se trata de integração regional, não podemos analisar apenas pela compreensão técnica e econômica, mas sim os fatores políticos, pois qualquer avanço na integração regional da América Latina depende majoritariamente da vontade política e correlação de forças. 

Por trás dessa proposta há vários sinais políticos de grande relevância, talvez o mais significativo seja o retorno do Brasil à Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac). Na última cúpula, o Brasil se aproveitou do alcance geográfico e político dessa organização para reafirmar o compromisso com um projeto de integração latino-americana que gere maior soberania e autonomia estratégica para o nosso continente. 

A Celac surgiu no México, em um contexto de perda de legitimidade da Organização dos Estados Americanos (OEA), e com ela do sistema interamericano no seu conjunto. Sem dúvida a Celac tem uma relevância inquestionável na reorganização geopolítica, e o retorno do Brasil, junto a um novo governo de bases sócio-políticas populares, é um fato histórico. 

Outra posição importante para compreender em que cenário se dá a proposta da moeda comum é a sinalização do retorno da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

O objetivo de uma moeda regional sem dúvida é ambicioso, mas quando começamos a escrever este texto nos questionamos: por que agora, em um momento de transição de um novo governo, e não depois?

Ainda que a ideia esteja soando no âmbito doméstico no Brasil há vários anos, formalmente é uma iniciativa conjunta dos governos brasileiro e da Argentina. A proposta inicial é que seja uma moeda digital para facilitar (e diminuir os custos) das transações do comércio exterior na região, e de forma concomitante reduzir a dependência do dólar.

Há um grande debate teórico sobre integração regional na formação acadêmica de relações internacionais, pois dentro da perspectiva teórica clássica seria mais “lógico” continuar fortalecendo os mecanismos de integração – seguir passo a passo do que a teoria da integração nos ensina, onde a implementação de uma moeda seria um dos últimos estágios. Mas nem sempre as respostas podem ser encontradas na teoria, e quando esta não reflete a realidade, é necessário voltar para os acontecimentos e compreender as correlações de forças. 

Dessa forma é válido destacar que as etapas já estabelecidas no passado para a progressiva construção do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e Unasul, foram esvaziadas e debilitadas, desde 2015, pelas políticas externas neoliberais. 

A resposta é complexa e para compreendê-la é necessário fazer o exercício de análise geopolítica mais ampla, pois apenas a análise da conjuntura regional não basta. Há que ter em conta que já existe um projeto do Federal Reserve dos EUA (FED) para criar uma espécie de “dólar digital”. A possibilidade da criação de uma versão digital oficial do dólar foi levantada pelo FED em um relatório publicado em janeiro de 2022. A concretização do dólar digital viria a dificultar, ainda mais, a criação de um mecanismo de pagamentos e transações como uma moeda regional na América do Sul. 

De certa forma isso mostra a urgência com que a questão da moeda vem sendo levantada desde a campanha presidencial de Lula da Silva: “se Deus quiser vamos criar uma moeda na América Latina para não ter esse negócio de ficar dependendo do dólar”, afirmou o então candidato em 30 de abril de 2022.

O FED está considerando a possibilidade de lançar um dólar digital desde 2017 e, especialmente em 2022, tem sido muito debatido na imprensa nacional dos EUA. Esse dólar eletrônico seria considerado moeda legal e funcionalmente idêntico a um dólar físico. Rohan Grey, professor assistente da Universidade de Willamette, nos EUA, que foi consultor da proposta, disse ao CoinDesk que “estamos propondo ter um instrumento ao portador genuíno semelhante ao dinheiro, um sistema baseado em token que não possui um livro-razão centralizado ou distribuído porque não tem nenhum livro. Ele usa software e hardware seguros e é emitido pelo Tesouro”. [1]

Os avanços no sistema político norte-americano e a celeridade com que tem se tratado os diversos projetos (há mais de um, claro) no sistema político deve ter sido um sinal para os nossos políticos, fundamentalmente para a cúpula que acompanha o presidente Lula. A implementação do dólar digital acarretaria maior dependência dessa moeda, num contexto internacional que tem sido marcado, nos últimos anos, pela diversificação monetária. 

Os criptoativos, eliminam a necessidade de uma conta bancária para realizar transações, o que é visto pelo FED norte-americano como um ponto favorável de um possível dólar digital devido à possibilidade de inclusão financeira.

A proposta de uma moeda digital compartilhada com os países da região não é nova, o avanço de alguns processos, como o dos EUA tem acelerado os tempos políticos. Esta vez a política sobrepõe-se à economia, e podemos dizer que estamos numa “corrida monetária”. Esse fator é central no debate, pois é reflexo da tendência de diversificação de moedas que ocorre em todo o mundo, principalmente em um cenário internacional marcado pelas consequências geoeconômicas decorrentes da guerra da Ucrânia. 

Ao analisarmos os discursos de Lula ao longo deste ano, há um argumento que se repete uma e outra, e outra vez vejamos. Em 23 de janeiro, no encontro com o presidente argentino Alberto Fernandez, Lula declarou: “se dependesse de mim, a gente teria comércio exterior sempre nas moedas dos outros países para que a gente não tenha que depender do dólar. Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Mercosul? Por que não tentar criar uma moeda comum entre os países do Brics?” 

A procura de soberania monetária pode ser sintetizada na frase “diminuir a dependência do dólar”, ao mesmo tempo, que desde os Estados Unidos se considera dólar digital é “necessidade unânime” para competir com a China.

Outro ponto de destaque é que todas as atuais movimentações políticas dos principais atores globais estão sob uma lógica de reorganização, após a guerra da Ucrânia. As sanções econômicas contra a Rússia em março de 2022 não significaram de fato um bloqueio econômico, como ocorre com Venezuela e Cuba, pois rapidamente apostaram na diversificação monetária para suas transações diminuindo os impactos da sanção em relação ao uso do dólar. Esse fato acelerou uma tendência mundial de uso de criptomoedas e diversificação de divisas. 

Num artigo do Exame, na seção Future Money, de 21 de setembro de 2022, se insiste sobre o porquê  o governo norte-americano deveria lançar um dólar digital. Lá se enumeram vários motivos: para que o país possa manter sua soberania na concorrência com a China, que já está em fase avançada de testes de seu iuane digital; garantir que o dólar norte-americano “permaneça a moeda de reserva de valor mundial”; os EUA precisam de “um ativo digital que mantenha seus valores” para que os potenciais investidores optem por comprar uma CBDC norte-americana ao invés de uma chinesa.

Portanto, existe um consenso sobre o fato de que as moedas digitais de bancos centrais são uma tendência crescente em governos de todo o mundo, e claro, o Brasil junto à América do Sul não podem e nem devem ficar por fora dessa tendência mundial, que, entre outras coisas, permitirá diminuir os custos de importação e de exportação entre os países que aceitem as moedas digitais. É neste contexto, de não ficar atrás da corrida monetária, que a necessidade de criar o “Sur” se desenvolve para além da retórica integracionista e sim fundamentada em uma estratégia geopolítica. 

Se o objetivo é voltarmos mais soberanos e autônomos, num mundo que cada vez mais depende da força das regiões e não dos Estados nacionais isoladamente, acreditamos que os países da região deveriam analisar, com sentido estratégico, a proposta que tem sido formulada pela agora renovada aliança estratégica entre Brasil-Argentina. 

Considerando que há um cenário constante de disputa no Brasil, há implicações na força da proposta que dependem da tramitação e apoio interno, inclusive do Banco Central. 

¹https://www.google.com/amp/s/www.infomoney.com.br/mercados/legisladores-dos-eua-propoem-dolar-digital-totalmente-anonimo-entenda/amp/.

(*) Amanda Harumy é doutoranda do Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (Prolam) da Universidade de São Paulo (USP), coordenadora geral da Associação de Pós Graduandos da USP Capital e integrante do programa Rodamundo, de Opera Mundi.

(*) Nastasia Barceló é doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (Prolam) da Universidade de São Paulo (USP) e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas. 

Autores