Destruição da cultura no governo Bolsonaro é tema de livro

Com entrevistas de autoridades e profissionais da cultura, obra discute políticas públicas pós-Ministério da Cultura

O livro de Rafael Moreira e Lincoln Spada: ‘‘Independentemente de quando o governo Bolsonaro findar, sua gestão já deixou sua marca no segmento cultural e é avaliada por artistas e gestores culturais como a pior desde a criação do Ministério da Cultura’’, escrevem os autores – Foto: Divulgação

“Um país que não preserva sua cultura e sua arte jamais será uma nação.” A afirmação contundente de José Virgílio Leal, diretor e fundador do Instituto Arte no Dique, é a melhor síntese do que inspira O Fim do Ministério da Cultura: Reflexões sobre as Políticas Culturais na Era Pós-MinC. Não à toa, é a frase que estampa a contracapa do livro recém-publicado de autoria de Rafael Moreira, doutor em Ciência Política pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e do jornalista Lincoln Spada.

Como o próprio título adianta, o volume reúne comentários e discussões sobre a cultura como política pública, tendo como disparador das reflexões a extinção do Ministério da Cultura (MinC), realizada no primeiro dia de governo de Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019. Os autores constroem a obra a partir de dez entrevistas realizadas em 2021 com pesquisadores da área da cultura, artistas, produtores culturais, professores, gestores culturais de diversos níveis da administração pública e o ex-ministro da pasta Juca Ferreira.

“Assim como em qualquer obra, este livro não é o resultado do trabalho exclusivo de seus autores”, escrevem Moreira e Spada nos agradecimentos do volume. “Ele sintetiza, tanto em suas reflexões quanto em seu resultado concreto, o trabalho e o engajamento de múltiplos setores da cultura que foram tão atingidos pela atual gestão do governo federal, desde os artistas até os gestores públicos, passando pelos pesquisadores e pelo próprio mercado editorial. Nosso intuito aqui desde o princípio foi dar voz – e de certa forma também representar – às angústias de todos aqueles que de alguma forma estão ligados ao segmento cultural e viram o ministério que os representava ser extinto do dia pra noite.”

Do surgimento na redemocratização à extinção

Conforme os autores relatam na introdução da obra, o Ministério da Cultura foi criado em março de 1985, durante a presidência de José Sarney (1985-1990), sendo parte do processo de transição democrática pós-ditadura militar. Até seu fim, em 2019, 30 pessoas ocuparam o cargo máximo de ministro, dentre eles 25 homens e cinco mulheres.

Quem esteve por mais tempo na cadeira foi o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP Francisco Weffort, falecido em 2021, que capitaneou o ministério ao longo dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Quase todo o espectro político-partidário já comandou a pasta: a lista inclui PT, PCdoB, PPS, PV, PSB, PFL, PL E PMDB.

Por essa pluralidade, a concepção do que é cultura e a orientação político-ideológica das ações do ministério obviamente flutuaram ao longo desses anos. Com Celso Furtado, ministro de 1986 a 1988, por exemplo, quatro diretrizes nortearam sua gestão, conforme apontam os autores: “A preservação e o desenvolvimento do patrimônio cultural; o estímulo à produção cultural preservando a criatividade; o apoio à atividade cultural onde ela se apresenta como ruptura com respeito às correntes dominantes; e, finalmente, o estímulo à difusão e ao intercâmbio culturais visando a democratizar o acesso ao nosso patrimônio e aos bens culturais”.

Já com Weffort, registram Moreira e Spada, a conjuntura da consolidação do pensamento neoliberal no Brasil colocou o papel do Estado na área da cultura como de um disciplinador, amparado na crença da boa regulagem do mercado para a captação de recursos na área cultural por meio do setor privado. É nesse contexto que se expande a Lei Rouanet, reformada em 1991 a partir da Lei Sarney.

O cientista político Rafael Moreira – Foto: Acervo pessoal

Por sua vez, na passagem de Gilberto Gil (2003-2008) durante a presidência de Lula, uma série de políticas atribuiu protagonismo ao papel do Estado na elaboração de políticas culturais, escrevem os autores. A perspectiva envolvia a criação de uma política de Estado baseada não apenas em fomento a atividades culturais, mas também em processos regulatórios e políticas públicas que contribuíssem para o desenvolvimento da cultura em três dimensões: simbólica, econômica e cidadã.

Questionamentos sobre a necessidade da existência do próprio Ministério da Cultura também permearam sua história. A primeira ameaça veio no governo Collor (1990-1992), quando o então presidente editou uma Medida Provisória tornando o MinC uma Secretaria Especial vinculada diretamente à Presidência da República. Com seu impeachment, a medida seria revertida logo após a posse de Itamar Franco. A segunda ameaça veio no governo de Michel Temer (2016-2018), que tentou incorporar o MinC ao Ministério da Educação. Durou pouco: após forte pressão do setor cultural, a medida foi revertida em apenas nove dias.

As mobilizações ocorridas durante o governo Temer não se repetiram, entretanto, quando em 2019 Jair Bolsonaro rebaixou o status do Ministério da Cultura para Secretaria Especial da Cultura, vinculada primeiro ao Ministério da Cidadania e, atualmente, ao Ministério do Turismo.

“A cultura, quando toma a forma institucional de um ministério para fomentar suas atividades, demonstra toda a sua força”, escrevem os autores. “Geralmente com menos recursos financeiros e institucionais em épocas nas quais tem sua importância reconhecida, a cultura sofre mais do que qualquer outra política pública em tempos de escuridão da política como o que atravessamos nesta década de 20 do século 21 no Brasil.”

Secretaria Especial da Cultura

Desde o rebaixamento para Secretaria Especial da Cultura, seis pessoas já ocuparam o cargo de secretário. O primeiro foi Henrique Pires, que deixou o posto após acusar o governo de tentar censurar um edital ligado à temática LGBTQIA+. Depois vieram José Paulo Martins e Ricardo Braga, com breves passagens, o primeiro apenas como interino, em duas ocasiões. O secretário seguinte seria o diretor teatral Roberto Alvim, afastado após discursar inspirado em Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista. Em seguida, quem passou pela cadeira foi a atriz global Regina Duarte, afastada depois de interromper uma entrevista na CNN Brasil na qual minimizou a ditadura militar. Atualmente, o cargo está com o também ator global Mário Frias, que costuma circular armado pelas dependências da secretaria, o que intimida os funcionários, relatam Moreira e Spada.

“O temor se dá quando políticas culturais passam a ser colonizadas por ideias e discursos obscurantistas”, escrevem os autores. “O pós-MinC, em seu diminuído formato institucional de secretaria, teve cinco secretários em dois anos, o que resume bem a importância da cultura e das políticas de cultura para o atual governo federal. O que se vê é o contágio das instituições que governam as políticas de cultura com discursos que carregam significantes que a humanidade já aprendeu a desprezar: símbolos nazistas; supremacismo branco; machismo; homofobia; racismo.”

Segundo Moreira e Spada, o que se nota é uma tentativa explícita de utilizar as políticas de cultura como veículo de propaganda, “quando um secretário de Estado responsável pelas políticas culturais cita trechos de discurso de Goebbels; quando o responsável pela Fundação Zumbi dos Palmares chama o movimento negro de ‘escória maldita’ e revoga prêmios concedidos a personalidades negras”.

Ao mesmo tempo em que a ideologia parece contaminar o órgão, servidores da atual estrutura da Secretaria Especial da Cultura relatam que os cortes orçamentários, as reformas legislativas, as trocas frequentes de dirigentes e os repetidos ataques às missões institucionais revelam um quadro grave. Conforme mostra a declaração, reproduzida no livro, de um servidor da Fundação Casa Rui Barbosa, vinculada à secretaria: ‘‘Ah, tem sido muito desgastante, né, trabalhar dessa maneira. Não que antes a gente não tivesse as discordâncias internas, que a gente não tivesse diferenças de opiniões, isso sempre existiu – e acho até sadio que exista, né? Então muitas vezes a gente tinha discordância de alguma posição da direção maior, enfim, mas no final das contas reinava um consenso, reinava ali uma capacidade de diálogo, né, e hoje isso tudo tem sido rompido, porque… a gestão tem sido bastante autoritária e isso é uma coisa que é explícita, porque inclusive aparece nos e-mails que a gente recebe – como proibição… palavras como ‘proibição’, ‘está vetado’, né, então são muito diretos nesse sentido. Essa capacidade de diálogo com a alta direção, ela praticamente se esgotou’’.

“Uma visão colonizada, pobre, medíocre e rasa de cultura”

Querendo dar voz para as pessoas impactadas diretamente pela extinção do MinC e registrar suas reflexões sobre o setor cultural neste momento histórico, Moreira e Spada realizaram dez entrevistas que compõem a maior parte do volume. Feitas virtualmente no primeiro semestre de 2021, refletem em seu contexto a situação da pandemia de covid-19, que torna ainda mais dramática a situação de quem trabalha com a cultura.

Dentre os entrevistados para a obra está Juca Ferreira, secretário-executivo do MinC entre 2003 e 2008, durante a passagem de Gilberto Gil pela pasta, e ministro por duas ocasiões: de 2008 a 2012 e de 2014 a 2016. Em suas declarações, Ferreira analisa as implicações do rebaixamento do ministério para secretaria e os interesses ideológicos da medida.

‘‘Chamo a atenção para duas dimensões’’, declara o ex-ministro aos entrevistadores. ‘‘Uma é essa perda do status ministerial, que é uma redução da importância da cultura no plano nacional. Ou seja, o governo Bolsonaro declarou guerra à cultura. Eles [do governo] consideram que têm que passar o Brasil a limpo. É um projeto da extrema direita. Eles não gostam de nada que singulariza e que personaliza o Brasil sob o ponto de vista cultural. Eles rejeitam a herança africana, vide o cidadão que botaram para dirigir a Fundação Palmares, e rejeitam também a contribuição dos povos indígenas para o Brasil. Eles têm uma visão muito colonizada, pobre, medíocre, ignorante e rasa de cultura.’’

O jornalista Lincoln Spada – Foto: Acervo pessoal

Ao lado dessa visão, Ferreira enxerga também um ataque ao que o governo detecta como “marxismo cultural” e a tentativa de restabelecer a censura no Brasil. “Tudo que é modernidade, tudo o que é contemporâneo no plano da cultura, eles rejeitam. Quer saber o que o governo Bolsonaro pensa na área da cultura, ouça a ministra Damares Alves, a moça da goiabeira. A gente se acostumou com uma elite que dá pouca importância à cultura no Brasil, mas esse grupo de extrema direita que tem Bolsonaro como representante, eles dão importância. É inclusive uma teorização que passa por Olavo de Carvalho e passa por todas as instituições que estão alimentando ideologicamente a extrema direita no mundo, como o Instituto Millenium, entre outros. Eles acham que há uma guerra cultural, que há uma predominância da esquerda, que o marxismo cultural dominou o Ocidente.”

Bárbara Rodarte, que trabalhou na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, foi assessora da Prefeitura de São Paulo e é especialista em replicar cursos para gestores públicos sobre planos municipais e sistemas municipais de Cultura, também aponta uma gestão da cultura pelo governo marcada por fortes interesses ideológicos.

“Sobre o financiamento por meio da Lei de Incentivo à Cultura, novo nome dado à Lei Rouanet, vimos, recentemente, o veto ao plano de atividades do Instituto Vladimir Herzog, o qual vinha sendo aprovado há dez anos, conforme noticiado pela imprensa”, comenta Bárbara. “Também são feitas constantes ameaças de filtro ideológico ao cinema nacional. Temos visto a indicação de nomes para a gestão de órgãos e áreas de fomento à cultura com viés ideológico e sem capacidade técnica comprovada. Então, acredito que sim, o financiamento à cultura, na esfera federal, pode estar utilizando outros critérios que não os meramente técnicos para a aprovação de projetos, no momento, os inscritos na Lei de Incentivo à Cultura.”

Não são todos os entrevistados, contudo, que partilham a decepção e a preocupação com o fim do MinC. Mateus Sartori, que foi secretário de Cultura de Mogi das Cruzes (SP) por oito anos (2013-2020) e acumulou a partir de 2017 a função de coordenador de Turismo, relativiza a questão, tendo visto na incorporação da Cultura pelo Ministério do Turismo oportunidades para o município. “Logo no início de 2017 a gente transforma Mogi em Município de Interesse Turístico, e paralelo a isso a gente capta R$ 6 milhões em quatro anos. A gente construiu vários prédios, reformou equipamentos… Apesar de algumas pessoas criticarem muito nesse período do governo Bolsonaro ter colocado a Cultura dentro do Ministério do Turismo, e aí consequentemente algumas prefeituras entraram nessa onda, em Mogi nós tivemos uma experiência totalmente diferente. Este ano temos dois equipamentos para serem entregues, um deles é um centro de convenções que a gente aprovou o projeto e captou 100% do dinheiro via Ministério do Turismo, um centro de convenções e eventos para a cidade. Então, eu acho que essa junção, pelo menos aqui no município de Mogi das Cruzes, deu muito certo.”

Para Sartori, a questão de um ministério exclusivo para a cultura merece uma discussão mais aprofundada. “Eu acho que vale a pena a gente começar a pensar talvez em uniões de áreas que a gente ainda não experimentou, ou que até já experimentou no passado. A cultura, por exemplo, podia estar em ciência e tecnologia”, propõe. “Eu penso que ter um ministério acéfalo não serve para nada, assim sem conteúdo, sem conceito ou sem ação. Ter um ministério só para o fortalecimento político da área, isso sinceramente não acho que acontece. E custa caro ter um ministério que não funciona. Ter um ministério que funcionasse como foi o período de Juca e Gil, isso seria muito legal. Até pra gente tentar rever coisas que se perderam nesse período de destruição que a gente tá passando. E penso também que valeria a experiência de um Ministério da Cultura se associar a outros, porque não vejo mais a cultura desassociada de outras coisas. Penso que ela pode se fortalecer se ela for um Ministério de Cultura e Relações Exteriores, por exemplo.’’

João Brant, entretanto, que foi secretário-executivo do MinC durante a segunda passagem de Juca Ferreira pela pasta e é outro dos entrevistados no livro, destaca que três perdas de impacto nacional se relacionam com a extinção do ministério. Em primeiro lugar, há perda de autonomia na gestão de recursos, que passa a depender de um ministro que não é necessariamente da área da cultura. Em seguida, há perda de lugar de fala dentro do governo. Finalmente, há perda de prestígio e lugar de fala externa. “Você não tem um Ministério da Cultura que vocalize determinadas questões para o setor, perdendo simbolismo e a capacidade de gerar ação pela sua intenção, suas manifestações”, declara Brant.

“Independentemente de quando o governo Bolsonaro findar, sua gestão já deixou sua marca no segmento cultural e é avaliada por artistas e gestores culturais como a pior desde a criação do ministério”, assinalam Moreira e Spada. “A própria inexistência do MinC e a elaboração deste livro sobre a temática são a mais pura prova disso.”

O Fim do Ministério da Cultura: Reflexões sobre as Políticas Culturais na Era Pós-MinC, de Rafael Moreira e Lincoln Spada, Imaginário Coletivo, 272 páginas, R$ 50,00.

O livro pode ser adquirido diretamente com os autores através do Instagram e do Facebook (@rafaelpolitica) e por e-mail (rafaeldardaqueusa@hotmail.com).

Do Jornal da USP

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