Como nasce a relação do povo cearense com o riso?
Pesquisador cultural e humoristas de diferentes safras contextualizam nossa arte de fazer graça
Publicado 23/01/2022 18:04
Antes mesmo da estreia da nova edição do Big Brother Brasil, o nome de Marcus Vinicius Fernandes de Sousa – Vyni, como é conhecido pelo público – já era querido por muitos seguidores. O bom humor do cratense logo despontou como a principal característica, algo que se confirma nesses primeiros dias de confinamento na casa.
Não à toa, conterrâneos povoam as redes sociais de comentários atestando a genuína cearensidade do participante. Mas, afinal, como nasce a relação do povo cearense com o riso? É possível explicar nossa inclinação para fazer graça naturalmente?
O dramaturgo, poeta, jornalista, folclorista e teatrólogo, Oswald Barroso, considera que a molecagem se constitui uma das maiores marcas do Ceará desde a mestiçagem de nosso povo com africanos, indígenas, ibéricos e outras nações que por aqui passaram, a partir do século XVIII. Foram elas que constituíram a base de nossa sociedade.
“Nessa mistura, predominaram elementos de culturas mais antigas, fortíssimas”, diz o pesquisador. Falando-se do componente africano, por exemplo, a presença de negros era observada com maior ressonância nos vales úmidos, cobrindo litoral e serra, onde existiam plantações de açúcar. Por sinal, o termo “fuleragem” – largamente utilizado para definir o jeito de ser cearense – surge dessa raiz afro.
A palavra está associada aos fulos, indivíduos pertencentes ao grupo étnico Fulas, compreendendo várias populações espalhadas pela África Ocidental, África Central e no norte da África sudanesa. Por outro lado, quando se processou a mestiçagem com indígenas – geralmente mais sérios que os africanos, segundo o estudioso – foi levado em consideração um elemento presente nas aldeias. Assim como o cacique e o pajé, havia a figura do palhaço.
“O palhaço também é encontrado nas culturas de origem árabe e africana, sobretudo na África do Norte – que é meio africana e meio árabe. É preciso levar em consideração que o cearense é nômade, principalmente a partir do fenômeno da seca, que fez com que muitas pessoas viajassem durante a estiagem e depois voltassem quando chovia. Somos um povo que se tornou perambulante, aumentando a riqueza de nossa cultura”, situa Oswald.
A mídia e o nosso humor
Mas foi mesmo com o avanço da mídia que a genialidade cearense na comédia se popularizou, ganhando o mundo. Foi quando mestres como Chico Anysio (1931-2012), Renato Aragão, Tom Cavalcante, Rossicléa, Tiririca e Falcão passaram a ser referência, protagonizando momentos hilários e arrancando boas risadas do público.
Oswald Barroso, contudo, observa que, muito antes dessa grande fama do Estado, por aqui sempre houve humoristas extraordinários, muitos deles bebendo da fonte do teatro e das manifestações populares. “Na genealogia do povo cearense, existem pessoas que até hoje – os bonequeiros, por exemplo – são famosos, antecedendo a esses todos. Porém, a ressonância do rádio, da TV, do cinema e, mais recentemente, das redes sociais, tratou de ampliar e favorecer a divulgação do cearense como o povo que faz graça”.
Ao ser questionado se o modo de fazer humor no Ceará mudou muito ao longo dos anos, o estudioso explica que o riso popular nunca foi preconceituoso – levando em consideração o debate cada vez mais frequente na contemporaneidade sobre os limites do fazer rir. Isso porque ele nasceu exatamente das camadas humildes e oprimidas, utilizado como meio de desfazer a autoridade, o pretensioso, o estabelecido.
“Usavam o riso para contrapor a alegria à dor, à tristeza, e poder viver melhor. É uma forma de driblar a opressão. Esse riso nunca foi homofóbico ou racista. Já o riso dito oficial, não. O riso que rebaixa o já rebaixado, que goza com a miséria alheia, sempre foi muito questionado pelo povo. Por isso que agora essa tendência da piada discriminatória diminuiu. Mas todas as grandes questões – a exemplo de agora, com a pandemia – o povo tem que levar mesmo na esculhambação, fazer fuleragem com o tema, pra poder resistir e não morrer tanta gente, não haver tanta depressão”, defende Oswald.
A grande aderência do público a Vinicius, no BBB, deve-se sobretudo a isso. Para o pesquisador, ele é cria da nossa fuleragem. “O povo cearense é um profeta e um palhaço. Somos singulares porque nascemos de uma mistura também assim. Por isso somos tão fortes e necessários hoje no Brasil. O maior antídoto para a pandemia é o riso. O riso é uma coisa sagrada, dos deuses. Os deuses também riem. Isso explica por que o Ceará está sendo tão contagiante e vai ser ainda mais. Vamos rir! Vamos levantar a saia e botar a bunda pra cima!”.
Linguagem universal
Descrevendo-se como integrante da primeira “leva” do humor cearense, Ciro Santos acredita ser a nossa gaiatice um fenômeno diferenciado porque acontece de maneira muito espontânea. “O cearense ri da própria desgraça, faz piada com tudo. Ou seja, é um povo que sempre consegue tirar algo engraçado de qualquer situação, além da originalidade das coisas – a linguagem, por exemplo, é muito peculiar”, sublinha.
Tendo feito shows em cruzeiros e resorts pelo Brasil e pelo exterior durante anos, o comediante sempre procurou uma linguagem universal para contar piadas, agradando a gregos e troianos. Um desafio com camadas cada vez mais profundas.
“Fazer números de plateia é muito difícil e requer realmente um cuidado especial com a linguagem e com o que se fala. Por isso mesmo, de uma forma geral, não é possível fazer o mesmo tipo de humor realizado há muitos anos. Hoje as pessoas estão mais intolerantes a piadas preconceituosas, por exemplo. Ainda bem”.
Tendo nascido no Rio de Janeiro, Ciro se sente mais cearense do que carioca. Há mais de três décadas ele atua no segmento humorístico, tendo como personagem principal a vedete Virginia Del Fuego. O comediante afirma com todas as letras: nosso povo já nasce humorista. “O Ceará é o grande celeiro do humor brasileiro. O humor cearense é diferenciado e especial. E sim, minha torcida no BBB é do Vyni desde quando foi anunciada a participação dele no reality. Ele é bem humorado sem ser forçado, e é cearense. O riso cura!”, diz Ciro Santos.
Mesma opinião tem Tirullipa, outro grande nome da molecagem no Estado e no Brasil. Foi ele, inclusive, quem primeiro apresentou Vinicius ao mundo, há dois anos. Na ocasião, o filho de Tiririca publicou vídeos nos stories e no feed do instagram ressaltando as qualidades do atual participante do Big Brother Brasil.
“O Vyni é o cearense moleque, da periferia, de baixa renda, pobre. Você olha pra ele e vê a liseira. Ele é a cara do humor cearense – escrachado, esse humor que a gente brinca com a gente mesmo, tirando onda da própria desgraça”, detalha o comediante.
Na visão dele, com 26 anos de profissão, para fazer graça como se faz por aqui é preciso conviver com as pessoas do Ceará – realidade experimentada pelo humorista desde cedo. Além de ser filho de uma das maiores referências na área, Tirullipa diz sempre estar envolto por muita marmota e fuleragem, o que vai reforçando a especialidade em promover o riso.
“Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Tiririca, Falcão… O legado que deixaram é que esse é que é o verdadeiro humor: o de tirar graça da desgraça, de brincar com nós mesmos, com a nossa cultura, com o cearense réi lascado, com o rico réi metido a besta. Se essa galera nova pegasse um vídeo sobre o que esses caras fizeram, terão acesso à maior faculdade do mundo”.
Sem esconder a preferência por Vinicius no BBB, Tirullipa enxerga nele uma personalidade capaz de apresentar o mais bonito do Ceará. “Ele só mostrou quem ele é nessa oportunidade que a Globo deu. A entrada dele no programa para mim foi a melhor entrada de todos os BBBs. Com a vaia cearense, ele tirou onda, brincou, tirou o moleque cearense que tem dentro da gente. Então, de fato, ele é um orgulho. Certeza que Vyni vai dar o que falar e eu tô torcendo por ele”.
Coragem e vontade de chegar
Mais um que se soma a esse coro é o ator e youtuber Max Petterson, famoso pelas hilárias situações vivenciadas em Paris. Conforme observa, o jeito engraçado de Vinicius apenas comprova o quanto nós, cearenses e nordestinos, temos essa veia do bom humor aflorada.
“Acho que, assim como eu, Vyni não é um humorista contador de piadas, mas uma pessoa de sacadas rápidas e que encara a vida da melhor forma possível, pensando sempre positivo, e isso é incrível”, observa. “Não o conheço pessoalmente, mas de cara gostei do jeito dele e me identifiquei bastante. O fato dele ser da mesma cidade que eu só reforça ainda mais a minha torcida”.
Apesar de não achar nosso humor único, Max percebe sermos particulares na forma como abordamos certos momentos do cotidiano. “O cearense em si, na maioria dos casos, leva a vida de forma leve e bem humorada. Acho que todos temos essa veia humorística em nós. Alguns desenvolvem e levam para algo mais profissional, e outros não”.
Sempre propenso a arrancar risadas das pessoas, Max faz teatro desde os 12 anos, e por muito tempo desenvolveu trabalhos mais voltados para o drama. O humor, contudo, despontou como modo de lidar com o meio, algo que o fez investir no segmento anos mais tarde.
Hoje, ele diz que realiza uma triagem das situações diárias para contá-las de um jeito mais bem humorado. “É sempre muito desafiador fazer as pessoas rirem, você nunca sabe o que aquilo vai causar nelas. Fazer humor é um eterno ‘pisar em ovos’. Eu me sinto bem com o que venho fazendo até agora. O que mais me motiva a continuar é o feedback que recebo de quem encontro. Muitos, por exemplo, se dizem curados de tratamentos e de depressão, e relatam que, quando estavam em momentos muito difíceis, meus vídeos os ajudaram”. Antes de escutar esse tipo de relato, o cratense não tinha noção do quanto a arte é importante e do tamanho do impacto que podemos exercer na vida do outro. Para ele, não existe humor que agrada a todos. Logo, na própria fórmula de criação de conteúdo, tenta sempre evitar temas sensíveis e enxergar o impacto das palavras antes de soltá-las nas redes sociais.
“Não sou perfeito e nem politicamente correto nas coisas que faço, porém é necessário entender que algumas coisas estão mudando para melhor e nós, como artistas, também temos que nos adaptar”. Quanto aos nomes consagrados no segmento, Petterson diz que cada um tem na carreira um diferencial, e que se inspira muito no que fizeram para seguir adiante com o próprio trabalho, sobretudo próximo às novas gerações.
“Acho que o maior legado que esses artistas nos deixaram até agora é esse: a coragem e a vontade de chegar onde queriam. Eu já tive a oportunidade de trabalhar algumas vezes com o Falcão e sou apaixonado por ele, pela forma como encara a vida. Isso para mim é algo muito inspirador, a leveza que ele tem e continua tendo ao longo desses anos todos, deixando o humor natural e orgânico”. Feito a graça cearense: leve, moleca, eterna.
Fonte: DN