Como Roberto Jefferson implodiu o PTB e virou o homem-bomba de Bolsonaro
Ainda que o episódio não tire votos de Bolsonaro, há pouca margem para que os temas desta reta final da campanha sejam pautados pelo presidente
Publicado 25/10/2022 10:46 | Editado 26/10/2022 08:52
No final da década de 1970, com a anistia política e a volta do pluripartidarismo ao Brasil, a corrente trabalhista rachou de vez. De um lado, a ala encabeçada pela deputada fluminense Ivete Vargas. De outro, o grupo liderado pelo ex-governador gaúcho Leonel Brizola. Declaravam-se, ambos, herdeiros do histórico PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, de Getúlio Vargas e João Goulart.
Sem acordo, cada parte tratou de viabilizar seu próprio partido trabalhista e reivindicar, junto à Justiça Eleitoral, a histórica sigla PTB. A decisão coube ao general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil no governo João Batista Figueiredo, que não tinha o menor interesse em fortalecer um opositor do porte de Brizola. Assim, em 12 de maio de 1980, por ordem de Golbery, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) entregou a Ivete, sobrinha-neta de Vargas, a mais simbólica das marcas trabalhistas.
Com o fim do bipartidarismo, a ditadura militar visava à divisão das forças oposicionistas, até então concentradas no MDB. O destino dos trabalhistas seguiu o script do regime. Enquanto Brizola se credenciou ainda mais como uma referência do campo democrático e progressista, Ivete logo costurou acordos com o regime e mostrou que o “novo” PTB tinha pouco em comum com o velho Partido Trabalhista.
Quarenta e dois anos depois, o PTB, livre de qualquer resquício trabalhista, a não ser pelo nome e pela sigla, lançou a candidatura do ex-deputado Roberto Jefferson à Presidência da República. Líder máximo do partido nas últimas décadas, Jefferson adotou, como Ivete, uma linha mais pragmática e menos ideológica. Governista por excelência, o PTB foi base das gestões Collor, FHC, Lula, Temer e Bolsonaro.
Em 2005, no episódio do “mensalão’, ele rompeu com o governo e usou as tribunas à sua disposição – na imprensa e no parlamento – para tentar chantagear Lula. Não teve sucesso. O STF (Supremo Tribunal Federal) o condenou por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, enquanto a Câmara Federal cassou seu mandato. No ano seguinte, Lula se reelegeu ao Planalto. O ex-deputado, com a condenação, está inelegível até dezembro de 2023.
Jefferson continuou a controlar o PTB com mão de ferro, mas parecia condenado ao segundo plano da política. Cada presidenciável do PSDB a receber seu apoio, nas eleições 2010, 2014 e 2020, não escondia o constrangimento nas cenas e fotos com o aliado de ocasião. O PTB, oscilando entre 22 e 25 deputados no período, era fonte significativa de tempo de TV para os candidatos majoritários.
Mas o partido fundado por Ivete Vargas começou a regredir, passando de dez deputados federais eleitos em 2018 a apenas um em 2022. Talvez para compensar o encolhimento de seu capital político, Roberto Jefferson abraçou o bolsonarismo e se tornou porta-voz de pautas conservadoras, ultraliberais e autoritárias.
Quando atos antidemocráticos – que se voltavam, acima de tudo, contra o STF – ganharam as ruas em 2020 e 2021, muitos políticos e empresários procuraram apagar suas digitais. Não foi o caso de Jefferson, que parecia descontrair-se com a volta aos holofotes. Em vídeos e postagens nas redes sociais, sem meias palavras, ele ameaçou abertamente ministros do Supremo.
Em agosto do ano passado, a pedido da Polícia Federal, Jefferson foi preso. Pesavam contra ele acusações de nada menos que 13 crimes. Após passar cinco meses encarcerado no presídio de Bangu 8, o ex-deputado teve a pena flexibilizada para prisão domiciliar, mediante algumas condições – as chamadas “medidas cautelares”. O uso das redes sociais, por exemplo, estava vetado.
Por tudo isso, sua campanha ao Planalto surpreendeu até aliados no PTB. A cassação da candidatura era questão de tempo – Jefferson nem sequer pôde comparecer a convenção que aprovou a chapa. Em 1º de setembro, por unanimidade, o TSE barrou a farsa, o que levou o PTB a indicar o desconhecido Padre Kelmon, vice de Jefferson, para substituí-lo.
Se no primeiro turno Kelmon despontou como linha auxiliar da campanha de Bolsonaro à reeleição, com um discurso ultradireitista e provocações a Lula, foi Jefferson quem roubou a cena no segundo turno. Ele rompeu o silêncio no sábado (22), ao divulgar uma gravação nas redes em que, entre outros impropérios, difama a ministra Carmen Lúcia, do STF. Além de chamar a ministra de “Carmen Lúcifer”, Jefferson disse que ela “lembra aquelas prostitutas, aquelas vagabundas arrombadas”.
Ofender ou até ameaçar membros do Supremo é um dos esportes prediletos dos bolsonaristas. A convocação do próprio presidente para os atos golpistas de 7 de Setembro, em 2021 e 2022, tinha como eixos “ultimatos” a ministros da Corte. Porém, Bolsonaro recorreu a um tom moderado e calculado no segundo turno, a fim de diminuir a rejeição a seu nome e melhorar suas intenções de votos, sobretudo entre indecisos. A fala de Jefferson destoou não apenas no tom chulo – mas também no contexto de aparente distensão.
Esses ingredientes garantiram que no domingo (23), a uma semana do segundo turno, Jefferson se tornasse o homem-bomba de Bolsonaro nesta eleição. A Polícia Federal solicitou e o STF autorizou a revogação de sua prisão domiciliar. Quando integrante da PF tentaram executar a ordem, o ex-deputado lançou tiros de fuzil e granadas contra policiais. “Não vou me entregar porque acho um absurdo. Chega”, disse Jefferson.
Em meio a tamanho pandemônio, a base bolsonarista, em geral unida em momentos de confronto, cindiu-se. Uns tratavam Jefferson como herói, outros temiam o desgaste para a campanha de Bolsonaro. Após oito horas, Jefferson acabou por se render. Indiciado por quatro tentativas de homicídio, ele voltou para Bangu 8. Mas o escândalo segue vivo – a campanha de Lula já produziu materiais que mencionam o caso.
A crise é desastrosa para a campanha bolsonarista porque joga o presidente numa espécie de “escolha de Sofia”, em que qualquer alternativa pressupõe sacrifícios e perdas. A princípio, ao comentar o fato, Bolsonaro criticou o ex-deputado, mas cutucou o Judiciário. Ademais, ao dizer não tinha nem mesmo uma foto ao lado do aliado, ele foi de imediato contestado por jornalistas e internautas, que inundaram a internet com imagens de encontros entre os dois correligionários.
O presidente ainda orientou o ministro da Justiça, Anderson Torres, a ir à casa de Jefferson para mediar as negociações, o que desagradou à Polícia Federal. Membros da corporação viram na ação presidencial um “teatro” para reduzir danos, não para resolver efetivamente o problema – tanto que o ministro não se dirigiu ao local.
Num segundo momento, o tom de Bolsonaro foi de condenação explícita a Jefferson, a quem o presidente chegou a chamar de “bandido”, não necessariamente por descumprir ordem judicial, mas por “atirar em policiais”. A coordenação da campanha à reeleição detectou um amplo rechaço da população ao atentado contra a Polícia Federal.
“No Twitter, 60% das manifestações no domingo sobre o caso foram contra a dupla, segundo a Arquimedes. Nos 15 mil grupos públicos de WhatsApp monitorados pela Palver, o atentado teve grande repercussão negativa”, registrou o jornalista José Roberto de Toledo, no UOL. “As palavras mais associadas a Roberto Jefferson foram ‘Bolsonaro’ e ‘polícia’.”
Em sabatina à TV Record, na noite de domingo, Bolsonaro tentou, de modo afoito e inútil, associar Jefferson a Lula e ao PT. Uma gravação do próprio presidente o desmente. “Tenho uma longa história com o Roberto Jefferson também, já fui do PTB”, diz ele em vídeo que voltou a circular na tarde de domingo. “Obviamente, partido que nos apoia estará junto conosco. Ou melhor, continuará junto conosco ao longo desse ano e de outros anos também.”
Em 2021, Bolsonaro indultou o ex-deputado Daniel Silveira (PTB), que foi condenado pelo STF. É possível que o presidente use a mesma cartada com Jefferson – mas não antes da eleição. Com a busca do voto de eleitores indecisos, essa saída está, por ora, fora de cogitação.
Ainda que o episódio não tire votos de Bolsonaro – e o Ipec aponta que suas intenções de votos seguem estáveis –, há pouca margem para que os temas desta reta final da campanha sejam pautados pelo presidente. Não se pode sacudir demais um carro de viagem quando um homem-bomba está a bordo. Pior: é preciso torcer para que o homem-bomba colabore.
Para duelar com Lula, Bolsonaro já tentou governadores, cantores sertanejos, jogadores de futebol, influenciadores e outros atalhos. Nenhuma declaração de voto, por si só, é tão decisiva. Ainda assim, Roberto Jefferson faz valer o contraponto entre dois provérbios que revelam o papel do indivíduo nos grandes acontecimentos: uma andorinha só não faz verão, mas um único inseto é capaz de destruir a plantação.