Leia depoimento de Renato Rabelo sobre sua militância de 1964 a 1985
Leia a entrevista de Renato Rabelo, onde conta de própria voz sua trajetória política desde o golpe militar até a redemocratização.
Publicado 22/02/2022 08:00 | Editado 22/02/2022 22:11
Num raro registro de sua trajetória pessoal, Renato Rabelo fez, em 2012 um longo depoimento ao Centro de Documentação e Memória da Fundação Maurício Grabois. Trechos do depoimento compõem o livro de 2013, Repressão e direito à resistência: os comunistas na luta contra a ditadura (1964-1985), da editora Anita Garibaldi, em coedição com a Fundação Maurício Grabois.
A publicação fez parte do projeto Marcas da Memória, vinculado à Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, presidida, então, por Paulo Abrão, um dos grandes entusiastas do restabelecimento da verdade sobre os fatos ocorridos no período da ditadura militar entre 1964 e 1985.
Leia abaixo a entrevista de Renato Rabelo, onde conta de própria voz sua trajetória:
Renato Rabelo é baiano de Ubaíra, nascido em 1942. Iniciou sua militância política no movimento estudantil católico e logo passou a fazer parte da Ação Popular (AP), incorporando-se, mais tarde, ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Fez Faculdade de Medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Elegeu-se presidente da União dos Estudantes da Bahia e vice-presidente da UNE. Viu de perto a Revolução Cultural da China, ajudou a criar áreas de retaguarda para a Guerrilha do Araguaia e a organizar a 7ª Conferência do PCdoB. Com o recrudescimento da repressão após a Chacina da Lapa, acabou tendo que viver por anos exilado na França, onde foi preso. De volta ao Brasil depois da Anistia, foi um dos principais construtores da legalização e reorganização do PCdoB após a redemocratização. Assumiu a presidência deste partido em 2001, onde permanece até hoje.
O início da vida militante
O meu despertar para os problemas do Brasil aconteceu no ginásio, quando fui presidente do Diretório Acadêmico e comecei a participar da Juventude Estudantil Católica (JEC). Fiz o curso secundário no científico e tinha aulas de contabilidade para ajudar no trabalho. Antes de entrar para o curso de Medicina, eu já frequentava um pouco a faculdade e entrei na campanha da legalidade pela posse de Jango em 1961, participando de assembleias, de plenárias lotadas e de muitos atos na Praça Castro Alves.
A Ação Popular foi fundada em 1963, mas não participei de sua criação. No mesmo ano, entrei para a Universidade Federal da Bahia e passei a atuar na Juventude Universitária Católica (JUC). Nesta condição, participávamos de uma campanha de alfabetização. Íamos a estádios cobertos selecionar gente, muita gente, para essa campanha.
Quando o golpe se deu, foi uma surpresa para setores da esquerda. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), por exemplo, que tinha uma influência muito grande na época, achava que os militares estariam contra o golpe. Quando finalmente ele aconteceu, todo mundo ficou sem ação e isso teve reflexos no processo de resistência à ditadura, especialmente no movimento estudantil.
O contexto do golpe
O governo de João Goulart, comparado ao de Lula, levou a uma mobilização de massas maior. Quando Lula foi eleito, em 2002, o movimento social já estava contido. Logo após o golpe, chegavam notícias as mais diferenciadas. Algumas diziam que Brizola ia resistir e que devíamos ir para o Rio Grande do Sul. Participei de um grupo que iria tentar uma reação em Feira de Santana. Fomos até lá, mas as pessoas não apareceram e voltamos a Salvador.
Uma noite, logo depois do golpe, nós e militantes do PCB pichamos as avenidas do centro de Salvador – Corredor da Vitória, Avenida Sete – com palavras de ordem como “Abaixo os gorilas!”. Este ato teve muita repercussão. Contudo, não houve um polo que aglutinasse uma resistência imediata ao golpe.
Ingressei na AP por volta de 1965. Eu era da direção da JUC e existia uma simbiose muito grande entre ambas as entidades: a AP era o braço político da JUC. No terceiro ano de Medicina, fui escolhido representante de série. No quarto, fui eleito presidente da recém- -reorganizada União dos Estudantes da Bahia (UEB). A indicação foi da AP, em disputa com o PCB. Tivemos maioria, mas a direção era proporcional: AP, PCB, o chamado Grupo Independente – sob influência do PCB –, os independentes mesmo e a Polop (Política Operária), mais próxima da AP.
No início de 1966, o movimento estudantil fazia mobilizações frequentes. Havia manifestações de rua praticamente toda semana. Era impressionante. Quem primeiro enfrentou a ditadura foi o movimento estudantil, sobretudo o universitário. Por isso, ela colocou como alvo os estudantes, eles eram o seu inimigo número um. Até nas barreiras policiais, eles olhavam primeiro os jovens. Então, havia uma onda natural, fortíssima, de reação entre eles. Muitos deixaram a faculdade e o trabalho para assumir a luta, inclusive armada.
Pedras em Juracy Magalhães
Em junho de 1966, no Colégio Central, o líder de um grupo de teatro amador, Carlos Sarno, mais tarde roteirista, escreveu a peça Aventuras e Desventuras de um Estudante, que contava a história de um rapaz vindo do interior, as dificuldades encontradas, as perseguições e a ditadura nas escolas. O diretor do colégio proibiu a peça. Então, resolvemos encená-la na universidade. Improvisamos um palco e a levamos para o restaurante universitário. Tudo que é proibido atrai atenções. Por isso, reunimos quase três mil pessoas. Quando ia começar a peça, subi no palco e comecei a falar. A polícia chegou com bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo. O pessoal reagiu, jogou pedra. Foram umas duas horas de luta campal. Aquilo teve repercussão gigantesca. O Corredor da Vitória foi fechado e houve gente ferida.
No outro dia pela manhã, fizemos um ato de desagravo, de denúncia, com duas mil pessoas em frente à Universidade Federal da Bahia. Quando eu estava falando, passou um carro oficial com Juracy Magalhães, ministro de Relações Exteriores. Um estudante viu e o pessoal logo cercou o veículo. Juracy, odiado na Bahia e metido a valente, saiu para enfrentar a massa. Ao lado, havia uma construção e, consequentemente, muitas pedras – e começamos a utilizá-las. E dá-lhe pedra. Um oficial de ordens tentou proteger Juracy e foi atingido, fraturando o maxilar. E, então, a comitiva entrou no carro, que fugiu sob vaias e pedras.
Congressos da UNE
Depois disso, o Exército chegou com tudo me procurando. Tive que desaparecer da Bahia. Fui para São Paulo e depois segui para Belo Horizonte, onde participei do 28º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), que me elegeu vice-presidente na chapa de José Luís Guedes.
O congresso foi clandestino, realizado num convento dos frades dominicanos. Para entrar tínhamos senha. Quando vimos que a repressão nos seguia, selecionamos um número menor, uns 100 delegados em vez de 300. O congresso começou no convento, foi descoberto e fomos para a igreja de São Francisco. A disputa ainda era entre o PCB e a AP. Neste momento, a AP passou a ter o predomínio na diretoria. Entre os diretores da UNE, ligados ao PCB, estava a atual ministra Eleonora Menicucci, da secretaria de Políticas Especiais para as Mulheres.
A UNE se estruturava lutando contra a Lei Suplicy. Na prática, os estudantes derrubaram este decreto da ditadura que extinguia a UNE. O regime tentou criar uma estrutura burocrática e atrelada a ele, os Diretórios Estaduais de Estudantes (DCE) e o Diretório Nacional de Estudantes. Não conseguiram o seu objetivo a não ser em um ou outro lugar.
Outra questão da época foi a política MEC-Usaid. Existia um acordo entre o Ministério da Educação e a Usaid (Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional), que era um instrumento do imperialismo, para impor uma reforma na universidade que eles queriam, de fora para dentro, de cima para baixo, sem democracia. Reagimos. No plano político mais geral, a luta dos estudantes foi contra a ditadura militar.
O 29º congresso da UNE, em Valinhos, São Paulo, em 1967, elegeu Luiz Travassos, também da AP. A disputa já não era mais com o PCB, que foi minguando, mas com as suas dissidências. Tinha muita força a ideia de revolução, especialmente da luta armada. Nesse clima, as dissidências, que criticavam o reformismo da direção do PCB, se expandiram entre a juventude estudantil. Participavam delas, Vladimir Palmeira, José Dirceu e Daniel Aarão Reis, o candidato a presidente da UNE que derrotamos, por pouco.
Assistindo à Revolução Cultural na China
Quando saí da UNE, a AP já tinha um contato com o Partido Comunista da China (PCCh). Aldo Arantes, dirigente da AP nesta época, esteve naquele país e entabulou uma série de acordos, inclusive a nossa ida para os cursos político-militares que os chineses ministravam. Fiz parte da primeira turma de alunos da AP em 1967. O líder do grupo foi Dorival – Jair Ferreira de Sá –, uma pessoa importante na AP. Ele foi antes, nós fomos depois. Por uma série de atrasos, Dorival fez o curso sozinho, e quando chegamos, ele já estava saindo. Comigo foram Ronald Freitas, que atuava no interior; José Novaes, líder camponês; e Carlos Walter Aumond, do Comando Nacional da AP, um intelectual gaúcho muito preparado que falava quatro línguas. Ficamos durante seis meses na China e visitamos 12 províncias, de avião e trem.
A viagem nos deu uma visão maior sobre o país, que vivia em meio à Revolução Cultural Proletária. Esse movimento, conduzido por jovens, praticamente dissolveu o partido. Eles se reuniam, numa visão meio anárquica, e iam destruindo tudo. O que conseguiu ficar inteiro e segurou as coisas na China foi o Exército Popular. Líderes vindos da época da revolução eram estigmatizados como seguidores do caminho capitalista.
Era possível ver, nas cidades, pequenas manifestações de rua com pessoas usando estranhos chapéus com cartazes amarrados no pescoço, de cabeça baixa, em cima de um burrico ou num palanque. Tudo era feito para humilhar. Essa gente era deslocada aos confins da China, para fazer trabalho pesado. Deng Xiaoping viveu isso, depois passou a ser aquela grande figura, mas antes era considerado um revisionista.
Eles nos davam braceletes vermelhos com a inscrição “A rebelião se justifica”. Íamos fazer treinamento de tiro, e o alvo era o rosto de Richard Nixon. Víamos multidões de estudantes de livrinho vermelho na mão. E dá-lhe citações de Mao. No aeroporto, o pessoal esperava os voos lendo o livrinho como se fosse a Bíblia. Nos aviões, as aeromoças davam vivas a Mao e os passageiros aplaudiam. Era uma luta política e ideológica intensa, permanente: pela manhã, à tarde e à noite só se fazia isso.
Contato com Mao
Ficamos numa área de Nanquim construída pelos ingleses, um lugar aprazível, transformado em academia militar para estrangeiros. Ocupamos um sobrado: em cima ficava o dormitório, embaixo quatro salas de estudo. E por três meses chegavam professores para discutir sobre marxismo, que se reduzia basicamente a estudar o pensamento de Mao Tsé- -tung e a experiência da revolução na China. Por mais que eles dissessem que não era para copiar aquele modelo, evidentemente todo mundo que saía de lá copiava.
Nossa delegação esteve com Mao no Palácio do Povo, mas foi um contato formal, de cumprimentos, rápido. Também estava Lin Piao, tido como sucessor de Mao até pelos Estatutos do partido. Isso ocorreu na festa de 1º de outubro, quando ficamos ao lado de Mao no palanque. Quem falou foi Lin Piao, Mao apenas acenava. E no Palácio do Povo os dois receberam várias delegações, nos cumprimentaram, perguntaram sobre o Brasil, mas foram conversas mais protocolares.
O PCdoB fizera um curso antes de nós. A relação oficial, direção-direção, era com este partido. Mao recebia oficialmente a direção do PCdoB e não a da AP. Aldo Arantes, por exemplo, quando esteve na China, foi recebido por alguém do birô do partido, mas não por Mao Tse-tung. Eles faziam questão de deixar claro que o partido comunista no Brasil era o PCdoB. Mas desde essa época os chineses tinham aquela visão de se relacionar com toda a esquerda e viam na AP uma organização com perspectiva revolucionária, então achavam que era importante manter contato conosco.
Para nós, era interessante conhecer a experiência chinesa, especialmente no campo militar. Tivemos 15 dias de estudo sobre táticas de guerra e de guerrilha. Eu sempre me interessei pela arte e pelas técnicas militares. Mesmo hoje, se tenho tempo, descanso estudando essas coisas.
A chegada da primeira filha
Voltei ao Brasil no começo de 1968. Os chineses traçaram, por segurança, um roteiro para o nosso retorno, deram passagem e tudo: fomos por Genebra, Santiago do Chile, Montevidéu e aí entramos no Brasil de ônibus.
Cheguei a São Paulo talvez em abril, sem um telefone de contato, nada. Então fui bater na Universidade de São Paulo (USP), no Centro Residencial da USP (Crusp), pensando poder achar alguém ali. Batata: encontrei Carlos Eduardo Baldijão, que era da AP e atuava no movimento estudantil. Ele é que me deu a notícia: “Rapaz, nasceu sua filha!”. Conchita, minha mulher, tinha ficado grávida de nossa primeira filha e eu nem fiquei sabendo. Era o preço que se pagava pela clandestinidade forçada. Baldijão providenciou o contato: minha mulher estava no Ipiranga, onde ficava o pessoal da área estudantil da AP. Vi minha filha quase cinco meses depois de ter nascido.
Ida para Trombas e Formoso
Quando me reintegrei, a AP já discutia as áreas estratégicas de trabalho político. Chegamos a ter mais de 80 áreas de trabalho camponês, depois afunilamos para dez que reuniriam condições melhores de trabalho de massa e militares. Fui para uma dessas áreas. Em julho de 1968 viajamos para Goiás: eu, Conchita e a nossa filha pequenininha. No fim do ano, fomos para Trombas e Formoso, área de tradição camponesa, palco de uma luta importante pela reforma agrária, conduzida por José Porfírio.
Levamos algumas pessoas, como José Luís Guedes e José Arruti, que era da direção da AP, e um rapaz que trabalhava no Banco do Brasil. Este se entusiasmou e disse que também queria ir. Tinha um bom salário, mas largou tudo e foi conosco. Contudo, no terceiro dia começou a dizer que não estava aguentando o tranco. Ali não tínhamos nem café para tomar. Para chegar à área, tinha de ser a cavalo e outra parte a pé. Não pudemos segurar o cara. Então, nos desmobilizamos, pois íamos ficar muito vulneráveis. Afinal, e se ele fosse preso e falasse? Tivemos de sair em abril de 1969. Ficamos apenas sete meses na região. De lá, fui para São Paulo.
Consolidação da AP
Em junho de 1969, foi organizada, em São Paulo, a Comissão Executiva Provisória da AP, a CEP, formada por seis pessoas: Jair Ferreira de Sá, Paulo Wright, Duarte Pacheco Pereira, Haroldo Lima, Aldo Arantes e eu. Paulo era do Paraná, um homem muito dedicado, que foi assassinado barbaramente nos porões da ditadura. Uma pessoa impressionante, sabia de tudo sobre a organização e não abriu nada; por isso o mataram.
A AP evoluiu de organização democrático-reformista para democrático-revolucionária. Depois, passou a se dizer marxista e fez um grande debate cujo centro era a questão de partido. Porque quando se descobre Marx, Lênin, Mao e se começa a ver o PCdoB como um partido comunista, obrigatoriamente, somos levados a pensar no assunto.
A Ação Popular foi uma organização que expressava sentimentos da pequena burguesia num período histórico importante, representado pelo ascenso democrático e popular sob o governo Goulart. Com a ditadura, parte da pequena burguesia radicalizou suas posições. Nesse caminho, descobriu o marxismo e depois o PCdoB, reorganizado em 1962.
Antes e depois do golpe, a AP era a força política pequeno-burguesa mais importante, pois os outros grupos foram esporádicos, conjunturais. A AP era maior e tinha influência predominante no movimento estudantil, mas tinha trabalho entre os camponeses e os operários. No ABC paulista, tínhamos alguns operários. Um deles, aliás, foi estudar na China na segunda turma. Havia um operário da Bahia muito preparado, ilustrado, e muitos camponeses, como Manuel da Conceição e José Novaes. Quais organizações tinham essa influência? Nenhuma.
Luta de ideias na AP
De 1969 a 1972, houve uma intensa luta de ideias no interior da AP que se traduziu nas três reuniões ampliadas da sua direção nacional, uma espécie de comitê central. Na primeira delas, ocorrida em setembro de 1968, começou a luta das chamadas Correntes 1 e 2. A Corrente 1 se organizava em torno de Jair Ferreira de Sá, de codinome Dorival, muito influenciado pelas ideias trazidas da China. Ele, ao voltar, assumiu a direção da AP e propôs o chamado Esquema de seis pontos, que se tornaram referências da Corrente 1. De maneira resumida, essa posição defendia que a primeira etapa do marxismo seria representada pelo próprio Marx e Engels; a segunda, por Lênin; e a terceira pelo pensamento de Mao. Daí se tirava a ideia da necessidade de um partido para essa terceira etapa, um partido de tipo inteiramente novo. Propunha-se reconstruir o partido comunista e não se levava em conta a existência do PCdoB.
Do ponto de vista da estratégia, afirmava que a sociedade brasileira era ainda semicolonial e semifeudal, portanto a revolução seria nacional e democrática, numa clara cópia do modelo chinês. O caminho era a guerra popular prolongada, em contraposição ao reformismo e ao foquismo, considerado aventureirismo. Outra medida defendida pela Corrente 1 foi a integração na produção, visando a proletarizar os quadros da AP, que deveriam trabalhar e viver como simples operários e camponeses.
A Corrente 2 se contrapunha a tudo isso. Tinha algumas posições certas, mas outras expressavam uma influência trotskista. Defendia uma revolução socialista imediata, visto que a sociedade brasileira já era capitalista. Apregoava a construção do partido do proletariado porque, segundo ela, nunca teria havido um verdadeiro partido comunista no Brasil. Na primeira reunião ampliada confrontaram-se essas duas correntes. A Corrente 2 acabou sendo expulsa.
Na segunda reunião ampliada, de junho de 1969, quando eu já estava em São Paulo, queríamos definir melhor as áreas estratégicas. Eu dirigia a comissão militar e o debate cresceu. Neste período, nos dedicávamos a estudar o marxismo e a realidade brasileira. Foi a fase em que mais estudei na minha vida. Li Marx, Engels, Lênin, Mao, entre outros.
A proposta de Dorival na segunda reunião foi a reconstrução de um partido operário unificado. A questão do partido era sempre um problema, pois, no fundo, não aceitávamos nos integrar ao PCdoB, porque havia uma pretensa terceira etapa do marxismo na qual se tinha de ter um partido de tipo inteiramente novo. Não conseguíamos sair dessa armadilha. Na proposta de Dorival, AP e PCdoB deviam se unificar para a construção desse partido inteiramente novo. Então, colocava-se a questão sobre qual seria o principal polo dessa unidade. Era uma discussão enorme e se dizia que apenas na prática iríamos ver quem seria.
Começamos então a nos interessar e estudar a trajetória do PCdoB. Víamos que tinha havido uma luta muito grande no interior do Partido Comunista, que acabou se reorganizando em 1962. E por que diabos diziam que o PC do Brasil tinha sido fundado apenas em 1962 e não em 1922? Na verdade, houve uma luta interna no velho partido e formou-se uma corrente revisionista e outra marxista-leninista, revolucionária. Quando fomos percebendo isso, não tinha muito sentido falar na reconstrução do verdadeiro Partido Comunista, pois ele já existia e era o PCdoB. O próprio Dorival foi vendo isso e a sua tese foi abaixo.
A terceira reunião ampliada ocorreu em 1971. Ela definiu novas estruturas: comitê central, birô político, seguindo o modelo de organização dos partidos comunistas. Definiu o Brasil como um país dependente, capitalista, com resquícios pré-capitalistas. E, portanto, uma revolução, democrática, popular, anti-imperialista e agrária, conclusões próximas às do PCdoB, porque o nosso estudo passava muito pelos documentos deste partido. Naquele momento, já havia um contato mais direto entre a direção da AP e o PCdoB.
Aproximação com o PCdoB
A Corrente 2 fora expulsa da AP, ficando somente a Corrente 1, que estava sendo submetida a uma nova redefinição de posições, resultando no surgimento de duas linhas básicas. Dos seis membros do Birô Político, quatro defendiam a aproximação com o PCdoB, inclusive a integração a ele, e apenas dois, Jair e Paulo Wright, resistiam a essa ideia. Era uma nova luta interna com a questão do partido novamente no centro.
Logo depois, Duarte Pacheco – da maioria e entre os quatro do Birô Político – propôs a unificação da AP em torno do PCdoB. Mas teria que se caminhar para um partido de tipo inteiramente novo. Como se pode ver, para nos livrarmos dessa questão ainda levaria algum tempo.
Uma nova diferenciação se deu no interior da maioria. Três propunham avançar no sentido da integração ao PCdoB: Haroldo, Aldo e eu. Duarte começava a se diferenciar. Ele foi o primeiro a defender claramente a unificação, mas achava que o partido de tipo inteiramente novo ainda tinha que ser construído, e que seria preciso travar uma luta com algumas concepções do PCdoB, mesmo tendo-o como polo da unificação.
Nós três, a nova maioria, apresentamos um documento sem Duarte. O texto ainda defendia a existência de uma terceira etapa do marxismo. Só que esta era a etapa atual – daquele momento – marcada pela luta contra o revisionismo contemporâneo, contra Kruschev e Brejnev. E o PCdoB se enquadrava inteiramente nisso. Ou seja, a ideia de construir um novo partido da terceira etapa não tinha mais sentido.
No início, pensávamos em realizar um congresso da AP para decidir sobre isso. A Guerrilha do Araguaia e a repressão contra a direção do PCdoB, especialmente a morte de Carlos Danielli, mudaram nossos planos. Tínhamos de correr para fortalecer o partido. Não tinha sentido esperar por um congresso. A nova maioria queria apressar a integração, e Duarte resistia.
Integração ao PCdoB
Quando, em 17 de maio de 1973, nos reunimos para discutir e aprovar a circular Incorporemo-nos ao PC do Brasil, conseguimos ampla maioria do nosso Comitê Central. A partir daí começamos concretamente o processo de integração.
Desde 1969 me dedicava a isso e, portanto, não saía de São Paulo. Éramos muito perseguidos, mas a AP teve a capacidade de nunca deixar cair sua direção nacional: nisso tínhamos um rigor extremo. Como fazia o PCdoB, a nossa direção não se reunia toda de uma única vez. No entanto, fomos muito atingidos por fora, pelas extremidades da organização. Somente no período que fiquei em São Paulo mudei pelo menos cinco vezes de casa. Saía e largava tudo.
Depois do Incorporemo-nos, tivemos uma reunião com a direção central do PCdoB. Do lado da AP, estávamos Haroldo de Lima e eu; do lado do PCdoB, Pedro Pomar e João Amazonas. Não conhecíamos nenhum dos dois. Inicialmente, achava que Pomar era Amazonas e vice-versa. Afinal, para nós, Amazonas era a grande figura, mas Pomar era o mais alto, mais vistoso, e Amazonas baixinho e ficava sentado num canto.
Foi Pomar que nos recebeu: era um intelectual muito sofisticado, dominava várias línguas, era estudioso, um homem brilhante. Não conheci Danielli. Duarte é que tinha tido contato com ele. Na época, não se conhecia todo mundo. Numa ocasião, cruzei com Duarte Pacheco e Danielli na rua, mas nem nos cumprimentamos.
Os membros do Birô Político da AP passaram a integrar o Comitê Central do PCdoB. Esta decisão foi tomada pela direção do partido sem que tivéssemos reivindicado nada. Então, começamos a discutir sobre nossos papéis e tarefas. Decidiu-se que era preciso um documento que sintetizasse a experiência da AP, procurando tirar algumas lições.
A ideia de manter as duas estruturas nasceu de uma discussão com Amazonas. Vimos que integrar as duas estruturas partidárias era difícil, exigia uma transição, não podia ser algo abrupto. Além disso, sob uma ditadura militar fascista, era bom mantê-las separadas, pois se atingissem uma, a outra estaria preservada. Havia uma única convergência em cima, no Comitê Central. E esta foi uma medida importante, pois, de fato, a Estrutura 1 foi atingida em São Paulo.
Guerrilha do Araguaia
Amazonas era o responsável pelo acompanhamento da Guerrilha do Araguaia. Ele sabia que eu havia passado por Goiás em 1968, então disse: “Sua tarefa será criar áreas de retaguarda para a guerrilha”. O Araguaia havia ficado isolado, sem nenhuma proteção política ou mesmo uma base partidária que lhe desse suporte. Toda ação militar tem que ter uma retaguarda e fazer isso na própria região da guerrilha é complicado.
Reuni gente para isso, como Simão Almeida. Ele fez concurso, com nome falso, para coletor na região e passou em primeiro lugar. Botamos Saulo Petean na Fundação Nacional do Índio (Funai), nas áreas indígenas entre Marabá e a Belém-Brasília. Jogamos cerca de dez companheiros em uns cinco lugares. Eles foram construindo amizades. O coletor tinha uma influência social; o chefe da Funai tinha influência nas aldeias. Foi um trabalho difícil, espinhoso, paciente, de quase três anos.
Eu mesmo fui até lá, com o nome falso de José Osmar Ribeiro. Construí essa identidade a partir de uma certidão falsa. Os outros documentos todos eram verdadeiros. Quando saí do país, usei passaporte verdadeiro, só o nome era falso. Fazíamos essas coisas. Eu era representante da Eternit, andava por todo lado. No Norte, havia barreiras nas estradas; eu era parado e meu carro era revistado. Como estava com tudo em ordem, era liberado.
João Batista Drummond, que fazia o trabalho político, levava os documentos do partido, se reunia com os militantes e passava as diretivas, tudo feito nas condições da clandestinidade. Eu, às vezes, o via na rodoviária e ele só piscava para mim, mais nada. Não tínhamos contato algum. Minha tarefa era outra.
Em junho de 1974, me fixei em Goiânia com a família. Mais tarde, fomos para Belém, pois eu tinha que me aproximar mais da região onde se desenvolvia a Guerrilha. Alugamos uma casa de madeira, de fundos, com um cercado de porcos ao lado. O lugar tinha muitos ratos. Esse trabalho se interrompeu quando fui com Amazonas para o Congresso do Partido do Trabalho da Albânia, em Tirana.
Congresso do Partido do Trabalho da Albânia (PTA)
Amazonas definiu que eu deveria ir com ele. Antes, iria Pomar, mas aconteceu um problema de saúde com sua esposa, o que o obrigou a ficar no país. Então, saí de Belém, com o coração partido por ter que deixar minha família, novamente, numa situação difícil. Fui a São Paulo. Eu já tinha o passaporte verdadeiro, emitido normalmente a partir de certidão forjada. Na hora de buscá-lo mandei outra pessoa, com procuração, porque eu podia ser preso. Mas aquele era um trabalho bem feito e deu tudo certo.
Em novembro de 1976, fui para Buenos Aires e encontrei Dynéas Aguiar. Dali, segui para Paris. Na cidade-luz, procurei Diógenes Arruda, como me haviam indicado, mas ele não estava lá. Liguei para Loreta e Carlos Valadares em Estocolmo e eles me deram um endereço em Lisboa, onde poderia encontrar o velho Arruda. Lembro que ele dava uns cursos para o pessoal do Partido Comunista Português Reconstruído (PCPR) e da União Democrática e Popular (UDP). Na época não tínhamos relações com o Partido Comunista Português (PCP).
Arruda estava bem instalado numa casa e fiquei por ali. Aproveitei para estudar questões militares. A UDP tinha experiência adquirida nas lutas nas colônias e possuía alguns militares nas suas fileiras. Só em novembro Amazonas chegou e fomos juntos para o 7º Congresso do PTA.
Existia então um debate em curso sobre a guerrilha, sobretudo levantado por Pedro Pomar e seu filho, Wladimir Pomar. Não tínhamos contato com Wladimir, mas lemos um documento dele. Ele era mais cáustico em relação à experiência da Guerrilha. Pedro era mais cuidadoso: afirmava que não era foquismo, mas não chegava a ser um protótipo de guerra popular, como se propunha construir.
Depois o debate se acendeu, pois se pensava em retomar a luta armada nos velhos moldes e Pomar achava que isso não tinha mais sentido. A luta armada era um fetiche que pesava muito entre nós. Dizíamos que ela não tinha dado certo por motivos diversos. Havia sempre uma justificativa para a derrota. O Araguaia foi de fato um processo construído muito pacientemente. Foram seis, sete anos de preparação. Não tinha nada de foquismo. No Araguaia, criou-se um vínculo grande com a população, tanto que uma parte participou diretamente do conflito armado.
O debate em torno da experiência da Guerrilha do Araguaia foi crescendo e se radicalizando. Nós, vindos da AP, tivemos uma posição de equidistância neste debate. Estávamos chegando, e como iríamos tomar posição? Ouvíamos e tendíamos a defender o Araguaia, principalmente eu; Haroldo, mais vinculado a Pomar, tinha mais cuidado. Aldo Arantes também, pelo que sei.
Partido do Trabalho da Albânia X Partido Comunista da China
No 7º Congresso, a divergência entre o PTA e o PCCh se intensificou, sobretudo a partir das posições tomadas pelos albaneses. Enver Hoxha colocou como centro do seu informe ao Congresso uma denúncia contra a teoria dos três mundos, defendida pelos chineses. Procurou fazer uma crítica sistemática, considerando que aquela não era uma posição marxista e leninista. Amazonas também passou a se opor de forma bastante contundente a teoria dos três mundos.
Claro que não havia base teórica que justificasse um primeiro mundo, um segundo mundo e um terceiro mundo. Nessa época, como estratégia, o que Mao falava era compreensível. No primeiro mundo ele colocava a União Soviética, depois do revisionismo, e os Estados Unidos. O segundo mundo era a Europa. E o terceiro mundo era o resto. Mao queria unir o terceiro mundo e parte do segundo para isolar o primeiro. O problema foi quando se definiu a URSS como o principal inimigo a ser derrotado, chamando-a de social-imperia-lismo, e sinalizando para uma aproximação com os EUA. Era um período complicado, de grande confusão.
Por proposta de Amazonas, tomamos posição contra as novas teses chinesas. Enver Hoxha era muito cuidadoso nessas coisas, não iria interferir na decisão do nosso partido. Mas, era muito veemente nas suas posições. Amazonas propôs que os partidos da América Latina presentes no congresso do PTA se pronunciassem sobre o assunto. Quem escreveu a declaração conjunta fomos Amazonas e eu. Claro, eu opinando, João escrevendo. Apresentamos a eles, algumas mudanças foram feitas e a maioria dos partidos assinou, e apenas uns dois ficaram vacilando. Então, fomos chamados à Embaixada chinesa em Tirana. Fomos Amazonas, Dynéas e eu. O embaixador convidou-nos a fazer uma visita oficial à China porque eles queriam conversar sobre nossas posições.
Visita a Pequim
Na época tinha um voo Tirana-Pequim. Estávamos em dezembro e fazia um frio arretado. Fomos recebidos por um membro do Birô Político, Kim Piao. Depois Arruda nos disse: “Ih, Kim Piao? Esse é cavalo batizado”, querendo dizer que era uma pessoa dura no trato. Kim tinha ido para cima de nós. O tradutor era excepcional, dominava mais o português do que eu, falava francês, italiano, português, espanhol, inglês e alemão, um gênio. E Kim Piao usou a seguinte terminologia: “Vocês foram a voz cantante do documento aprovado em Tirana”. Isso eu nunca esqueço. Procuramos explicar, mas evidentemente não havia acordo. Queriam que reconsiderássemos, e pedíssemos isso a Amazonas. Meu amigo, isso seria perda de tempo. Amazonas sustentou, nós também, e a relação passou a ser muito formal e seca.
Fizemos três reuniões com Kim Piao. A última foi um jantar em que quase não dava para engolir. Ele foi duro: “Isso é muito importante para nós, queremos que vocês reconsiderem a declaração. Para a República Popular da China e, sobretudo, para o PCCh isso é uma afronta”. Nós falamos que aqueles eram apenas pontos de vista diferenciados, querendo ficar no aspecto meramente democrático, da possibilidade de existirem várias opiniões no nosso meio. Que nada, a situação não se acalmou!
Nossa saída para o aeroporto foi às 5h da manhã, o inverno de Pequim é de 20 graus abaixo de zero. Os chineses, sempre tão acolhedores, deixaram Amazonas com uma capinha fina na beira da pista do aeroporto. Ele tremia feito uma vara verde. O embaixador albanês, que estava lá, botou o agasalho dele sobre Amazonas e seguimos até o avião. E as aeromoças colocaram um bocado de cobertas.
Chacina da Lapa
Foi em Pequim que soubemos da queda da reunião do Comitê Central na Lapa, onde morreram Pomar, Ângelo Arroyo e Drummond. Decidimos mandar Dynéas para Tirana e depois a Paris, para tomar as primeiras providências e ver se restabelecia contato com o partido no Brasil. Logo em seguida ele se transferiu para Buenos Aires, onde estava antes de ir para Tirana.
Naquele momento, teve início uma nova fase da minha vida e do partido: não pudemos voltar mais ao país. Fiquei na Europa um tempo, primeiro morando com Arruda, num edifício em Paris. Amazonas ficou também. Por que Paris? Porque já sabíamos dos problemas de saúde de Amazonas, diagnosticado com um câncer de próstata. Além disso, Diógenes estava lá e já tinha uma pequena base nossa na França. Por fim, havia muitos portugueses em Paris e o pessoal da UDP passou a representar um apoio importante para nós, junto com uma francesa chamada Roseline, muito amiga nossa.
Entre agosto e setembro de 1977 fui a Buenos Aires ajudar Dynéas nos contatos com o Brasil, inclusive com minha mulher. Encontrei-a em Buenos Aires. Havia tempos não via Conchita. Eu a deixara em Belém com os filhos e os ratos. Fiquei seis meses entre Buenos Aires e Montevidéu. Depois, Conchita voltou para ver como poderia viajar para a França com os nossos filhos.
Prisão em Paris
Voltei a Paris em janeiro. Na primeira noite, dormi num hotel e, na outra, encontrei os comunistas portugueses. Eles me arranjaram uma casa para ficar. Uma moça foi lá, ligou a calefação e falou sobre cinco passaportes portugueses que podíamos usar. Fui à casa dela e os peguei. Quando desci no metrô Montparnasse, havia uma barreira policial. Alguém havia sequestrado um barão e a polícia estava nervosa. E eu com cinco passaportes nas mãos. Dei marcha à ré, mas a polícia francesa estava observando todos os nossos movimentos. Finalmente me pegaram e perguntaram o que tinha no pacote que eu carregava. “É um presente”, respondi. Eles abriram e viram os passaportes. Pronto. Eu pareço árabe e na França os árabes são muito perseguidos. Isso, mais os passaportes, mais o sequestro, resultado: estava frito. Imediatamente passaram a me interrogar. A polícia francesa é agressiva e gosta de dar tapas no rosto.
Fiquei na minha, sério, inventei uma história mirabolante: que tinha conhecido uma francesa, ela havia me chamado para a casa dela e não prestei atenção onde era. Eles percebiam que era mentira, mas sustentei minha versão. O que ia fazer? Não podia abrir a casa dos portugueses. Aí, claro, me levaram, achando que eu podia ser uma pessoa importante no sequestro. Aquela polícia de alto escalão francesa, todos de luva, capa, passou três dias me interrogando.
Mantive tudo o que contara, mas lá pelas tantas, disse: “Querem saber? Sou perseguido político no Brasil”. E contei tudo, inclusive do passaporte. Eles começaram a rir. Foram pegar a mala que eu tinha deixado no aeroporto, no guarda-malas e viram quem eu era. Contei a história verdadeira, mas sem abrir a casa, nem ninguém. Se eles perguntavam da casa, dizia não saber ou não lembrar.
Primeiro, fiquei duas noites num depósito de presos onde havia muitos árabes e gente com a cara quebrada. Depois que viram quem eu era, me pegaram de carro, passaram na padaria e compraram croissant para mim. Aí me levaram para La Santé, uma penitenciária famosa desde a Idade Média, um edifício gigantesco, onde fiquei um mês.
De lá, me comuniquei com o pessoal, que já estava me procurando, e houve uma mobilização para que me soltassem. José Luís Guedes deu uma ajuda importante nesse processo, porque fazia algum tempo trabalhava como enfermeiro. Guedes esteve na prisão La Santé e me avisou que ia me procurar o padre François Gentel, que atuou no Brasil, foi perseguido e teve que voltar para a França. Cinco dias depois, o padre apareceu, disse que eu já tinha advogado. Entraram no caso deputados, um senador do Parlamento Francês, a Comissão de Anistia etc. Então, o juiz viu que a minha história tinha procedência e, exatamente 30 dias depois, saí da prisão.
Tentativas de retomar contato
Depois de minha soltura, teve início uma nova fase da minha vida ali. Antes, eu tinha que sair da França para renovar o visto a cada três meses: ia para Barcelona, na Espanha, carimbar o passaporte e voltava como turista.
Junto com Arruda e Amazonas, procuramos retomar os contatos e dirigir o partido do exterior. A primeira providência foi confeccionar o jornal A Classe Operária. Os portugueses nos ajudavam a imprimir e quem escrevia éramos Amazonas, Arruda e eu. Arruda era tudo isso que conhecemos, porém tinha uma dificuldade enorme com os textos; por isso, ele ditava e quem escrevia era a mulher dele, Tereza Costa Rego.
A Classe era lida pela rádio Tirana num programa transmitido em português. Esta foi uma forma encontrada para que as notícias e diretivas da direção chegassem rapidamente aos militantes no interior do país. Assim, dizíamos que o partido estava vivo, que a direção existia. Em Paris, estávamos bem informados, pois havia muitos exilados por ali. José Maria Rabelo tinha uma livraria que o próprio Miguel Arraes ajudou a montar, com muita coisa do Brasil, inclusive jornais. Naquela época a comunicação era difícil. Fazíamos telefonemas através de orelhões e sempre arrumávamos um jeito de burlar as ligações, porque eram muito caras.
Nós, exceto Amazonas, que ficou clandestino o tempo todo, mantínhamos um vínculo com os exilados, como Arraes. Ele morava em Paris e era o aliado mais importante que mantínhamos. Muito pessimista, mesmo em 1979 ele achava que a ditadura ia perdurar ainda por algum tempo e dizia: “Ô Arruda, você sempre foi otimista, fora da realidade”. Depois da Anistia, Arruda cobrou: “Não te disse que ela viria?”.
Estudos e trabalho
Quando saí da prisão pedi asilo político, fiz um curso de francês e consegui emprego numa das faculdades da Sorbonne. Depois, peguei meu currículo e, como fizera até o 4º ano de Medicina, pude trabalhar como enfermeiro em hospitais. E me matriculei na Faculdade de Medicina, não cheguei a ter o diploma francês porque teria que ficar mais tempo para terminar o internato, e com a Anistia eu queria mesmo era voltar para o Brasil.
Eu trabalhava num hospital dando plantão à noite porque, pensava, teria o dia livre. Só que depois de um plantão das 7h da noite às 7h da manhã como enfermeiro, no outro dia era preciso descansar. Conchita, minha mulher, conseguiu o diploma de Serviço Social francês e passou a trabalhar. Nós então tínhamos um salário bom para os padrões do Brasil. Quando chegou a Anistia, íamos morar num chalezinho no meio de um bosque, coisa muito boa. Mas largamos tudo e voltamos.
7ª Conferência em Tirana
Eu ajudei na preparação da 7ª Conferência, recebendo o pessoal em Paris e o encaminhando para Tirana. Geralmente, levava um mês para colocar todo mundo na capital albanesa. Eu não podia ir porque estava sub judice, ou seja, livre, mas sem poder sair de Paris. Até poderia sair com documento falso, mas vimos que era perigoso, então não participei da Conferência, nem da primeira fase, no fim de 1978, nem da segunda, no início de 1979.
Amazonas foi o grande condutor da 7ª Conferência. A nossa atuação política era em torno daquelas três palavras de ordem: anistia ampla, geral e irrestrita, revogação dos atos e leis de exceção e Constituinte livremente eleita.
A morte de Arruda
Em outubro de 1979, após a Anistia, chegamos ao Rio e depois nos dirigimos a Salvador. Arruda já estava lá. Teve um congresso pela anistia na Bahia do qual participamos juntos. Em 25 de novembro de 1979, fui para São Paulo receber Amazonas. No avião, estavam Diógenes e outros companheiros. Chegamos, recebemos Amazonas. Diógenes saiu na frente com ele e eu segui atrás. Quem dirigia o carro deles era César Telles. Iam pela Avenida 23 de Maio, quando Diógenes se sentiu mal e chegou ao hospital já morto.
Eu fui direto para o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, onde haveria uma recepção para Amazonas, e logo que cheguei escutei o pessoal gritando “Camarada Arruda, você está presente!”. Senti que algo ruim havia ocorrido. O enterro foi aquela comoção, mobilizou muita gente.
Luta interna e reconstrução
Nesse momento começava um processo de luta interna no PCdoB. Ozéas Duarte, Nelson Levy e um companheiro do Rio de Janeiro que vivia em Buenos Aires diziam que o partido tinha que passar por uma grande reformulação. Nossa participação no processo de democratização era muito questionada. Mas, eram pessoas sem muita influência de massa, algo localizado no Rio de Janeiro, Bahia e um pouco em São Paulo na Estrutura 1. Tivemos reuniões muito duras e acesas. Rogério Lustosa, quadro dirigente destacado vindo da AP, falecido em 1991, enfrentou esse pessoal. Numa reunião, Ozéas quis ir às “vias de fato” com Rogério e nós apartamos. Freitas, que já tinha voltado do Acre, nos ajudou muito naquele momento.
O processo de reestruturação do partido foi complicado e feito aos poucos. Aqui novamente se destaca o papel de João Amazonas, que tinha uma grande experiência de recomeçar quase do zero. Amazonas fez isso durante toda a sua vida: em 1943, em 1962 e nesse período depois da Queda da Lapa. Em cada estado precisávamos rearticular a direção regional e juntar as Estruturas 1 e 2, porque estava todo mundo disperso.
Logo entrou em cena o jornal Tribuna da Luta Operária, um instrumento para se falar com as massas operárias e populares, mas também com a juventude. Ele teve um papel importante naquele momento. Os primeiros “tribuneiros” foram montando o partido, a nossa base inicial nas cidades. Fomos pouco a pouco redescobrindo o pessoal que era do PCdoB, da AP e trazendo de volta. Por trás disso estavam Amazonas, Dynéas, Rogério Lustosa, Freitas e eu, entre outros. E assim fomos armando a direção nacional.
Eu saí da Bahia e passei a morar com Amazonas em São Paulo, quando Jamil Murad cedeu para nós a casa na qual morava. O partido ainda era clandestino. Até 1989, éramos seguidos pelo Serviço Nacional de Informação (SNI). Aliás, os arquivos da polícia contam em detalhes aquele acontecimento na Bahia com Juracy pós-golpe. Falam de atividades de que eu participava em São Paulo, como a reunião que fiz com Amazonas e outros num sobradinho perto da Granja Julieta. Eles nos seguiram e, quando vi, estavam numa rua paralela, com rádio na mão. Peguei-os em flagrante. Nos arquivos do SNI tem a história de todo mundo. Em detalhes.
Montamos o partido nos estados e preparamos clandestinamente o 6º Congresso do PCdoB, realizado no início de 1983, onde discutimos a tática e a estratégia naqueles momentos finais da ditadura, a nova política de organização para uma fase de semiclandestinidade que se abria e a avaliação da Guerrilha do Araguaia.
Redemocratização e perseguição
Ainda em 1984, em plena campanha de Tancredo Neves para a presidência, invadiram nossas casas no Brasil inteiro. Eu então morava no Campo Limpo, em São Paulo. Eles chegaram, ocuparam a casa, destruíram o colchão e levaram livros, anotações e, inclusive, um texto em francês que eu guardava com muito cuidado, que Arruda me dera, com a experiência do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial, batalha por batalha, uma obra de 1.300 páginas. Invadiram as casas de Walter Sorrentino e de Amazonas. Fizeram o mesmo na Bahia, Rio, Pará e Goiás.
A partir de 1984 havia entrado em pauta a questão de como dar cabo da ditadura tendo em vista as novas condições existentes no país após as eleições de 1982, que deram ampla vitória para a oposição. A campanha das Diretas Já passou a ter um papel importante naquela conjuntura. Juntamente com ela fizemos a campanha pela nossa legalidade. Apesar da grande mobilização, a emenda Dante de Oliveira foi derrotada no Congresso Nacional. Tinha que ter dois terços e, por uma diferença pequena, não conseguiu ser aprovada. O que fazer?
Neste momento, Amazonas teve um papel importante: fechado o caminho das diretas, ele defendeu que devíamos ir ao Colégio Eleitoral para derrotar aquele que seria uma continuidade da ditadura, Paulo Maluf. O candidato da oposição que tinha condições de vencer era Tancredo Neves. Mas antes era preciso convencê-lo a renunciar ao governo de Minas.
Não foi fácil, pois ele não queria se meter numa aventura. João Amazonas ajudou naquele processo de convencimento. Esteve com Tancredo prestando o apoio dos comunistas à sua candidatura. O governador deve ter pensado: “as coisas devem estar boas, pois até os comunistas estão pedindo para eu ir ao colégio eleitoral”. Foi essa sagacidade política que ajudou a pôr um fim à ditadura.
Governo Sarney
Morreu Tancredo e José Sarney assumiu. Quero frisar aqui o que Sarney nos disse: “Olha, eu era uma pessoa vinculada à direita. Assumo a presidência sem ter nenhum esquema, sem preparação. Existia um movimento democrático e popular em ascenso no qual a esquerda tinha um papel crescente. Então eu tinha que me dirigir à esquerda, tinha que fazer gestos à esquerda tentando conseguir algum acordo e apoio. Foi o que eu fiz”.
E, de fato, ele tomou medidas avançadas. Primeiro, suspendeu as intervenções que pesavam sobre vários sindicatos. Depois, comprometeu-se com a legalidade do partido comunista, que estava na ilegalidade desde 1947. Nem Juscelino e nem Jango conseguiram fazer isso, pois não era uma coisa fácil. De fato, o partido foi legalizado. Disse que convocaria uma Constituinte e convocou.
Naquele momento, Sarney assumiu um papel democrático. Recebia os comunistas no Palácio do Planalto. A primeira vez que foi recebido por Sarney, é bom destacar, Amazonas subiu a rampa do Palácio com a guarda apresentando as armas. Até fez uma brincadeira: se virou para ver se tinha alguém mais importante atrás dele. Sarney fazia viagem internacional e botava na comitiva um comunista. Houve avanço na economia. Chamou para o governo Luiz Gonzaga Belluzzo e Dílson Funaro, um empresário nacionalista. O plano cruzado era avançadíssimo para aquele momento e foi bombardeado.
Tivemos uma relação política muito próxima de Sarney nesse primeiro período do seu governo. Mas os planos fizeram água, pois no começo o presidente não tinha apoio ou confiança das classes dominantes. Depois o quadro foi mudando e fomos para a oposição.
Legalização
Em 1985, o partido foi legalizado. Abriu-se uma nova fase que vivemos até hoje. Novamente, Amazonas foi o nosso grande condutor. Esse é o período da chamada terceira geração, renovada, porque aquele pessoal que reorganizou o partido foi ceifado pela ditadura. Quem deveria ocupar esses lugares, caso estivessem vivos, seria Carlos Danielli, Luiz Guilhardini, Ângelo Arroyo. Mas, foram assassinados durante o período do regime militar. Em função da existência dessas lacunas, os dirigentes vindos da AP foram ocupando lugares destacados na direção do partido.
Referência:
Repressão e direito à resistência: os comunistas na luta contra a ditadura (1964-1985)./.—São Paulo : Anita Garibaldi, coedição com a Fundação Maurício Grabois, 2013. 414 p