Planejar o nosso comércio exterior, precificar a “volta do Brasil ao mundo”

O desafio das relações Brasil-China em seu futuro imediato e não imediato demanda certo esforço de elaboração teórica. Artigo de Elias Jabbour

Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, recebe Protocolo de Intenções diante dos presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da China, Hu Jintao. (Foto: Antônio Cruz/ABr.)

Muito se tem discutido sobre os termos das relações Brasil-China. Pela direita, seria um exemplo de utilização de nossas “vantagens comparativas”: afinal, indústria e agricultura seriam basicamente a mesma coisa e essas “vantagens” foram amplamente utilizadas pelo governo Bolsonaro, com a concentração de 91% de nossas exportações para o país asiático em apenas dez produtos. Mesmo entre os dez produtos, há uma impressionante concentração em três itens: soja, minério de ferro e petróleo (1). A questão não se encerra aí. Não há problemas em termos a China como nosso maior parceiro comercial. A contradição está na ampliação do papel deste país em nossas exportações: em 2021, 46,4% das exportações brasileiras foram direcionadas à China (2). Detalhe importante é que nenhum item de nossas exportações tem seus preços criados dentro do país, o que nos deixa vulneráveis ante as flutuações de preços externamente criados.

Pela “esquerda”, o próprio fato de uma leitura sobre a China estar presa a formas positivistas e a um marxismo acadêmico vulgar ainda predomina. Portanto, o fato de se observar aquela experiência utilizando-se de um pleonasmo (“capitalismo de Estado”) impede a percepção de que o surgimento de uma nova formação econômico-social por lá nos obriga a construir novos marcos teóricos, conceituais e categoriais. Sem isso, não se surpreende tomar a nuvem por Juno e aplicar à China a alcunha de país imperialista. Ora, se o conceito se manifesta no movimento real, a ideia não pode vir antes da matéria. Essa nova formação econômico-social enseja o surgimento de novas e superiores formas de planificação econômica capazes de elevar a capacidade do Estado, via grande produção e grande finança públicas, de intervir rapidamente sobre a realidade (“Nova Economia do Projetamento”) via execução de milhares de projetos simultaneamente; eleva-se o domínio humano sobre a natureza; novas regularidades econômicas surgem e urgem descoberta, currente calamo.

A questão que nos cabe é que essa capacidade não se circunscreve aos marcos nacionais chineses, mas nas possibilidades desta Nova Economia do Projetamento ser a base fundamental ao surgimento de uma globalização alternativa à neoliberal patrocinada pelos Estados Unidos (3). Seu instrumento institucional: a Belt and Road Initiative. Rapidamente o eixo da economia internacional está migrando do Atlântico Norte à Ásia centrada na República Popular da China. Afora o peso do referido país em nossas pautas de exportações e importações, o esforço de nossa inteligência nacional deve se remeter à criação de instituições capazes de potencializar as relações entre os dois países, tendo como marco uma agenda que priorize nossos interesses estratégicos, sendo o principal deles a reconstituição de nossa base física a novos e superiores esquemas de divisão social do trabalho. É fato que o grau de deterioração de nossas infraestruturas embute um risco à própria integridade territorial do Brasil. Esse é um ponto fundamental e que deveria ser motivo per se para reflexões que vão além dos investimentos em si.

O desafio das relações Brasil-China em seu futuro imediato e não imediato demanda certo esforço de elaboração teórica que escapa muitas vezes àqueles envolvidos neste tipo de discussão. O campo desta elaboração é a história. A planificação em um país como o Brasil não tem nada a ver com o que vemos, por exemplo, na experiência chinesa. Portanto, nessas condições o nosso papel é o de nos organizar no sentido de aproveitar os movimentos impostos pela vida. Aqui urge uma necessidade essencial ao que se tem chamado tanto de “reconstrução nacional” quanto de “volta do Brasil ao mundo”. A nosso ver a volta do Brasil ao mundo deve ter um preço claro: a nossa reindustrialização. Seu instrumento fundamental: a planificação do comércio exterior. A percepção dos movimentos que a vida nos entrega e como aproveitar ao máximo as possibilidades do mundo.

Exemplos abundam. No final da década de 1950, o Brasil aproveita a tendência do automóvel emanado dos Estados Unidos. Na verdade, dada as condições incipientes de nossa industrialização àquela época, a opção pela rodovia mostrou-se a mais correta diante de uma realidade onde o Brasil mal se constituía em um marco nacional unificado, com as próprias ferrovias existentes espelhando a realidade de um país formado por “ilhas econômicas”. A opção pelo automóvel e o caminhão foi parte fundamental da constituição de uma imensa indústria metalmecânica em nosso país.

O desenvolvimento das forças produtivas no país nos últimos tempos, sobretudo em nossa agroindústria, e o aumento dos fluxos inter-regionais de transporte têm demonstrado os limites da opção rodoviária, colocando na ordem do dia a substituição da rodovia pela ferrovia no Brasil. Logo, diante de tarefas como a de resgatar toda a capacidade produtiva destruída pela Operação Lava-Jato, é imperativo de futuro planificar o nosso comércio exterior no sentido de negociar e operar a instalação de centenas de milhares de quilômetros de trens de média e alta velocidade por parte dos chineses.

Assim, a “volta do Brasil ao mundo” passa a ter sentido com a necessidade de escalar as relações com esse gigante asiático em patamares superiores, nos mesmos moldes ao que testemunhamos por parte do Irã (4), que, em uma troca de petróleo por obras públicas e transferência de tecnologias (criação de um departamento novo na economia do referido país), inaugura a viragem para uma época em que a lei da degeneração dos termos de troca não é algo mais absoluta. O ambiente internacional de acirramento das rivalidades entre EUA e China amplia as possibilidades do Brasil e da precificação de nossa volta ao mundo. Aos EUA não interessa a presença chinesa operando a unificação física do Brasil e da América do Sul. Aos chineses não interessa um Brasil fraco, desintegrado e com seu tecido social esgarçado. O Brasil é fundamental ao sucesso da empreitada de um mundo multipolar.

O momento é de elevar a um patamar muito superior as nossas relações com a China. Toda uma plasticidade institucional deverá ser construída com a presença das mentes mais capazes do país, subordinadas ao gabinete da presidência da República, com o intuito de pensar nossas relações com os chineses como parte fundamental do resgate do esforço iniciado com a Revolução de 1930. Temos reservas imensas de petróleo. Os chineses, os bens públicos e suas capacidades produtivas anexas que o Brasil precisa para a nossa reconstrução. Superar a “nova dependência” e construir uma industrialização pela planificação de nosso comércio exterior: estão postas as contradições e as múltiplas formas de superá-las. Parece, mas não é. O mundo anda tão perigoso quanto propício aos interesses nacionais brasileiros. Temos quatro anos para construir um verdadeiro casamento de dois grandes projetos nacionais.

Notas:

1 Brasil concentra vendas na China como nenhuma outra grande economia e isso pode ser um problema. Valor Econômico. 22/10/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/07/10/brasil-concentra-vendas-nachina-como-nenhuma-outra-grande-economia-eisso-pode-ser-um-problema.ghtml.

2 China é maior responsável por exportação recorde. Valor Econômico. 14/01/2022. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/ noticia/2022/01/14/china-e-maior-responsavelpor-exportacao-recorde.ghtml.

3 Sobre isto, ler Jabbour, E.; Dantas, A.; Vadell, J. (2021). Da nova economia do projetamento à globalização instituída pela China. Estudos Internacionais, v. 9, n. 4, p. 90-105.

4 Watkins, S. China Inks Military Deal with Iran Under Secretive 25-Year Plan. Global Research, jul. Disponível em: https://www.globalresearch.ca/china-inks-military-deal-iran-under-secretive25-year-plan/5718940.

**Artigo de Elias Jabbour publicado orginalmente no Jornal dos Economistas.

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