Negociação pela paz sai do horizonte da guerra na Ucrânia
Especialista em Relações Internacionais, Flávia Loss, aponta como o discurso sobre a guerra se altera conforme os avanços bélicos de cada lado.
Publicado 09/02/2023 18:53 | Editado 11/02/2023 11:19
As motivações reais de uma guerra vão se perdendo com o tempo. Há um momento em que ninguém mais sabe porque algo tão destruidor pode ser justificado. As próprias motivações da Rússia contra a Ucrânia se alteraram, partindo de uma exigência contra um acordo de instalação de bases da OTAN (o exército ocidental que cerca a Rússia, desde o período comunista), até a possibilidade de anexação de territórios ao leste.
Durante entrevista ao Portal Vermelho, a especialista em Relações Internacionais, Flávia Loss Araújo (FESPSP), observa como a narrativa da guerra se alterou em apenas um ano, chegando ao patamar atual. 2023 começou com os EUA e países europeus dispostos a enviar armamentos pesados para uma ofensiva ucraniana contra a Rússia. Com isso, segundo ela, as negociações pela paz sumiram do horizonte.
Flávia nota como a imprensa e a inteligência militar do Pentágono são cautelosos no uso de palavras que eram corriqueiras em outros momentos. “Não se fala em vitória ou derrota, mas em sangrar, causar grandes danos a Rússia”, observa. A facilidade com que se alardeava a proximidade da derrota russa na imprensa ocidental, agora é algo menos visível.
A guerra que começou com um discurso de defesa da Ucrânia, evoluiu para infligir derrotas a Rússia, mas sem cravar a possibilidade de colocar Vladimir Putin de joelhos. “Não se fala em vitória total, pois a Rússia demonstrou sua potencialidade militar (e nuclear)”, pondera ela.
De qualquer forma, tudo aponta para um contra-ataque muito forte do Ocidente, nestes primeiros meses do ano, com resultados imponderáveis. “A narrativa da guerra é imprevisível, pois depende da represália que virá da Rússia. A eventual mudança de discurso, de sangrar a Rússia para destruí-la, ou fazer concessões rumo a paz, vai depender da resposta desta potência nuclear”, diz a professora.
Política Externa brasileira
Desde a campanha eleitoral, o candidato presidencial Luis Inácio Lula da Silva, já falava em um esforço do Brasil para intermediar a paz e interromper esta escalada de destruição que afeta o mundo todo. Assim que assumiu, vetou a proposta de envio de tanques à Ucrânia. Em sua viagem aos EUA, já antecipou que vai propor um Clube da Paz a Joe Biden, como já propôs ao governo alemão.
A professora Flávia considera acertada a posição do governo brasileiro de vetar o envio de armamentos e sinalizar um esforço pela paz. “Os países em desenvolvimento, do Sul Global, condenaram a invasão russa, mas não aderiram às sanções e discordam do isolamento da Rússia. Isso abre uma oportunidade de diálogo”, diz ela.
Ela lembra que o Brasil faz parte dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), portanto também deve se colocar nessa mesa de negociação. “O Brasil é uma voz importante, ainda mais num cenário que tem pouquíssimas vozes pedindo negociações. É mais alguém pedindo que os ânimos diminuam e apelando a um diálogo mínimo”.
Ela imagina essa iniciativa como um pressão de vários países em desenvolvimento, num esforço contínuo e prolongado. “Esta é uma posição alinhada com a política externa brasileira tradicional. O Brasil é um país pacífico, que respeita a autonomia dos demais países, preza por isso, tem respeito pela Carta da ONU, e tem bom diálogo tanto com a Rússia, quanto com a Ucrânia”, mencionou.
Este, portanto, seria um movimento que não vem nem da União Européia, nem dos EUA, neste momento. “Não podemos ser ingênuos de que isso resolveria, mas essa possibilidade tem que estar na mesa, o tempo todo. Ou vamos ficar com este conflito se prolongando indefinidamente. Sem falar na convivência com uma ameaça nuclear”, alertou.
Ao comentar que Lula declarou que sua “guerra é contra a fome”, Flávia observou que uma das poucas mesas de negociação bem sucedidas em todo este período, ocorreu por iniciativa da Turquia, para um acordo de escoamento de grãos. A insegurança alimentar que atingia os países dependentes do trigo ucraniano só foi debelada por que houve essa negociação bem sucedida para escoar grãos, pelo Mar Negro, e garantir o abastecimento em países dependentes do trigo ucraniano. Com isso, diz ela, se evitou uma catástrofe de fome e insegurança alimentar em países da África e da Ásia.
“Se os EUA e a UE não estão discutindo ou preocupados com a insegurança alimentar no mundo, que os países em desenvolvimento tenham sua voz ouvida”, defendeu.
Narrativa em andamento
O dia 24 de fevereiro é considerado a data de início da invasão da Ucrânia pela Rússia. Um ano depois, só agora, ocorre o envio de armamento pesado para “defesa” da Ucrânia. Algo que a Rússia considera um envolvimento duvidoso de outros países da OTAN no conflito bilateral.
No começo da guerra, o Ocidente (EUA e União Europeia) decidiu só enviar munições e armamentos mais leves para não ter um envolvimento direto na guerra e sofrer ataques da Rússia.
“A ideia era enviar todo o armamento e dinheiro necessário sob um discurso, anteriormente, de defesa da Ucrânia. Com o tempo, conforme a Rússia recuava para o leste, em Donetsk e Luhansky o discurso mudou, e a percepção, inclusive do Pentágono (inteligência dos EUA) quanto da UEE, é que este é o momento de entrar com armamentos mais pesados”, explica Flávia.
Ela menciona a resistência da Alemanha em participar disso. “Ela não quer ser a líder europeia do envio desses tanques Leopard e condiciona o envio à participação dos EUA, também. A logística para envio desses tanques é imensa, demanda treinamento especial das tropas, porque são muito avançados. Com isso, daqui a alguns meses, o contra-ataque da Ucrânia pode, sim, levar a uma mudança da balança dessa guerra a favor dela. Mas é muito cedo para falar em vitória, porque a Rússia também vai se prepara para responder e não se sabe o que pode acontecer”.
De acordo com ela, a aposta que o Ocidente está fazendo é que é possível causar grandes danos ao exército russo. “O Pentágono tem sido cauteloso no sentido de conseguir infligir derrotas, a ideia é ir sangrando e debilitando, mas não se acredita em uma vitória total, porque os russos são uma potência militar e nuclear. Eles têm capacidade de enviar mísseis de longo alcance, com bombardeios a qualquer ponto do território da Ucrânia e até da Europa, e existe a capacidade nuclear, que já foi usada como ameaça. Esse risco é real. Por isso a cautela”.
A especialista não acredita que a guerra se amplie para outros países. Ao contrário do que, às vezes, parece na mídia, “de que os russos estão perdidos e enfraquecidos”, ela avalia que eles têm uma estratégia e “sabem o que estão fazendo”. “Recuaram para o Donbass, na fronteira com a Rússia, mas para se recuperar, montar nova estratégia”.
É importante observar, na opinião dela, que o território russo ainda não foi atingido. “Teve quase cem mil mortes de soldados, que é algo inimaginável, que afeta a opinião publica russa, mas ainda não houve destruição dentro do território russo”, diz ela, sobre o apoio mantido por Putin entre o povo e as elites locais.
Para todos os efeitos, Flávia considera importante manter o senso crítico em relação ao noticiário e propaganda de guerra de ambos os lados. “Para a gente, aqui no Ocidente, chega muito mais informação da Europa e dos EUA, do que da Rússia. É um duelo de narrativas”, afirmou.
“Mas a verdade, geralmente, está no meio”. Ela recorda que, no começo da guerra, a Rússia teve, de fato, vários problemas logísticos com armamentos antigos, do período soviético, uma certa desorganização das tropas e até problemas de comunicação com os generais.
“Mas este discurso subestimou muito a potência militar que é a Rússia. Temos sempre que lembrar a capacidade de lançar mísseis de longo alcance e a última cartada, que é a ameaça nuclear. Tanto que a própria mídia dos EUA mudou o tom e já não fala tanto em vitória, mas em sangrar e diminuir as capacidades do exército russo”, resumiu.
Horizonte sem esperança
Os esforços por diálogo foram ínfimos, conforme a opinião da pesquisadora. “Os dois países beligerantes não queriam dialogar. Quando se sentaram para conversar foi por pressão de seus aliados. Com isso, as demandas são irredutíveis, de ambos os lados”, diz ela.
Flávia menciona as condicionantes que travam completamente o diálogo. “A Ucrânia é o país que sofreu a agressão, não aceita ser conquistado, dominado e anexado. Por outro lado, a Rússia tem motivos muito fortes, em questão de segurança nacional. Esse é o ponto, por mais que muitos não aceitem. É compreensível que a Rússia não queira tropas da Otan na divisa do seu território. Não justifica a agressão, mas entendemos o medo por questão de segurança de suas fronteiras”.
Em novembro, os EUA pressionaram Zelensky para que ele amenizasse o tom e voltasse a usar a palavra negociação. Há um cansaço na Europa com os preços da energia, dos combustíveis, o aumento da inflação de tudo. Assim, o líder ucraniano começa a falar em negociação, mas coloca condições impossíveis para sentar na mesa sob a intermediação da ONU. Pede a retirada total da Rússia de seu território, que ela pague reparações de guerra por todos os danos de infraestrutura, pelas mortes que causou, cerca de cem mil, fora os sete milhões de refugiados por toda a Europa. E também que ela se submetesse a um tribunal internacional para ser julgada por seus crimes de guerra.
“A resposta da Rússia foram as suas condições também impossíveis de serem cumpridas. Em novembro, a Rússia queria que a Ucrânia reconhecesse sua soberania sobre os territórios que estão sob a sua dominação. Óbvio que ninguém sentou na mesa de negociação e não se avançou em nada”, conclui a professosra. A consequência disse é que Dimitri Peskov, porta-voz do Kremlin, o governo russo, disse que não vê condições diplomáticas de solução do conflito.
“O que se vê agora são só notícias de mais ataques e contra-ataques, reenvio de armamentos. Fugiu do campo de visão de ambos os lados a possibilidade de negociação”.