Anúncio do fim da emergência sanitária reforça negacionismo científico de Bolsonaro

Especialistas em saúde pública criticam “inconsequência” e falta de base científica para a postura do Ministério da Saúde em relação ao atual cenário da pandemia. Todos acusam “medida eleitoreira”.

Foto: Reprodução/TV

O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou neste domingo (17), na tevê, o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional por conta da Covid-19. O governo se aproveita do arrefecimento da terceira onda pandêmica para fazer parecer para a população, que a pandemia acabou, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda não considera que a situação se converteu em endemia. 

Absurdo e inconsequência

A médica infectologista e sanitarista, Helena Petta, assim como a doutora em Saúde Pública pela USP, Ione Mendes, adjetivaram como “absurda” a decisão do governo Bolsonaro.

Helena considera o anúncio precipitado. “Deixar de ser uma emergência de saúde pública prejudica muito os municípios nas compras de insumos e das medicações. Atrasa e faz com que a burocracia seja muito maior”, diz ela, sobre o efeito concreto da medida.

Com a decretação de emergência sanitária, licitações e concorrências ficam em segundo plano para atender às necessidades de agilidade do sistema de saúde pública sobrecarregado de pacientes da covid. Agora, com o anúncio, voltam as medidas burocráticas convencionais que atrasam o acesso do sistema de saúde ao financiamento. 

“A gente ainda não está numa situação em que pode-se decretar o fim da pandemia”, diz Helena, ressaltando, como todos os demais sanitaristas consultados pelo portal Vermelho, o caráter negacionista do governo em relação às recomendações científicas. “Um governo que não fez nada, até agora, em termos de medidas para orientar o uso das máscaras, o distanciamento social, negou a pandemia, não ajudou a divulgar as vacinas, dá uma declaração hipócrita e falsa, como essa, somente para fins eleitoreiros”, avaliou ela.  

“Acho um absurdo! Uma falta de respeito com a população. Não tenho palavras para dizer o tamanho da bobagem”, foi enfática a sanitarista Ione. 

Ela também salientou que não tem base científica alguma a decisão do governo. “A OMS não recomenda, nenhum país sério está fazendo isso. É totalmente político. Uma tentativa de reverter um quadro político, de uma forma que prejudica a população”, criticou. Como ela disse, é como se o governo declarasse: “Que se dane o povo!”

Ione ainda apontou os alertas que vêm de outras regiões em que a pandemia avançou antes do Brasil. “Já tem ondas estourando na China, já temos outra cepa do vírus, que já é predominante no Brasil. Não se sabe o que vai acontecer, daqui a vinte dias”, avisou. 

Segundo explica ela, as medidas emergenciais para compras e ações rápidas do sistema de saúde vão fazer falta, caso ocorra nova emergência pandêmica. “É uma inconsequência sem fim essa decretação”, concluiu. 

Para a infectologista e diretora do Instituto Couto Maia (Salvador), Ceuci Nunes, este anúncio é “mais uma fake news” deste governo. Ela admite que há uma redução nos casos da doença que precisa ser comemorado. Mas isto se deve ao avanço da vacinação. “Uma vacinação que não ocorreu por causa do governo, mas pelo esforço da sociedade civil e da CPI”.

“Tirar a emergência sanitária é deixar de vigorar um conjunto de decretos que estão relacionados, inclusive, à vacinação, além de também reduzir o pagamento de leitos SUS”, disse a médica. Ela citou o caso da Coronavac, que ainda não tem sua regulamentação pela Anvisa, estando em uso emergencial, assim como outras medicações de uso eficaz em pacientes da doença.

“Tudo que Bolsonaro quer é que a gente se esqueça do que passou com a pandemia”, declarou Ceuci, acusando a medida de eleitoreira. Ela parafraseou a presidenta da Fiocruz, Margareth Dalcomo, de que este é um tempo para não esquecer, porque o que passamos com essa pandemia foi muito trágico. “E o negacionismo tem muito a ver com isso”.

Ela também observou que há outras implicações, inclusive no inconsciente coletivo, com as pessoas deixando de tomar os cuidados, deixando de se vacinar. “É extremamente precipitado, porque quem tem que decretar o fim da pandemia é a OMS”.

Negacionista e eleitoreira

O médico infectologista Marcos Boulos foi sucinto em sua opinião, já conhecida pela cautela e baseada na ciência. Sua principal crítica durante toda a pandemia foram as decisões intempestivas dos governos em agradar o setor econômico em detrimento da saúde da população.

“Como sempre, as decisões aqui são tomadas precipitadamente. A situação mundial ainda não permite decisões unilaterais de um país pelo risco de recrudescência da pandemia”, resumiu. Com isso, ele aponta o risco que países como Brasil podem causar ao resto do mundo, ao abandonar medidas emergenciais por conta própria, em meio a uma pandemia.

O médico nefrologista e ex-vereador e deputado Jamil Murad, também considera precoce o anúncio do governo. “Tem muita motivação política e pouca análise científica ao acabar com o ambiente de pandemia”, diz ele. De acordo com o médico, o governo sequer esperou estabilizar o número de casos e óbitos. 

“Mais uma vez, o governo erra na pandemia, sempre levando em consideração não prejudicar os empresários, mas os brasileiros podem perder a vida ou ficar com sequelas permanentes da doença”, criticou.  Para ele, o governo mostra um desapreço pela vida. “Só funciona voltado para seus interesses. Das 662 mil mortes, esse governo é responsável por uma boa parte, por termos um governo reacionário, inimigo da ciência, que nega o progresso científico em defesa da vida e da humanidade”.

Sobre o modo como o financiamento do sistema vai funcionar, daqui pra frente, ele observou que a saúde já vem trabalhando com subfinanciamento, “sempre com menos dinheiro do que precisa”. “Foi necessário declarar pandemia para poder fazer compras, coberturas e extensão de UTI e leitos, contratações fora do esquema clássico de concorrências e licitações. Agora, além de ser subfinanciado, vão ser necessárias uma série de regras que dificultam a destreza e a velocidade para ter efeito na proteção da vida dos brasileiros”, acusou. 

O Dr. Renato Lemos, médico de família e comunidade, ressaltou como essa postura do governo já vinha, anteriormente, nesse sentido de negar a pandemia. “Tenta contestar o inquestionável, que são as vidas humanas perdidas. Essa emergência sanitária internacional é uma orientação que exige um consenso na Organização Mundial da Saúde para prevenir que variantes novas possam se deslocar rapidamente e causar muito prejuízo humano”, explicou.

Para ele, essa é mais uma postura no sentido de trazer uma falsa tranquilidade de que o vírus deixou de existir ou está totalmente controlado. “Não temos essa segurança e certeza. Com isso, a população tende a se expor mais, principalmente as pessoas mais vulneráveis, expostas a uma situação ainda fora de controle”, lamentou.

A conduta adequada, na opinião dele, seria aguardar a OMS declarar um situação endêmica da covid-19. “Ainda há muito transporte do vírus, variantes surgindo, lugares que ainda estão com menos controle epidemiológico”, pontuou. 

“É uma medida populista em ano de eleições para reduzir a rejeição eleitoral. A propaganda eleitoral quer dizer que este governo combateu a covid e venceu, o que é uma afirmação falsa. Nós perdemos para a covid aqui no Brasil”, acusou.

Na opinião do médico, essa derrota do Brasil se deve ao país ter tido mais tempo para se preparar para a pandemia, ao contrário de países europeus e asiáticos que foram atingidos primeiro. “Esse governo tem que explicar como foi possível morrer tanta gente, se dava para comprar respiradores, criar leitos de UTIS, fazer vigilância sanitária com testagem, orientar a população e comprar vacinas antes de todo mundo. O que vimos foi superfaturamento de equipamentos, corrupção na compra de vacinas, colapso nos hospitais por falta de oxigênio. Foi uma forma do governo praticar corrupção, como demonstrou a CPI. Tudo isso relativizando a vida humana”.

Se houver um aumento dos casos e óbitos por covid, Renato acredita que há uma tendência desse governo não aceitar as estatísticas contrárias a suas vontades políticas. “Já havia uma dificuldade com os dados da pandemia, que tiveram que vir de um consórcio de veículos de imprensa ou da organização das próprias secretarias de saúde estaduais”. 

“Agora, o governo tende a lentificar os tratamentos, os investimentos, atrasar a necessidade de solicitar recursos internacionalmente, vai dificultar o acesso de recursos para pesquisa científica. Não tem como fazer um enfrentamento direto de uma eventual emergência, correndo o risco de colapsar o sistema de saúde, novamente”, concluiu.  

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