Vecina defende retorno de Mais Médicos
O médico sanitarista foi alvo de repúdio de entidade médica por criticar a Lei do Ato Médico e o corporativismo, em detrimento do interesse público
Publicado 27/01/2023 17:38 | Editado 30/01/2023 07:38
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) divulgou uma “Nota de Repúdio” a um comentário do médico Gonzalo Vecina Neto no Jornal da Cultura do sábado (4), em que defendeu o programa Mais Médicos e criticou a Lei do Ato Médico. Diante da ampliação da polêmica na imprensa, o Portal Vermelho procurou o sanitarista e professor da USP, que defende um “debate civilizado” sobre o assunto, em vez de repúdio.
“O Mais Médicos precisa voltar. Se vai precisar de estrangeiros são outros quinhentos”, diz Vecina. Ele explica que o país ainda não é capaz de fornecer a quantidade suficiente de graduados em Medicina que a população precisa, algo que pode ser alcançado em alguns anos.
O Cremesp “repudiou” os comentários por fazer oposição aberta contra o programa criado no governo de Dilma Rousseff, especialmente por permitir a atuação de médicos com diploma estrangeiro sem revalidação nacional. A revalidação, no entanto, é acusada de ser um filtro intransponível para formados no exterior.
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A polêmica também ocorre no momento em que o secretário de Assistência Primária do Ministério da Saúde, Nésio Fernandes, antecipou nesta quinta-feira (26) a retomada do programa Mais Médicos, especialmente após a catástrofe sanitária verificada em Território Indígena Yanomami.
O novo Mais Médicos, segundo ele, dará prioridade aos profissionais com registro nos conselhos regionais. Posteriormente, as vagas não preenchidas serão ofertadas a médicos brasileiros formados no exterior, e por fim, as vacâncias poderão ser pleiteadas por médicos estrangeiros. Os conselhos são contrários à atuação de médicos que não tenham revalidado seu diploma no Brasil.
Para Vecina, os conselhos de categoria foram criados para proteger a população da eventual prática danosa de seus profissionais. Em vez disso, segundo ele, têm servido como defesas corporativas dos médicos, em detrimento do interesse público. O combate ao programa do governo para garantir profissionais médicos em áreas remotas do país, desprovidas dessa assistência, é um exemplo dessa inversão de valores.
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Para ele, o corporativismo tem seu valor ao defender os profissionais e estabelecer protocolos mínimos, mas não pode se sobrepor ao interesse social. A Lei do Ato Médico acaba funcionando exclusivamente para gerar uma reserva de mercado para médicos, e impedir outros profissionais de atuar, quando poderia ser uma referência de ética do serviço de saúde.
Ausência do Estado
Desde que assumiu o governo, Jair Bolsonaro reformulou o programa, provocando a saída simultânea de 8 mil médicos cubanos do país. Com isso, a mudança de nome do programa para Médicos Pelo Brasil, significou a extinção do programa e o retorno da falta de assistência para milhões de brasileiros.
Vecina insiste em dizer que, hoje, olhando para trás, as pessoas costumam exaltar o ex-ministro de Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, por ter destoado do presidente. O professor da USP elencou uma série de medidas catastróficas tomada por Mandatta, durante seu período de gestão, como o desmonte do Mais Médicos, entre outras políticas fundamentais do Ministério da Saúde.
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“Precisamos de mais médicos, 40% da população brasileira não tem acesso a médicos. No auge do programa ‘Mais Médicos’, o país tinha 15 mil profissionais. Cada médico atendia 3 mil pessoas, estamos falando em 45 milhões de pessoas que tinham acesso a médicos”, informa Vecina.
Lançado em 2013 pelo Governo Dilma, o projeto tem como objetivo suprir a carência de médicos nos municípios do interior e nas periferias. Mas Vecina salienta que, se houvesse médico nas florestas de Roraima, os ianomâmis teriam morrido de qualquer forma, porque o problema lá é bem mais complexo e grave do que a falta de profissionais. Ele se refere ao isolamento territorial, a contaminação dos rios, que impedem a pesca e causam doenças, a violência e desmonte de estruturas assistenciais, em resumo, “a total ausência do Estado”.
“O médico que vai para um fim de mundo tem que ter apoio de equipe. Não pode ficar sozinho, pois é até perigoso”, diz ele. O Mais Médicos tinha três componentes principais: investimento em infraestrutura das UBS, expansão das bolsas de residência nas faculdades de medicina e provimento de profissionais de saúde para as regiões com menos acesso.
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Outra ponderação que ele faz, é que o Brasil forma cada vez mais médicos com suas milhares de faculdades. Até 2026, diz ele, é possível que a meta de um médico para cada 300 habitantes seja alcançada (hoje são 600). Com isso, existe a possibilidade da oferta interna de profissionais ser suficiente para atender ao programa, como supõe Nésio Fernandes, ainda que no médio prazo.
Lei do Ato Médico
O médico aponta também que é necessário aumentar a capacidade das enfermeiras e outros profissionais para realizar atividades. A capacidade plena das profissionais de enfermagem, no entanto, é restrita pela Lei do Ato Médico. Segundo o sanitarista, os médicos seriam menos sobrecarregados se outros profissionais pudessem realizar os procedimentos de menor complexidade.
“Os médicos também não querem que as enfermeiras aumentem sua capacidade de realizar atividades. É preciso que a Lei do Ato Médico mude para que a enfermeira possa realizar atividades privativas dos médicos, pois ela tem conhecimento e técnica para isso”, defendeu.
Se, por um lado, lidar com as especialidades e as doenças mais graves é algo urgente e prioritário, por outro, muitas queixas de saúde podem ser prevenidas — ou resolvidas — bem antes.
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O primeiro contato dos cidadãos com o SUS acontece na “atenção básica”, com os médicos de família, agentes comunitários de saúde e Unidades Básicas de Saúde (UBS). É essa equipe que acompanha as pessoas de uma determinada região, avalia parâmetros básicos de saúde (peso, pressão arterial, glicemia, febre) e indica mudanças de estilo de vida que evitam várias doenças.
“Atualmente, cerca de 60% da população brasileira tem acesso à atenção básica em saúde, mas precisamos que esse número chegue a pelo menos 90%”, estipula o médico.
Só quando o caso é mais sério que o indivíduo acaba encaminhado para clínicas e hospitais especializados naquela enfermidade.
“A atenção básica é responsável por diagnosticar e tratar grande parte das doenças que as pessoas têm. A maioria das enfermidades crônicas e degenerativas, como hipertensão, diabetes e síndromes dolorosas, são acompanhadas nessa esfera do SUS”, resume Vecina.
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Vecina defende que o médico não é mais importante que a equipe, como se difunde no senso comum. Sem a equipe, este profissional tem sua capacidade muito reduzida, algo que precisa ser considerado pelo programa Mais Médicos. Uma equipe que realize trabalho de prevenção e atendimento primário à família evita que o paciente chegue até o atendimento especializado.
“Em Barcelona, um médico ganha 5 mil euros, enquanto uma enfermeira ganha 3.500 euros pelo trabalho de 40 horas semanais. No Brasil, um médico ganha em média R$ 25 mil contra os R$ 3.500 da enfermeira. Esta diferença é insustentável como política pública num país como o Brasil!”, afirmou.