1º de Maio: o reencontro do Pacaembu com os trabalhadores
Estádio paulistano abrigou não apenas grandes eventos esportivos – mas também atividades marcantes na luta dos trabalhadores
Publicado 25/04/2022 19:27 | Editado 25/04/2022 20:01
Há imenso simbolismo na decisão das centrais sindicais brasileiras de celebrar o Dia do Trabalhador na Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Este 1º de Maio Unificado de 2022 marcará, por assim dizer, o reencontro do sindicalismo com um dos locais que mais abrigaram não apenas grandes eventos esportivos – mas também atividades marcantes na luta dos trabalhadores.
No esporte, o estádio paulistano não deve nada a qualquer outra arena nacional. O Pacaembu foi palco de seis jogos da Copa do Mundo de 1950, incluindo uma partida da Seleção Brasileira. Nos Jogos Pan-Americanos de 1963, sediou as cerimônias de abertura e de encerramento, além das competições do atletismo e partidas de futebol. Mais recentemente, foi no Pacaembu que Santos e Corinthians venceram a Copa Libertadores da América – respectivamente, em 2011 e 2012.
Este é seu lado mais conhecido – mas não o único. Quando foi inaugurado, em 1940, o Pacaembu logo se inseriu na lógica do Estado Novo (1937-1945) de tratar o esporte como elemento da unidade nacional. O presidente Getúlio Vargas passou a incentivar a prática de Educação Física nas escolas e a promover jogos festivos entre operários, sindicalistas e militares de baixa patente.
O governo também levou para estádios de futebol – sobretudo para São Januário, no Rio de Janeiro – a celebração do 1º de Maio, que passou a ser chamado, erroneamente, de “Dia do Trabalho” (em vez de Dia do Trabalhador). Ainda assim, a cada edição, Vargas reservava conquistas históricas para os “trabalhadores do Brasil”. O salário mínimo foi anunciado no estádio em 1º de maio de 1940. Um ano depois, no mesmo local, nasceu a Justiça do Trabalho. No Dia do Trabalhador de 1943, o presidente assinou em São Januário o decreto-lei que criava a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
O 1º de Maio “oficial” em São Paulo
A despeito das arestas entre Vargas e as elites paulistas, o Pacaembu foi um marco para o Estado Novo. Com capacidade para 70 mil pessoas, tratava-se da “maior e mais moderna praça de esportes da América do Sul”. O presidente fez questão de ir a São Paulo para inaugurar o Estádio Municipal em 27 de abril de 1940. “Nunca houve uma festa esportiva que tivesse tido um cunho oficial de tamanha projeção”, constatou a Folha da Manhã.
Quatro anos depois, pela primeira e única vez sob Vargas, a programação oficial do 1º de Maio ocorreu não no Rio, mas em São Paulo. Às voltas com o avanço da indústria e a proletarização do trabalho, o governo buscou prestigiar o estado que tinha a maior base operária do País – daí a escolha do Pacaembu.
No trajeto do Aeroporto de Congonhas ao estádio, Vargas foi bem recebido. Segundo o jornal Folha da Manhã, “desde a saída do campo de Congonhas enorme multidão se apinhava nas vias públicas a fim de saudar o presidente que foi, então, vivamente ovacionado”. Uma vez no Pacaembu, Vargas disse ter atendido “ao apelo de quase meio milhão de trabalhadores da cidade”, que não vinham promovendo “nem greves, nem perturbações, nem desajustamentos”.
A ausência de manifestações, porém, devia-se mais à repressão política do que a uma suposta adesão da classe trabalhadora ao Estado Novo. Vargas era, sim, um político popular, tanto que, após sua renúncia forçada ao Palácio do Catete em 1945, foi o senador mais votado do País naquele ano – e ainda voltou à Presidência da República “nos braços do povo” em 1950.
Mas a fase ditatorial da Era Vargas teve, entre outras facetas, a perseguição ao movimento sindical e a organizações como o Partido Comunista do Brasil. Veja-se o caso de Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, que permaneceu preso de 1936 a 1945. No conto Primeiro de Maio, escrito entre 1934 e 1942, o escritor Mário de Andrade denuncia que, mesmo no “Dia do Trabalho”, a repressão atingia até os trabalhadores mais alienados.
Por isso, à semelhança do que fazia no Rio, o governo incluiu na programação daquele 1º de Maio de 1944 vários atrativos: “jogo de futebol entre times de trabalhadores de São Paulo e Rio de Janeiro; desfile das delegações sindicais do interior do estado com seus estandartes e dísticos em sudação a Vargas; apresentação da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal e apresentação de ballet clássico”.
Prestes no Pacaembu
Em 1945, o Estado Novo caiu, e os comunistas voltaram à legalidade. Não havia mais clima para celebrações oficiais do 1º de Maio. Graças à derrota do nazifascismo e ao prestígio da União Soviética, a popularidade do Partido Comunista estava no auge. Prestes, anistiado, fazia comícios massivos e preparava sua candidatura ao Senado. Com isso, o Pacaembu, tal como São Januário, permaneceu como referência para o movimento sindical e para a esquerda brasileira.
O estádio vascaíno acolheu um desses comícios em 23 de maio de 1945, quando 100 mil pessoas foram até lá para ouvir o discurso de Prestes. Cinquenta e três dias depois, em 15 de julho, o Pacaembu recebeu outro comício – e mais um discurso antológico de Prestes. O público se repetiu: cerca de 100 mil pessoas ocuparam o estádio paulistano. O Rio era a capital federal, mas a manifestação em São Paulo teve participações que a valorizaram ainda mais, como as dos escritores Monteiro Lobato e Pablo Neruda.
Por telefone, num pronunciamento reverberado pelos alto-falantes do Pacaembu, Lobato saudou Prestes como “uma grande esperança para o Brasil”, “um homem nitidamente marcado pelo destino” e “o único dos nossos homens que pelos seus atos e pelo amor ao próximo conseguiu elevar-se à altura de símbolo”. Já Neruda, militante do Partido Comunista do Chile e maior poeta da América Latina, leu versos de sua autoria para Prestes. O poema – que ficou conhecido como Dito no Pacaembu – foi incluído na antologia Canto Geral (1950).
Prestes, por sua vez, reafirmou sua preocupação com uma frente nacional em defesa da democracia. Embora secretário-geral do Partido Comunista do Brasil, deixou claro que o comício era amplo. “Aqui seguramente não estamos apenas comunistas. Aqui estão homens e mulheres de todas as tendências democráticas, de todas as crenças e ideologias, de todas as raças e classes”, ressaltou.
“Jogo vermelho”
O Pacaembu voltaria a se abrir aos comunistas em 13 de outubro do mesmo ano de 1945, quando a Federação Paulista de Futebol (FPF), atendendo a um pedido do Partido, promoveu o “jogo vermelho” entre Corinthians e Palmeiras. A renda do amistoso seria, oficialmente, destinada ao Movimento Unificador dos Trabalhadores (MUT) – mas, na prática, foi revertida para a campanha eleitoral do Partido Comunista.
Era uma época em que os cartolas paulistas se voltavam a uma ou outra causa progressista. De 1927 a 1939, por exemplo, a FPF organizava o “Clássico Preto e Branco”, sempre no dia 13 de maio, evocando a assinatura da Lei Áurea. Os principais atletas negros do estado enfrentavam, em jogo único, os melhores jogadores brancos. A cada ano, a equipe vencedora ficava temporariamente com a Taça Princesa Isabel, e a renda da partida era doada a instituições de caridade. Infelizmente, faltam estudos mais aprofundados sobre essa iniciativa.
Já o “jogo vermelho” foi tema de artigos acadêmicos e até de um livro, Palmeiras x Corinthians 1945 – O Jogo Vermelho, lançado em 2010 pelo ex-deputado federal Aldo Rebelo. Do ponto de vista político e financeiro, a missão foi bem-sucedida. Dos 750 mil cruzeiros que o Partido Comunista visava levantar para as eleições gerais de 2 de dezembro, o inusitado Derby no Pacaembu contribuiu com 15% – ou, precisamente, 114.464 cruzeiros.
“O estádio lotado vibra com a disputa do clássico e pelo ambiente de liberdade”, escreveu Aldo. Segundo ele, a partida mobilizou “torcedores, operários, jornalistas, sindicalistas e comunistas, quase em confraternização pela chegada da democracia e das esperanças por ela criadas”. Em campo, deu Palmeiras. Se na crônica Corinthians (2) vs. Palestra (1), de 1927, Alcântara Machado retrata um triunfo alvinegro, o livro de Aldo registra a vitória palmeirense por 3 a 1.
A fundação da Conam
Foi também no Pacaembu que o movimento comunitário viveu um marco histórico: a fundação de sua entidade máxima, a Conam (Confederação Nacional das Associações de Moradores), em 1982. As lutas populares estavam em ascensão desde a década anterior, quando clubes de mães, em parceria com sociedades amigos de bairro e setores progressistas da Igreja Católica, criaram o Movimento Custo de Vida – que ficaria mais conhecido como Movimento contra a Carestia.
A mobilização a partir das periferias desafiou a ditadura militar. Houve abaixo-assinado com 1,25 milhão de adesões pelo congelamento dos preços dos gêneros de primeira necessidade. Houve uma Assembleia Popular com 7 mil pessoas e a Passeata das Panelas Vazias. Houve também a eleição de parlamentares oriundos da luta comunitária, como Aurélio Peres e Irma Passoni. Em meio à tamanha efervescência, milhares de associações de moradores e sociedade amigos de bairro foram fundadas ou reorganizadas, bem como as primeiras entidades comunitárias municipais e estaduais.
No segundo semestre de 1981, associações de moradores realizaram encontros regionais em todo o Brasil e convocaram um congresso nacional para fundar, no ano seguinte, uma confederação nacional ampla, unitária e suprapartidária. Na Tribuna da Luta Operária, o gaúcho Paulo Della Zen resumia: “A luta é também por questões políticas, como a queda do regime militar, pela Constituinte livre e soberana, contra o desemprego e a carestia, e também contra estes últimos pacotões”, resumiu o gaúcho
Com essa pauta, o 1º Congresso Nacional das Associações de Moradores levou mais de 5 mil representantes do movimento comunitário, de 18 estados, ao Ginásio do Pacaembu, atrás do estádio, nos dias 16 e 17 de janeiro de 1982. Os delegados a esse Congresso de Fundação superaram todas as adversidades – de credenciamento, de hospedagem e de alimentação – para debater os desafios políticos e organizativos da Conam.
No segundo dia de programação, foram aprovados o estatuto e o programa da entidade. Elegeu-se também a primeira direção, com 29 membros, sob a presidência de Almir de Barros, membro do Conselho Coordenador das Sociedades de Amigos de Bairro do Estado de São Paulo. Uma vez criada, a Conam passou a representar, de pronto, as mais de 8 mil associações de bairro que o País tinha, com 25 milhões de pessoas na base.
A 2ª Conclat
Em 1º de junho de 2010, mais uma atividade nacional e unitária – a 2ª Conclat (Conferência Nacional da Classe Trabalhadora) – tomou o Estádio do Pacaembu. Convocada por cinco centrais sindicais (CUT, Força Sindical, CTB, CGTB e Nova Central), com o apoio do Dieese, a Conclat evidenciou a força crescente do sindicalismo.
Vivia-se o auge da era Lula (2003-2010). A uma série de medidas do governo favoráveis aos trabalhadores, somou-se a histórica unidade do movimento sindical, expressa no Fórum das Centrais Sindicais e em oito Marchas da Classe Trabalhadora a Brasília (DF) desde 2003. A valorização do trabalho estava presente na agenda nacional. Era tempo de avanços como a política de valorização do salário mínimo, o incentivo à formalização do mercado de trabalho e o reconhecimento das centrais sindicais.
O Brasil, recém-chegado à condição de sexta economia do mundo, parecia caminhar para um ambiente de mais democracia, crescimento econômico e pleno emprego – mas sem reformas estruturais. As centrais sindicais, atentas à oportunidade, ousaram cobrar um projeto de desenvolvimento nacional mais audacioso, pautado por reformas, com protagonismo dos trabalhadores. Não bastava apenas barrar a volta do neoliberalismo e de retrocessos.
A Conclat foi o ponto culminante dessas discussões. Cerca de 30 mil lideranças de todo o Brasil participaram dessa segunda edição, que aprovou a Agenda da Classe Trabalhadora, entregue posteriormente aos candidatos à Presidência da República. Os sindicalistas também aprovaram o Manifesto pelo Desenvolvimento com Soberania, Democracia e Valorização do Trabalho.
De volta ao 1º de Maio
Que o Pacaembu volte a reencontrar, no próximo domingo, o movimento sindical em seu 1º de Maio Unificado. Já se vão seis anos desde o golpe de 2016 – um divisor de águas para a democracia brasileira e para os direitos trabalhistas. CTB, Nova Central, UGT, Força Sindical, CUT, InterSindical e Pública voltam a nos chamar às ruas porque, mais do que nunca, é necessário impulsionar a participação dos trabalhadores não apenas nas lutas sindicais – mas também nas batalhas políticas, econômicas e sociais. As eleições gerais de outubro, especialmente a disputa presidencial, demandam a mobilização da trabalhadora.
Não faltam reivindicações para manifestar neste Dia do Trabalhador, à frente da entrada principal do estádio, na Praça Charles Miller. Veja-se pela Pauta da Classe Trabalhadora, aprovada em 7 de abril passado, na Conclat 2022 – a terceira edição da Conferência Nacional da Classe Trabalhadora. Com oito páginas, o documento se divide em diversos eixos, com foco no lema “Emprego, Direitos, Democracia, Vida”.
Mas seria interessante que, entre tantas pautas, os sindicalistas de São Paulo agregassem a defesa do próprio estádio do Pacaembu. Privatizado há dois anos, o “mais querido” dos estádios da capital paulista está desfigurado e abandonado. A Allegra Pacaembu, sua nova dona, quer cobrar da Prefeitura de São Paulo até a inclusão da Praça Charles Miller no pacote de privatização. Até aqui, a grande proposta da concessionária para o estádio foi a demolição do tradicional tobogã, além da “construção de uma laje de concreto com asfaltamento no campo de futebol”. É como se a face popular do esporte já estivesse excluída do futuro do Pacaembu. Não deixemos excluir os trabalhadores!