Crítica à crítica das religiões, por Eduardo Guimarães

Ao se tomar figuras execráveis como Malafaia e generalizá-las como se fossem modelo único para julgar qualquer sistema de fé, estigmatiza-se um campo imensamente diverso e impedem-se diálogos necessários na construção de uma sociedade mais humana

Durante minha primeira graduação, frequentei um curso ministrado pela professora Lilia Schwarcz que tratava da relação entre antropologia e história. O curso recuperava um longo percurso estabelecido pelo diálogo, não isento de conflitos, mas sempre produtivo, entre aquelas duas disciplinas. Alguns dos temas abordados foram a distinção entre tempo e temporalidade, etnografia, método de investigação histórica e alteridade.

A respeito desse último tema, me lembro de me chamar a atenção uma fala de Lilia – que era mais ou menos assim: “para mim, eu sou sempre complexo, enquanto o outro é sempre simples”. Aquela fala era uma alusão a um modo de exercer a alteridade, no qual se minimizam as diferenças apresentadas pelo outro e se maximizam as diferenças entre os iguais, algo muito próximo do que chamamos em psicanálise de narcisismo das pequenas diferenças.

Desdiferenciar as diferenças do outro, reunindo diferentes “outros” em um mesmo outro uniformizado, não é somente uma atitude intelectual, mas também política. Trata-se, em última instância, de não reconhecer as diferenças que se mostram entre os outros e, em grande medida, não reconhecer suas singularidades. Enquanto todos os outros são iguais, eu sou o único capaz de marcar minha diferença, minha singularidade em relação a eles. Espero não ter sido muito abstrato ao apresentar essa perspectiva, mas é com base nela que proponho analisarmos alguns exemplos para colocarmos em questão o modo como determinados discursos vêm circulando nas redes sociais.

A religião vem se tornando alvo de críticas contundentes durante a pandemia de Covid-19 por conta das declarações negacionistas de alguns líderes religiosos, como Silas Malafaia, pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Essa crítica segue uma generalização preguiçosa, que acredita haver uma linha direta que vai de líderes religiosos de algumas igrejas até os fundamentos mais profundos de toda e qualquer religião.

Ao adotar esse raciocínio, as diferenças existentes no interior das práticas religiosas são desdiferenciadas ou reduzidas a meras variações de um mesmo tema, gerando pelo menos dois problemas. Em primeiro lugar, esse raciocínio ignora que não existe a Religião, e sim igrejas e instituições religiosas. Em segundo lugar, também ignora o modo particular como cada religioso se vincula à sua orientação religiosa. Por fim, ignora o funcionamento de diferentes movimentos religiosos que não somente fazem a crítica do negacionismo, mas também contribuem para a realização de reformas sociais progressistas.

A respeito dos movimentos religiosos comprometidos com questões sociais, podemos mencionar alguns exemplos relevantes. Entre os umbandistas, existe o movimento Umbandistas Antifascistas. Na igreja católica, não podemos nos esquecer das Comunidades Eclesiais de Base e da teologia da libertação. Já os evangélicos podem contar com a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Por fim, o Coletivo Espíritas à Esquerda contribui para a organização de espíritas comprometidos com questões sociais. Esses são apenas alguns exemplos, mas outros tantos de tantas outras religiões ou igrejas poderiam ser mencionados.

A diversidade de orientações das instituições e práticas religiosas nos mostra que esse terreno não é marcado somente pelo estabelecimento de consensos, mas também de conflitos e dissidências. Como essa diversidade pode ser facilmente conhecida com apenas algumas poucas pesquisas na internet, podemos dizer que ignorá-la deixa de ser apenas o efeito de um desconhecimento para se tornar, também, o efeito de uma perspectiva social e política. O não reconhecimento dos conflitos inerentes ao terreno religioso se solidariza com o não reconhecimento das possíveis transformações operadas nesse mesmo terreno. Se não há conflito, então não há transformação.

Talvez, agora possamos dar mais um passo no entendimento desse raciocínio. Quem se beneficia com a perspectiva que ignora ou não reconhece a transformação social e política ali onde ela ocorre? A quem interessa afirmar que as coisas continuam como antes, apesar de já não serem mais o que eram? Que cada um responda a essas duas perguntas segundo suas experiências e suas leituras, mas podemos pelo menos afirmar que essa perspectiva, que acredita haver a Religião e que não se interessa em investigar as profundas diferenças entre uma prática religiosa e outra, conserva laços muito frágeis com uma promessa de transformação social e política.

A prática política não se realiza somente entre os iguais. Ao contrário de Narciso, que “acha feio o que não é espelho”, a política é, por excelência, o terreno do dissenso, do conflito, do diferente. Não se estabelecem alianças entre iguais, mas somente com os diferentes. Chegou o momento de dizer que as práticas religiosas devem, sim, ser discutidas publicamente. Existem práticas religiosas que agregam, mas também existem aquelas que segregam – e são justamente essas que devem ser objeto de crítica, não por serem religiosas, e sim por serem excludentes.

Publicado originalmente no OutrasPalavras

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