Para além de São Paulo, o Brasil também era modernista
Especialistas comentam como se deu o movimento modernista fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro
Publicado 28/02/2022 15:31 | Editado 28/02/2022 15:32
Muito se sabe sobre o que a Semana de Arte Moderna de 1922 provocou em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas há poucas informações sobre como os ideários modernistas refletiram nas demais regiões do Brasil. Professores e estudiosos do Modernismo falam a seguir sobre como o movimento reverberou na década de 20 pelos vários Estados brasileiros e apontam algumas regiões que se destacaram no processo modernista, como Minas Gerais e Rio Grande do Sul.
“É como renovação literária que o Modernismo de 1922 despertará o interesse de uma nova geração em diversos Estados brasileiros, sem que isso signifique um alinhamento automático com suas premissas”, afirma a historiadora e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Annateresa Fabris.
Para o sociólogo e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Sergio Miceli, já havia um veio de inovação e uma conjunção de fatores e circunstâncias propícias à emergência desse movimento em São Paulo, como um mercado de arte incipiente, uma imprensa mais diversificada e não puramente governista, uma situação partidária também fraturada com a ascensão do Partido Democrático em 1926, além de um mecenato de peso, tendo como pano de fundo o avanço da urbanização. Fatores que não são os mesmos vistos, por exemplo, em Minas Gerais. “Minas tem uma imprensa oficial, um partido oficial que controla essa imprensa e todos se distribuem entre as facções que estão em luta pelo controle do poder estadual e o acesso ao governo federal”, relata Miceli. Mas é lá que se destaca a figura do poeta Carlos Drummond de Andrade, um dos escritores que realmente romperam com os modelos conservadores – tema também do novo livro de Miceli, Lira Mensageira: Drummond e o Grupo Modernista Mineiro (Editora Todavia). Como afirma o professor, “o Modernismo tem a ver com a situação, vamos dizer assim, da produção cultural no plano regional”.
Já o ensaísta e professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luís Augusto Fischer concorda que o Modernismo que ressoou pelo Brasil não é necessariamente uma repercussão da Semana de Arte Moderna nas províncias, porque, como ele diz, existiam já processos de modernização em vários sentidos, com outro padrão que não o proposto por São Paulo e vivido pelo Rio de Janeiro. “Um exemplo concreto é o do Rio Grande do Sul, que na Primeira República teve um governo modernizador/autoritário. Em vários sentidos, foi modernizador, do ponto de vista da abrangência, que se considerava, por causa da ideologia positivista, ligado a todas as classes sociais, dava prestígio ao funcionalismo público e investia em educação – talvez tenha sido das unidades da Federação que mais abriram escolas públicas”, informa. E continua: “No Rio, o Modernismo acontecia nas ruas, nos cafés e nas redações, e não nos salões das elites, como foi o caso de São Paulo. No Rio Grande do Sul, o Modernismo é mais orgânico e muito menos de ruptura.”
Processo gaúcho
A professora Annateresa Fabris apresenta um panorama de como o Modernismo foi difundido na década de 1920 em outras regiões através da análise de algumas publicações, corroborando a ideia de que não havia um alinhamento total com as propostas da Semana de Arte Moderna. “É o que demonstra a revista gaúcha Madrugada, fundada em 1926 por Augusto Meyer e por um grupo de jovens que gravitava em torno da Livraria Globo. De vida efêmera – apenas cinco edições – a revista, que se distinguia por uma apresentação visual próxima da estética art-déco, tinha como diretrizes principais o interesse pelo regionalismo e pelo simbolismo, a exaltação da cidade moderna e de seus símbolos e a divulgação da produção dos novos”, informa.
Segundo Luís Augusto Fischer, a modernização estética no Sul deve ser compreendida pelos seguintes parâmetros: “Em Porto Alegre, há uma população urbana interessante, há uma alfabetização bem acima da média brasileira e, portanto, leitores e editoras locais com um padrão de circulação importante”. Além disso, diz, há o Correio do Povo, o primeiro jornal profissional, explicitamente não partidário, ou seja, há uma imprensa moderna. “Tem uma juventude na cidade, funcionários públicos e jornalistas que vivem no ambiente letrado e que vão encontrar meios de expressão em jornais e revistas, como Madrugada.” Na mesma época, em 1926, como relata Fischer, a então livraria e papelaria do Globo passa a ser editora também, publicando obras dos jovens locais, como Augusto Meyer, Athos Damasceno Ferreira e outros de vanguarda, como Tyrteu Rocha Vianna, Ernani Ferrari e, mais tarde, Mario Quintana, todos poetas modernistas. “A Globo se profissionaliza e, na virada dos anos 30, o negócio explode com o surgimento de Erico Verissimo, que lidera a geração por produzir talvez a obra mais consistente”, comenta.
Há outro dado importante do ponto de vista literário, como destaca o professor: a maior parte dos poetas era simbolista, diferente de São Paulo, que tinha como matriz o Parnasianismo, “careta e neoclássico”. Segundo o professor, “o Simbolismo é muito mais moderno, com um mergulho na subjetividade, na exploração dos sentidos e na aproximação de outras linguagens”.
Caso mineiro
Já para Sergio Miceli, Minas Gerais foi a região em que o Modernismo foi mais presente. “A rigor, através sobretudo da chancela e liderança de Mário de Andrade, a mineira Ouro Preto tem o grupo Estrela”, afirma. Formado por políticos e letrados, o grupo tinha como um dos integrantes o poeta Carlos Drummond de Andrade, “o único que rompe e, digamos assim, incorpora os ditames modernistas à sua maneira regional de um modo criativo”, nas palavras do professor. Outros membros do grupo, Emílio Moura e Abgar Renault, são muito conservadores do ponto de vista poético, revela. O professor ainda conta que Mário de Andrade foi a Ouro Preto e conheceu os jovens ligados ao grupo Estrela, desenvolvendo uma relação importante com eles. “Havia um veio de inovação que tem muito a ver com a proposta de Mário de Andrade de uma recuperação da experiência cultural brasileira, não só das elites, mas das artes populares e do folclore”, diz Miceli, citando como exemplo a grande coleção do poeta presente no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
“Mário também investiu na direção de criar uma língua mais idiomática, com mais brasileirismo e menos castiça segundo o modelo português. Todo o chamamento dele para esses jovens com quem ele se correspondia, inclusive o Drummond, era no sentido de uma linguagem mais coloquial, mais direta e não apenas com toda essa traquitana que leva à linguagem culta”, conta Miceli. “De um lado, um empenho à atenção ao que seria realmente representativo da cultura brasileira, mas também uma atenção à linguagem com que isso viria como expressão artística, literária, plástica etc. De outro lado, o movimento do Modernismo era um movimento de diálogo com as vanguardas europeias e isso no Modernismo plástico – Anita, Segall e Tarsila – é absolutamente visível, acintoso.”
A professora Annateresa cita novos empreendimentos, sempre sob a forma de revistas, que se espalharam pelo Brasil na década de 1920, chamando a atenção para A Revista, fundada em Belo Horizonte por Francisco Martins de Almeida e Carlos Drummond de Andrade, na qual convivem duas escritas: a acadêmica e a modernista. “Como demonstra o pesquisador em literatura Antônio Sérgio Bueno, esse convívio ocorre à revelia dos autores e se resolve com a ‘vitória sem alarde’ da retórica modernista. Ao lado da ‘colaboração conservadora’ de autores como Godofredo Rangel, Carlos Góis, Juscelino Barbosa e Alberto Deodato, a publicação divulga produções de Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Mário de Andrade, João Alphonsus, Drummond e Pedro Nava.” Segundo ela, a revista, que circula em apenas três edições (julho de 1925, agosto de 1925 e janeiro de 1926), tem como tarefa primordial a “renovação intelectual do Brasil”. Além disso, diz, defende uma integração entre os dados regionais, nacionais e universais; repensa a tradição e valoriza o pequeno “capital artístico” legado pelas gerações anteriores (arte colonial e obra de autores como Bernardo Guimarães e Alphonsus de Guimaraens); e tem como alvo principal o passado recente e sua linguagem.
A professora também destaca a revista Verde, criada na cidade mineira de Cataguazes por um grupo constituído por Rosário Fusco, Ascânio Lopes, Francisco Inácio Peixoto e Guilhermino César. Segundo ela, o processo de modernização está na base de sua fundação: “Com uma economia baseada na indústria têxtil e ligação direta com o Rio de Janeiro pela estrada de ferro, a cidade estava assistindo ao chamado ‘ciclo cinematográfico de Cataguazes’ com os quatro longas-metragens dirigidos por Humberto Mauro: Na Primavera da Vida (1926), Tesouro Perdido (1927), Brasa Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1929)”. A revista, segundo a professora, conta com a colaboração de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Drummond, Aníbal Machado, Sérgio Milliet e João Alphonsus, e circula em seis edições entre setembro de 1927 e maio de 1929, tendo como principais diretrizes o alinhamento com a versão paulista do Modernismo, o nacionalismo e a defesa da liberdade de expressão.
Reação aos paulistas
Em alguns Estados, houve uma reação aos paulistas, ao “paulistocentrismo”, como refere Miceli. “Havia uma produção e sempre houve uma produção intelectual muito viva, muito criativa em muitos Estados, independente do Modernismo”, diz. E cita o caso argentino, em que a atividade era muito centralizada em Buenos Aires, diferente do Brasil, em que as unidades federativas sempre propiciaram a emergência de figuras de peso no plano regional. “Na Argentina, seria impossível Dalton Trevisan, Erico Verissimo, Gilberto Freyre, Benedito Nunes, que são figuras que funcionaram em um nível regional com impacto nacional. O Brasil sempre teve essa descentralização possível”, afirma.
Miceli também dá como exemplo o Estado de Pernambuco, em que o Modernismo levitou em torno do escritor Ira Levin e do artista plástico Vicente do Rego Monteiro. Como aponta Miceli, Rego Monteiro fazia uma pintura construtiva que estava inspirada em algumas figuras da vanguarda e, em alguma medida, se nutria de fontes regionais. “Ele era extremamente conservador, e tinha uma aliança regressiva com o pessoal que Getúlio Vargas colocou no Estado. Mas nada é preto no branco. Ele fazia parte de um grupo muito pequeno de intelectuais, alguns deles com orientações menos conservadoras.” Além disso, lembra o professor, Gilberto Freyre, na época, era muito ressabiado com a questão modernista, e havia sempre uma crítica não só ao Modernismo, mas aos paulistas.
Como cita Annateresa Fabris, “um Modernismo diferente do ‘Modernismo de importação’ atribuído aos paulistas é a marca distintiva” do número único de Meridiano (setembro de 1929), revista da Academia dos Rebeldes, fundada em Salvador em 1928 e ativa até 1933. “Liderada por Pinheiro Viegas, a antiacademia reunia um grupo de jovens (Édison Carneiro, Jorge Amado, Clóvis Amorim e Walter da Silveira, entre outros) que defendia uma literatura brasileira de caráter universalista, baseada na cultura local e numa militância política de esquerda. À ‘língua inventada’ dos modernistas de São Paulo, considerados excessivamente iconoclastas, os jovens de Salvador contrapunham a própria recusa aos ‘ismos’ e a valorização da linguagem popular”, acrescenta.
A concepção de modernidade dos paulistas é igualmente contestada por outra revista de Salvador, Arco e Flexa, fundada em novembro de 1928 pelo médico e poeta Carlos Chiacchio, conta a professora. Voltada para a literatura e a crítica literária, a revista, que circula até 1929, defende uma cultura universalista enraizada nas realidades locais, a afirmação de uma identidade nacional e um tradicionalismo dinâmico, capaz de injetar equilíbrio nas manifestações modernas. “Chiacchio acreditava que apenas um movimento localizado na Bahia teria condições de abranger todo o Brasil e fazer frente às influências europeias.”
Não só outros Estados tiveram essa reação aos paulistas, como também a cidade de Campinas. “Em 14 de janeiro de 1923, ‘Hélios’ (Menotti Del Picchia) publica no Correio Paulistano a crônica Os Avanguardistas de São Paulo, na qual destaca a existência, no interior do Estado, de ‘milhares de jovens de rútilo talento, asfixiados pelo meio, ansiando incorporar-se na Reforma, dando assim exemplo da rara vitalidade do gênio novo da nossa raça’”. Segundo a professora, o escritor concentra o foco em Campinas e na figura de Hildebrando Siqueira, que estava escrevendo Presidiários do Destino, no qual “imagens inéditas ab-rogam as velhas chapas da nossa antiga prosa”. Como diz Annateresa, Siqueira, um poeta “futurista”, é responsável pela transformação da revista A Onda num porta-voz da literatura modernista, embora não de maneira radical.
O Modernismo é visual
Nas artes visuais, Annateresa cita dois artistas de outros Estados que participaram da Semana de Arte Moderna: a mineira Zina Aita e o pernambucano Vicente do Rego Monteiro, que têm como características o Pós-impressionismo e o diálogo com a Escola de Paris, respectivamente. “Rego Monteiro, que tinha introduzido em seus quadros uma temática indianista, além de motivos regionalistas (1919-1920), muda-se para Paris em 1921. Aita, que tinha estudado em Florença com Galileo Chini (1914-1918), transfere-se para a Itália em 1924”, relata, acrescentando que outros artistas provenientes de Fortaleza e de Belém, como Raimundo Cela e Ismael Nery, são produto da Escola Nacional de Belas-Artes e de estágios em Paris.
Quanto à produção de artes plásticas no Sul, o professor Luís Augusto Fischer afirma que, por conta do mercado literário, ela se desenvolveu através das artes gráficas, mais próximas do Expressionismo.
A difusão de uma visualidade moderna fora do eixo São Paulo-Rio de Janeiro, segundo Annateresa Fabris, ocorre mesmo nas décadas de 1940 e 1950. “Bem emblemático é o caso de Minas Gerais, cujos principais marcos modernos datam da década de 1940, com o projeto da Pampulha (1942-1945), no qual colaboraram Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Candido Portinari, Alfredo Ceschiatti e Paulo Rossi Osir, e a inauguração em 1944 do Instituto de Belas Artes, dirigido por Alberto da Veiga Guignard, com a colaboração do escultor Franz Weissmann e da gravadora Edith Behring. Sempre em Minas Gerais, destaca-se a construção do Colégio de Cataguazes (1945-1949), cujo proprietário, Francisco Inácio Peixoto, conta com a colaboração de Niemeyer (projeto), Burle Marx (paisagismo), Portinari (painel Tiradentes), Joaquim Tenreiro (mobiliário), Paulo Werneck (painel de pastilhas) e Jan Zack (escultura O pensador).”
Do Jornal da USP