VII Salão do Livro Político mira olhar para o novo espírito do tempo na América Latina

Evento editorial no Tuca reuniu a ex-presidenta Dilma Rousseff e o ex-vice presidente boliviano Álvaro García Linera, assim como Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila. Os novos ventos de esquerda no continente são analisados sob o prisma do cuidado com os golpismos e retrocessos.

“Sem um livro eu não sobrevivo. Eu cheguei a ponto de ler bula de remédio na prisão, por que a compulsão pela leitura era enorme”. 

Este foi o depoimento pungente que a ex-presidenta Dilma Rousseff fez durante a abertura do VII Salão do Livro Político, na noite de segunda-feira (20), no palco principal do Tuca Arena, teatro da PUC-SP.

“Lembro que algumas vezes eles chamavam no presídio a Operação Bandeirantes para fazerem uma batida. Escondíamos os livros sob um tablado no chão e quando eram encontrados, tínhamos de negociar.” 

Em tom anedótico, Dilma ainda contou que a negociação visava a tentar enganar o “capitão Maurício”, explicando que A questão agrária, do Karl Kautsky, não era subversivo. “Como a capa era verde, eles acreditavam”, diz ela, rindo.

“Dizia-se que o presídio era uma grande escola de formação política”, disse ela.

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O evento, que teve como tema “Resgatando a Democracia na América Latina”, contou ainda com as presenças de Guilherme Boulos (PSOL) , Manuela d’Ávila (PCdoB) e do ex-vice-presidente boliviano Álvaro García Linera, com mediação de Ivana Jinkings, diretora da Boitempo.

Reindustrialização

Dilma Rousseff disse que, chegando ao patamar de tirar o Brasil do mapa da fome e da miséria, o desafio era dar o próximo passo. Para isso, é preciso lembrar que o Brasil não foi sempre uma exportador de commodities, embora o período da financeirização [dos anos 1990 em diante] tenha transformado o país “num grande banco, numa grande fazenda, numa grande mina ou num grande shopping center”.

“Um projeto nacional com industrialização cria volume de empregos para a juventude, com qualificação e salários melhores”, disse ela, pontuando uma série de políticas articuladas com o objetivo de estruturar uma cadeia produtiva para alavancar o país no mundo. “Tudo isso era descrito na imprensa como mania de grandeza dos nossos governos”, afirmou.

Dilma concluiu explicando a necessidade de uma ação estratégica para conseguir a sustentação social a um governo progressista. “Caso contrário, vamos continuar sofrendo golpes”, disse ela, analisando que o golpe, hoje, é uma questão geopolítica. Ela mencionou os diversos tipos de golpes, entre eles, as sanções sobre Cuba e Venezuela e a privatização de empresas como a Eletrobras, e outras riquezas energéticas latino-americanas, que reduzem a capacidade de intervenção econômica do governo.

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O divórcio neoliberal da democracia

O ex-vice-presidente Álvaro García Linera destacou o avanço da esquerda na América Latina e a vitória de Gustavo Petro e Francia Márquez, da Colômbia. “Sabemos como as coisas são tão desiguais em nosso continente e essa vitória na Colômbia, onde estava tudo construído para que a esperança não triunfasse, nos mostra que nada é impossível”. 

Uma das lições que acredita que fica desse novo espírito do tempo na América Latina, é que a esquerda triunfa mediante o voto, portanto precisa defender intransigente a democracia, enquanto a direita está se divorciando dos mecanismos de participação social. “Com isso, não é a esquerda que é antidemocrática, mas os setores conservadores, inclusive nos EUA. O voto é um patrimônio do povo que precisa ser defendido”.

O desafio não é apenas distribuir melhor as riquezas, mas também modificar as estruturas produtivas da sociedade. Para ele, a esquerda precisa olhar o longo prazo, não para manter a esquerda no poder, mas para consolidar, ao longo do tempo, os direitos do povo. 

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Para ele, seria uma perda de oportunidade não realizar a transição energética necessária em termos continentais, para que outros não levem nossos recursos naturais para fazê-la em seus países. O Brasil tem um papel estratégico para isso.

A esquerda liberal e a direita contra-revolucionária

A ex-deputada gaúcha Manuela d’Ávila observou que o continente vive uma década de golpes sucessivos em suas democracias. Ela salienta que a crise neoliberal chegou a conclusão que a democracia é “uma roupa que não serve mais”. Ela questiona se o futuro será de um neoliberalismo que não aceita sequer a democracia burguesa. 

Ela apontou o paradoxo da esquerda defendendo instituições burguesas, enquanto a extrema-direita defende transformações radicais e regressivas. Para ela, a esquerda só resgata a agenda de transformações profundas e progressistas se conseguir que os partidos radicalizem a democracia e se aproximem dos movimentos sociais.

“O desenvolvimento do nosso país só será possível enfrentando a desigualdade estrutural, que é organizada a partir das questões de raça e gênero, para além das questões de classe”, defendeu. Manuela lembrou como a presença de Francia Márquez na Colômbia enterrou a percepção da esquerda de que, quando mulheres e negros se organizam é para falar de suas identidades, e não de economia.

“Não existe espaço vazio. Se não estivermos nas ruas, a extrema-direita estará, como já esteve em 2016”, afirmou.

O nacionalismo lesa-pátria

O líder do movimento de moradia, Guilherme Boulos fez um balanço do pós-golpe que impeachmou Dilma, a partir de uma simbologia e narrativa nacionalista, que se revelou entreguista e “lambe-botas” do imperialismo americano. “A partir dali abriu a porteira dos retrocessos, aprovando o teto de gastos, a reforma trabalhista; eles que usaram e perverteram os símbolos nacionais, fizeram um governo lesa pátria, que vai pedir autorização de golpe ao presidente dos EUA”, afirmou.

Ele defendeu a necessidade de reparação pelos crimes que estão sendo cometidos por Bolsonaro, hoje. Ele comparou com o acordo pós-ditadura que permitiu que torturadores continuassem nos quartéis, fossem eleitos defendendo a ditadura e chegassem à Presidência da República. “Ano que vem é lutar para que ele pague na cadeia por seus crimes.” 

Da Fundação Maurício Grabois

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