A Ucrânia e as minorias étnicas na atual guerra
Por enquanto, por mais chocante possa ser para um “democrata” ocidental, parte das minorias étnicas torce pela vitória dos russos. Mas isso se torna compreensível se levarmos em conta que até na URSS de Stálin elas gozavam de mais direitos do que na “democracia” de Zelensky.
Publicado 12/04/2022 09:08 | Editado 11/04/2022 22:44
Há poucos países na Europa que não tenham dentro de suas fronteiras minorias étnicas dominantes em número em alguma de suas regiões. Na maioria das vezes tendo seus direitos coletivos negados e sendo ignoradas pela União Europeia, essas minorias são focos de tensão. Não são minorias formadas por imigrantes das antigas colônias, mas fragmentos de povos que, nas confusões europeias, com as fronteiras móveis, ficaram excluídos de sua pátria original, ou etnias relativamente pouco numerosas, que nunca tiveram condições de terem seus próprios países.
Passei por uma vivência anedótica com um diplomata holandês por ocasião do massacre de bósnios muçulmanos, entregues ao general Mladic pelas tropas da ONU em Srebrenica (1995). Em nossa fugaz conversa, o diplomata vangloriou-se de que nas “democracias” da Europa ocidental não havia conflitos de motivação étnica e o convívio pacífico era a regra. Em resposta, lhe perguntei se já ouvira da luta dos bascos, cujo país é dividido entre a França e a Espanha, ou dos embates na Irlanda, as queixas dos bretões e outros na França, os conflitos entre valões e flamengos na Bélgica, o anseio pela plena independência dos catalães, o movimento separatista do norte da Itália. Sorrimos ambos e o diplomata reconheceu a inverdade de sua afirmação.
Um dos países que mais sofrem com conflitos étnicos é a Hungria. Não dentro de suas fronteiras, mas com os vizinhos. A Hungria que, com os diktat de “paz”, viu a etnia magiar dividida entre sete outros países, além dela própria. Esses húngaros “externos” têm seus direitos coletivos violados ora por um, ora por outro país herdeiro de territórios historicamente magiares. O zelo por seus direitos humanos individuais e coletivos é uma das diretrizes do governo de Orbán, fato que lhe traz grande apoio de sua nação.
Claro, outras minorias também são vítimas da intolerância interétnica. Nos últimos anos, o local de conflito agudo tornou-se a Ucrânia. O país abrange, ao lado de 77,8% de ucranianos, 17,3% de russos, 0,6% de bielorrussos, 0,5% de moldavos, 0,5% de tártaros da Crimeia, 0,4% de búlgaros, poloneses, húngaros e romenos cada um com 0,3% e 0,2% de judeus. Ilustrando, 0,3% da população corresponde a mais de 130 mil indivíduos e a quantidade de russos ucranianos beira os oito milhões.
Na euforia que se seguiu à implosão da União Soviética, da qual a Ucrânia fizera parte, houve momentos de tolerância e colaboração. A permanência do convívio pacífico entre a população majoritária e as minorias étnicas, assim como entre o país ucraniano e seus vizinhos, todos eles democratas e liberais, era a grande esperança.
Durou pouco, e a deterioração da situação na Ucrânia pode ser ilustrada com um discurso da deputada Irina Farion no Parlamento ucraniano, também irradiado, mais recentemente, com tradução simultânea num canal de televisão húngara:
“Prestem atenção! Se enviarem um cachorro para treinamento, ele voltará para casa em um mês reconhecendo os comandos: sente-se! em pé! deite-se! Mas eles (as minorias étnicas) precisam de sete anos para aprender a língua de Stepan Bandera, Taras Shevchenko e Lina Kostenko. Precisamos de tantos débeis mentais na Ucrânia? Sugiro que peguem o passaporte que os húngaros lhes deram e sumam daqui para a Hungria! Qual é o empecilho? Por que eu tenho que alimentá-los aqui? Por que tenho que financiar o ensino deles em húngaro, romeno e na língua de Moscou? Ah, desculpem, e o ensino em polonês também?”.
Não houve condenação desse discurso de ódio por parte de outros componentes do Parlamento. Será que a “nobre” deputada se retrataria ao ver que, justamente, os poloneses, húngaros e romenos são os que mais se envolveram na ajuda aos refugiados ucranianos? Ela e Zelensky entenderão que o ganho de territórios em detrimento de outros países implica o ônus de garantir os direitos humanos individuais e coletivos das etnias incorporadas? Será que a própria Europa ocidental, “democrática”, bazófia e loquaz, chegará a entender que não pode almejar a paz e ao mesmo tempo escamotear os direitos humanos coletivos, ignorando as aspirações étnicas?
Que motivações levaram Zelensky e políticos como Farion, eles próprios pertencentes a minorias, a hostilizar as minorias étnicas e, consequentemente, criar atritos com os países limítrofes, talvez os historiadores possam descobrir um dia. Quais são os interesses – e de quem são – que induziram o ex-comediante a levar ao desastre a nação que preside? Pergunta a ser esclarecida no futuro.
Por enquanto, por mais chocante possa ser para um “democrata” ocidental, parte das minorias étnicas torce pela vitória dos russos. Mas isso se torna compreensível se levarmos em conta que até na URSS de Stálin elas gozavam de mais direitos do que na “democracia” de Zelensky.
Resta-nos, então, a esperança de que nos dias pós-Zelensky os ucranianos retornem ao convívio civilizado e amistoso com suas minorias étnicas e seus vizinhos, que tanto os ajudaram na atribulação dos dias de guerra. E que, finalmente, a Europa “democrática” e “liberal” entenda que, sem a garantia dos direitos coletivos das minorias, não haverá paz no continente.
Tibor Rabóczkay é professor aposentado do Instituto de Química da USP