O Rio moderno dos anos 20
O jornalista e escritor Ruy Castro descreve uma cidade moderna bem antes da Semana de 1922. Suas provocações também revelam os maneirismos passadistas dos artistas paulistas.
Publicado 11/02/2022 18:04
Se em 1922 a Semana de Arte Moderna veio nos ensinar a ser modernos, o que estavam fazendo no Rio naquele ano pessoas como Agrippino Grieco, Alvaro Moreyra, Gilka Machado, Lima Barreto, Orestes Barbosa, Edgar Roquette-Pinto, Théo-Filho, Bertha Lutz, J. Carlos, Ismael Nery, Pixinguinha, Sinhô, Elsie Houston e muitos outros, todos ativos e produtivos, além de João do Rio (morto em 1921) e de Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, que por acaso “emprestamos” à Semana? Todos já eram “modernos”, no sentido de que faziam coisas que ninguém ainda tinha feito no Brasil. Esta é apenas uma das provocações do jornalista e escritor Ruy Castro nesta entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, reproduzida pelo portal Vermelho. Em Metrópole à beira-mar, publicado pela Companhia das Letras em 2019, Ruy descreve um Rio de Janeiro moderno bem antes dos modernistas paulistas. A então capital do Brasil já tinha uma cultura vibrante, a ponto de não precisar de um evento cultural para modernizar o seu pensamento e sua arte.
Em seu livro você afirma que o Rio de Janeiro dos anos 20 já era moderno nas ideias, na forma. O que torna moderno o Rio de Janeiro da década de 1920?
Ruy Castro – Não era só uma cidade grande, mas era A cidade grande do Brasil, aliás a única. Quando eram 11h30 da noite no Rio, ainda era 1899 no resto do país. Era também uma cidade de profissionais – escritores, jornalistas, caricaturistas, artistas gráficos e plásticos, editores – não de playboys diletantes, amadores, filhos de fazendeiros ricos e de latifundiários urbanos. No Rio, escrevia-se e desenhava-se para viver. O mercado era enorme e não era preciso fazer ação entre amigos para se publicar. E, se o automóvel era o símbolo da velocidade e da modernidade daquele tempo, veja a diferença: o Rio já tinha, desde 1905, a revista Fon-Fon, grande sucesso de vendas por 50 anos. Dezessete anos depois, em 1922, os modernistas criaram a Klaxon, que também tinha uma buzina no nome, mas era lida só pelos que escreviam nela e durou apenas oito números. Com razão, era quase ilegível.
O que o levou a escolher a vida cultural do Rio de Janeiro na década de 1920 como tema deste livro?
Ruy Castro: Minha motivação foi uma pergunta que eu me fazia havia muitos anos. Se em 1922 a Semana de Arte Moderna veio para nos ensinar a ser modernos, o que estavam fazendo no Rio naquele ano pessoas como Agrippino Grieco, Álvaro Moreyra, Gilka Machado, Lima Barreto, Orestes Barbosa, Edgar Roquette-Pinto, Théo-Filho, Bertha Lutz, J. Carlos, Ismael Nery, Pixinguinha, Sinhô, Elsie Houston e muitos outros, todos ativos e produtivos, além de João do Rio, que havia morrido em 1921, e de Di Cavalcanti, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos, que por acaso “emprestamos” à Semana? Todos já eram “modernos”, no sentido de que faziam coisas que ninguém ainda tinha feito no Brasil. E, se fôssemos estender esse elenco aos que chegariam nos anos seguintes – como a Semana e 1922 costuma fazer – poderíamos acrescentar Adhemar Gonzaga, Aracy Cortes, Bidu Sayão, Carmen Miranda, Ismael Silva, Mario Reis, Francisco Alves, Oswaldo Goeldi etc. Nenhum deles era “modernista” – ou seja, trabalhava com aqueles cacoetes verbais, nem escrevia “milhor” em vez de “melhor” ou “fumo” em vez de “fomos”. Mas, ao escrever o Metrópole à beira-mar, concluí que seria um erro uma comparação com a Semana. Não havia possibilidade de comparação, nem necessidade disso. Então, no livro, reservei à Semana o espaço que achava proporcional e, mesmo assim, limitado à participação dos cariocas, sem os quais, aliás, ela não teria existido.
Você descreve o Rio de Janeiro como um mundo literário. Como isto se traduzia na paisagem e no cotidiano da cidade?
Ruy Castro – Veja a indústria gráfica carioca daquele tempo, o número de jornais, revistas, editoras e livrarias, todos existindo em função do mercado. Nesse mercado havia lugar para qualquer novidade. Um romancista como Benjamim Costallat vendia milhares de exemplares por edição e, se se fizer restrições literárias a ele, não podemos esquecer de que elas podem ser feitas sobre quase qualquer escritor, em alguma época. Outros, como Theo-Filho, Julia Lopes de Almeida e Chrysanthème também eram best-sellers, no sentido que se dava a isso. A poesia existia em vários estilos, Gilka Machado podia escolher seu editor. Os poetas publicavam nas revistas comerciais, compradas na rua, não em revistas literárias. Mas, o mais importante era a quantidade de escritores no Rio. Eram dezenas, dezenas! Na querida cidade vizinha, em 1922, havia Monteiro Lobato, Paulo Setubal, Paulo Duarte e quem mais mesmo? O pessoal da Semana ainda era desconhecido e, aliás, continuaria sendo por algum tempo.
A década de 1920 no Rio traz grandes mudanças para as mulheres, na moda, no comportamento e com pautas feministas. Pode nos contar mais sobre essas mulheres?
Ruy Castro – O Rio era a sede do Corpo Diplomático, com seus embaixadores, cônsules e chefes de legações. Eles moravam aqui com suas famílias. Suas filhas adolescentes ou adultas se davam com as cariocas de sua idade e, vindo de centros mais avançados, era normal que fizessem a cabeça das locais. As meninas do Rio foram as primeiras no Brasil a sair sozinhas, dirigir automóvel, chamar o amigo ou namorado de “você” em vez de “Senhor”, usar saias curtas e fumar em público. Foram também as primeiras a ler Pitigrilli, D’Annunzio, Pierre Loti e Elinor Glyn, a autora de It. Nos primeiros 20 ou 25 anos do século, o Rio produziu escritoras como Carmen Dolores, Julia Lopes de Almeida, Crysanthème, Rosalina Coelho Lisboa, Albertina Bertha, Mercedes Dantas e Gilka Machado. Bertha Lutz era apenas uma das feministas da praça. Sem falar em Eugenia Álvaro Moreyra, que não precisava escrever uma linha para ser a mulher mais atrevida do país. Há inúmeros registros de circulação intensa dessas mulheres em rodas masculinas nos cafés, livrarias, exposições, conferências.
Embora o tema do livro seja o Rio de Janeiro, você menciona a Semana de Arte Moderna de 1922, que aconteceu em São Paulo e que completa 100 anos este ano. Por quê?
Ruy Castro – Porque certa ideologia acadêmica e oficial vendeu a idéia de que, sem ela, o Brasil nunca teria saído do “atraso” em 1922. Na verdade, quem precisava se atualizar e sair do atraso eram os rapazes que a fizeram – parnasianos, intelectuais de salão e, pior que alienados, integrados ao sistema de poder que mantinha o Brasil com 80% de analfabetos: o perrepismo [de PRP, Partido Republicano Paulista, o partido do poder], com o qual tinham ligações econômicas e de amizade.
Então podemos dizer que existiu a Semana de Arte de 1922, mas que existe também uma construção acadêmica sobre a Semana de 22. Qual a diferença?
Ruy Castro – Essa construção é a posteriori da Semana. Não acho que figuras como Mario de Andrade, Oswald de Andrade ou Menotti del Picchia tivessem condições intelectuais para criar de propósito um movimento visando dar expressão a uma hegemonia cultural ou racial paulista ou coisa assim. Não eram sofisticados a esse ponto. A partir da entrada de Paulo Prado na história, já às vésperas da Semana, aí sim, uma coisa pode ter levado a outra. Mesmo assim, nos primeiros 50 anos seguintes, essa fusão só fermentou lentamente, nos livros de alguns estudiosos. A Semana oficializada e esmagadora só começou a partir de 1972, com grande participação da USP e de outras universidades, do Ministério da Educação, do Instituto Nacional do Livro, do vestibular e também de uma imprensa deslumbrada.
Há muitas ambiguidades intrínsecas ao Modernismo paulista. Gostaríamos de explorar um pouco esse tema. A Semana foi evento dos paulistas e para os paulistas ou houve algum tipo de incorporação de elementos culturais de outras cidades, como o Rio de Janeiro. Como se deu esta inorporação?
Ruy Castro – Até fevereiro de 1922, os modernistas de São Paulo eram perfeitamente ignorantes do que acontecia no resto do país. Mas não do Rio. Eles sabiam de Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Graça Aranha, Elysio de Carvalho e outros, e sabiam também que, sem eles, não falariam “nem para um coreto no Bixiga, quanto mais no Teatro Municipal”, como escreveu Oswald de Andrade. Por intermédio desses, conheceram Villa-Lobos, cuja atuação tomou pelo menos 50% das três noites juntas da Semana. Sem falar que, sem Di Cavalcanti, ela provavelmente não teria sequer existido – ele teve a ideia, fez o contato com Paulo Prado [por sugestão de Graça Aranha] e arregimentou os cariocas. Hoje, 100 anos depois, os modernistas paulistas concedem admitir que havia também “modernismos” incipientes no Rio, em Belo Horizonte, Recife, Natal, Maceió. E havia mesmo. Só o que o Rio não participa desse campeonato de modernismo, ele já era moderno, não precisava ser “modernista”. Falando nisso, todo ismo é uma derivação de algo que já existe, não? O modernismo, por exemplo, é uma derivação de moderno…
O Parnasianismo e o Simbolismo, dominantes na cena cultural carioca, correspondem a uma estética moderna (vide a França). No entanto, o Modernismo paulista declara estes movimentos superados. Há uma oposição entre o Modernismo e o Moderno?
Ruy Castro – O Parnasianismo já estava esvaziado no Rio antes mesmo das mortes de Olavo Bilac e Emilio de Menezes, em 1918. E, por volta de 1920, já estávamos na terceira geração simbolista! Vide as antologias de Andrade Muricy e Massaud Moisés. Havia também muita coisa que não se prestava facilmente a classificações, como a poesia de Mario Pederneiras, o Eu de Augusto dos Anjos [escrito e publicado no Rio], o light verse de Olegario Marianno. Compare isto com o Parnasianismo pré-22 de Mario de Andrade e o pré e pós-22 de Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida e Sergio Milliet. Como disse, quem precisava se modernizar eram eles. O próprio Oswald fazia um parnasianismo em prosa, coelhonettiano, vide seu discurso no jardim da Faculdade de Direito em 1919, em homenagem a uma árvore plantada ali alguns anos antes por Rui Barbosa.
A Semana de 22 de fato apresenta um conjunto de obras – na pintura, na literatura, na música, escultura etc. – ou um conjunto de sugestões que seriam futuramente realizadas?
Ruy Castro – Alguém sabe dizer quais quadros e esculturas exibidos no foyer do Teatro Municipal naquelas noites chocaram a platéia? Alguém consegue citar qual o trecho de Os condenados, romance de sketches de Oswald, lido no palco do Teatro Municipal, teria provocado a famosa vaia? Alguém saberá o que Menotti del Picchia disse em seu discurso? E há um documento provando que Mario de Andrade leu sua “Ode ao burguês” para os encasacados Washington Luiz, Carlos de Campos e outros cartolas presentes? E, se leu, o que eles acharam? [Devem ter gostado, porque nunca romperam relações com os modernistas, ao contrário]. Queria ver Mario escrever era uma “Ode ao arcebispo”, denunciando os padres de quem era fanático devoto.
Se a Semana de 22 foi um evento elegante e oficial, patrocinado pela elite do café de São Paulo, como ela pode ser vista como revolucionária? Isso não seria uma contradição?
Ruy Castro – A elite de São Paulo achou a Semana uma brincadeira divertida e barata, que não lhes tirou pedaço e só lhes fez bem, dando-lhes uma imagem de liberal e avançada – o que ela não era. Washington Luiz foi padrinho de casamento de Oswald e Tarsila, e Oswald pôs um certo “Clube da Antropofagia” a serviço da eleição de Julio Prestes, candidato a suceder a Washington Luiz em 1930. Oswald e Julio também eram velhos amigos. A farra acabou para perrepistas e modernistas, não por acaso, ao mesmo tempo – em 1930, quando Washington foi derrubado. Sem o conluio com o poder, o Modernismo paulista não teria como existir.
Movimentos que foram desdobramentos do Modernismo, como a Anta, o Verdeamarelismo e o Integralismo de Plínio Salgado, com ligações com Fascismo, não têm sido lembrados nas comemorações atuais. Isso parece ser parte de uma tendência dos estudos sobre a Semana, que tanto exclui integrantes quanto inclui membros indevidos, como Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e outros. Em sua opinião, por que isso acontece?
Ruy Castro – Sim, entre os “legados” do Modernismo não se pode esquecer o Integralismo, nascido do Verdeamarelismo e da Anta, movimentos “dissidentes” do Pau Brasil. Mas seriam assim tão dissidentes? Tanto o Pau Brasil quanto os outros eram nacionalistas, indianistas e primitivistas, no fundo, inspirados em Gonçalves Dias, que diziam abjurar. Se essa briga vinha de 1924 e teria estabelecido uma fratura “esquerda x direita” no Modernismo, como se explica que, em 1928, Plínio Salgado tenha colaborado nos dois primeiros números da Revista de Antropofagia com matérias de página inteira sobre a língua tupi? Seria possível alguém colaborar na revista sem a autorização de Oswald? -E logo Plínio? Quanto à diferença política entre eles, não é verdade que Oswald fosse à esquerda e Plínio à direita. Essa foi a versão que ele começou a vender muito depois. Na verdade, nos anos 1920 Oswald era à direita e Plínio, a extrema-direita. Quanto aos escritores nordestinos serem uma conseqüência do Modernismo, é só ver a opinião de Oswald sobre eles quando eles começaram a surgir: chamou-os de “búfalos” que iriam atrasar a literatura nacional. Depois, por razões “ideológicas”, começou a apoiá-los e até tentou se tornar um deles, com seu romance naturalista Marco zero.
A importância da Semana de 22 foi construída sobre uma imagem negativa da cultura do Rio de Janeiro. Em seu livro você desconstrói essa ideia. Se olharmos, porém, o Modernismo sem efeito de comparação, por si mesmo, qual a sua importância? Quais obras são importantes?
Ruy Castro – Eles eram mais engraçados do que originais. Oswald, por exemplo. A poesia Pau Brasil e o poema-piada são subprodutos dos poémes-élastiques e dos poèmes-blagues, de Blaise Cendrars, de dez anos antes. A Antropofagia (que, no fim, se tornou uma obsessão maníaca de Oswald, muito além do manifesto humorístico de 1928) não será um derivado do “Manifesto Canibale”, de Picabia, de 1920? Seus romances João Miramar e Serafim foram classificados em 1957 pelo próprio Cendrars como “quasi illisibles”. Na verdade, nem são romances. Quanto a Os condenados, um livro em três partes, publicadas separadamente, e que Oswald diz ter escrito “entre 1917 e 1921”, é só ler as últimas páginas da última parte, “A escada”, publicada em 1934. Elas mostram um personagem carola e esteticista subitamente convertido à ditadura do proletariado, na verdade o próprio Oswald. Só que, na vida real, isso só aconteceu a partir de 1931. Donde Oswald estava apenas mentindo, como sempre, e tentando copidescar sua história e mostrar que, em 1921, ele já era “de esquerda”. Quanto a Mario, “Paulicéia desvairada” é um poema regionalista e meio exagerado. Não havia nem sombra daquele desvario. Quando a crítica era mais autorizada, Macunaíma costumava ser acusado de “um romance manqué”. E o dilúvio de cartas que Mario deixou trata o tempo todo de um único personagem: Mario de Andrade. É o maior exercício de autobustificação epistolar da língua portuguesa. São uma prova também da sua alienação: naqueles milhões de cartas, não há uma única referência aos 18 do Forte, à Revolução de 1924, à Coluna Prestes e nem mesmo à Revolução de 30, que mudou a vida de todos eles – em que país ele vivia? E há os outros. Os poemas de Luiz Aranha, divertidos, mas, quanto a Menotti, Guilherme, Sergio Milliet etc., é melhor nem falar, não? Aliás, os próprios exegetas do Modernismo também preferem não falar – porque é difícil falar em Modernismo e usá-los como exemplos…
O foco da crítica Modernista em relação a cultura carioca estava centrado na Academia Brasileira de Letras. O que você diria sobre isso?
Ruy Castro – Em 1922, Agrippino Grieco já tinha se cansado de fazer piada com a Academia. A melhor é aquela dos fardões dos acadêmicos mortos, que deviam ser convertidos em pano para mesas de bilhar. Depois da morte de Machado, Nabuco e outros, ninguém estava levando a Academia a sério. Mas os modernistas lhe davam grande importância – tanto que, a partir de 1930, apenas oito anos depois da Semana – começaram a ingressar alegremente nela. Em poucos anos lá estavam Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia, Ribeiro Couto, Candido Motta Filho, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e Alceu Amoroso Lima, todos identificados com o Modernismo. Oswald concorreu a ela duas vezes, dizendo que era por deboche, mas tal deboche não seria um reconhecimento de que lhe dava importância? Aliás, pelo que sei, a Biblioteca da Academia está cheia de seus livros com carinhosas dedicatórias aos acadêmicos. Para mim, tudo isso é apenas coerente: os modernistas eram passadistas que tentavam se modernizar. E estão tentando até hoje – agora pela mão de seus exegetas…