“Não Olhe Para Cima”. Olhe para o lado
“O realismo capitalista brasileiro consegue ser tão aterrorizante quanto o novo filme da Netflix. Precisamos nos organizar, olhar para o lado e enfrentar, como ensina Mark Fisher e Ailton Krenak, a narrativa imobilizante do fim do mundo”, diz Mariana Bastos em artigo publicado pela Revista Jacobin.
Publicado 02/01/2022 08:00 | Editado 03/01/2022 04:38
“É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”
– Mark Fisher
Fiquei com essa frase na cabeça durante as longas 2h25min que gastei assistindo na Netflix a nova sensação do momento, o filme Não Olhe Para Cima, e sair com uma angústia horrorosa que tirou meu sono a noite. Não fui a única. Depois notei que no Twitter proliferam relatos de que o filme serviu de gatilho para crises de ansiedade em muita gente. Fiquei me perguntando exatamente onde estava a comédia. Não consegui rir de absolutamente nada. Até poderia ser cômico… se não fosse um espelho – glamouroso e suavizado – da nossa trágica realidade. Quão descolada da realidade ou privilegiada eu teria de ser para conseguir rir do desespero diante do negacionismo?
Fiquei pensando na montanha de dinheiro gasta para reunir um elenco estelar, para escrever um roteiro que parece meticulosamente produzido com o auxílio de Big Data e no fim das contas sairmos com uma profunda sensação de imobilismo, de apatia, de que não há absolutamente nada a ser feito diante da estupidez de uma minoria de bilionários e políticos poderosíssimos que nos conduzem ao apocalipse.
Fiquei pensando por que raios me dispus a assistir a um filme que se gaba de ser “baseado em eventos realmente possíveis”, quando a realidade denunciada nos telejornais de forma crua e bem menos glamourosa já nos ativa inúmeros gatilhos de desesperança, tristeza e angústia?
Foi então que me lembrei da crise de ansiedade bem similar que experimentei quando acompanhamos uma tenebrosa reunião ministerial conduzida no início da pandemia com Ricardo Salles falando em aproveitar a oportunidade para passar a boiada, Paulo Guedes reconhecendo a admiração por um ministro de Hitler e Bolsonaro demonstrando que sua prioridade não era enfrentar a pandemia, mas armar a população.
Ao lembrar disso, pensei que não há ficção que dê conta de retratar a gravidade do momento. Até os vilões do filme me parecem menos perversos do que os poderosos da nossa dura realidade. Por mais boa atriz que Meryll Streep seja, ela não conseguiu imprimir o terror diário imposto nos jornais por esses agentes do caos que são os líderes de extrema direita. As palavras da presidente ficcional são fichinha perto da perversidade que a gente tem que aguentar diariamente nas telas de TV e dos smartphones. (Aliás, é no mínimo curiosa a escolha do diretor por uma mulher na presidência, assim como ocorreu na série Years and Years. As mulheres também podem ser umas escrotas negacionistas e perversas, mas houve claras demonstrações de que as chefes de Estado conduziram seus países bem melhor do que seus pares masculinos durante a pandemia. E bem,todos os líderes eleitos de extrema direita no mundo são homens).
Até o bilionário do filme parece menos abjeto e imbecil do que o bilionário brasileiro, que autorizou o emprego de tratamentos comprovadamente ineficazes na própria mãe só para provar seu negacionismo – e vê-la falecer. É como se a realidade fosse uma caricatura da ficção. Eu deveria rir disso?
Até o cometa parece uma metáfora suavizada do fim do mundo. Se estivéssemos sob a ameaça de choque de algum cometa, haveria alguma justiça no fato de todos serem atingidos ao mesmo tempo, enquanto que no colapso ambiental quem enfrenta o fim do mundo primeiro é quem tem menos grana, vide as principais vitimas das enchentes no sul da Bahia. (Aliás, seria muito interessante comparar o engajamento proporcionado pelo filme nas redes sociais com o engajamento promovido pelos pedidos desesperados por socorro da população baiana, vítima direta da colapso ambiental que o filme diz denunciar).
Realismo capitalista brasileiro
Seria Hollywood capaz de empregar uma montanha de dinheiro similar em uma narrativa em que o poder popular se insurgisse coletivamente contra essa minoria que nos leva ao colapso e instituísse uma nova ordem política, social, ambiental e econômica mais justa que nos salvasse do cometa no filme e da crise climática na vida real? Provavelmente muitos dirão que não usando uma pretensa verossimilhança como argumento, justamente porque, com a nossa imaginação amputada pela mentalidade neoliberal, é muito mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.
É sobre isso que discorre Mark Fisher em seu livro Realismo Capitalista, escrito em 2009. O filósofo britânico usa esse termo para descrever um tipo de ideologia que propaga a sensação generalizada de que não apenas o capitalismo é o único sistema político-econômico viável, como também é impossível imaginar uma alternativa coerente a ele. Na obra, o filósofo britânico cunhou inclusive o termo “impotência reflexiva”, que serve bem para descrever a sensação de apatia coletiva retratada no filme diante de um apocalipse iminente. Trata-se de um fenômeno no qual as pessoas até reconhecem a incapacidade do capitalismo de lidar com os graves problemas sistêmicos que enfrentamos, mesmo assim são incapazes de imaginar mudanças drásticas, apostando apenas em reformar o sistema. Segundo Fisher, essa inação leva a uma profecia autorrealizável, assim como a uma deterioração da saúde mental.
No Brasil, um país que ao longo das últimas décadas tem sido colonizado pelo soft power de Hollywood, o realismo capitalista tem sido especialmente eficiente em criar um espantalho comunista que é evocado sempre que a direita e a extrema direita querem abocanhar o poder. Em recente pesquisa, o Datafolha perguntou sobre o medo da população em relação a uma fantasiosa ameaça comunista após a próxima eleição. 44% dos entrevistados disseram que temem que isso aconteça, mas eu duvido muito que, antes de serem questionados sobre isso, uma parcela grande tenha tido alguma reflexão mais profunda a esse respeito. Curiosamente, o mesmo instituto não se deu ao trabalho de perguntar se a população brasileira teme que o Estado seja amplamente dominado pela milícia, uma realidade bem mais palpável.
Capitalizando o anticapitalismo
Ainda de acordo com Fisher, o realismo capitalista capturou tanto o pensamento da população que a ideia de anticapitalismo não atua mais como antítese do capitalismo. Em vez disso, é propagado como forma de reforçá-lo. E isso é feito por meio da cultura de massa, que visa fornecer um meio seguro de consumo de ideias anticapitalistas sem realmente desafiar o sistema. Pensei muito nisso quando soube que Leonardo di Caprio e Jennifer Lawrence arremataram juntos a incrível bolada de US$ 55 milhões (R$ 310 milhões). Para se ter uma ideia, isso corresponde a 73% do orçamento empregado na produção do filme descontados os salários das superestrelas.
Muito provavelmente o filme arrebatará alguns Oscars. Na entrega da premiação, haverá discursos inflamados contra a emergência climática por parte de atores-diretores-produtores que chegarão de jatinhos particulares para o evento multimilionário. Nós compartilharemos seus discursos na esperança de que o andar de cima se sensibilize e promova mudanças. Enquanto isso, o sistema permanecerá intacto. E tal como agora na Bahia, tomada por enchentes, haverá algum fim do mundo ocorrendo em alguma parte do globo, fazendo vitimas sobretudo no Sul Global. Mas vamos estar entretidos demais na esperança de que o astro de Titanic com suas palavras bonitas consiga comover os bilionários e políticos das superpotências a reduzir drasticamente as emissões de carbono. Mas nem Di Caprio deve acreditar nisso. Senão, teria usado a bolada de 30 milhões que ganhou com o filme para investir numa fábrica de guilhotinas ou em movimentos revolucionários anticapitalistas né? Mas preferiu botar a grana numa nova mansão em Beverly Hills.
Muitos provavelmente argumentarão que o filme é importante para uma tomada de consciência coletiva. Mas eu me pergunto se, depois de enfrentarmos na pandemia uma realidade tão ou mais dura que a apresentada no filme, negacionistas podem vir a mudar de ideia. Alias, umas conversas em grupos bolsonaristas atestam que muitos inclusive estão gostando um bocado do filme pois sentem que seria o espelho de uma cultura antivacina que é negligenciada pela mídia mainstream. Veja você onde o delírio interpretativo chegou.
Acho curiosa também a escolha pelo título do filme ter sido “não olhe para cima’’, uma vez que havia uma contra-narrativa popular que advogava “olhe para cima’’. Só por essa escolha já dava para antecipar que o lado negacionista sairia vencedor na disputa.
Contra o fim do mundo
Eu aqui, tentando humildemente compartilhar o pouco que tenho com as vítimas das chuvas na Bahia, arrisco dizer que a saída para o colapso definitivamente não virá de quem fecha os olhos para a realidade, nem de quem só olha para o andar de cima buscando salvadores. Talvez a saída seja olhar para o lado, buscando ser solidários com quem enfrenta os fins do mundo todos os dias.
E quando eu olho para o lado, felizmente vejo gente como o Ailton Krenak, que ao longo dos últimos anos tem feito um esforço imenso para nos ajudar a imaginar novos mundos possíveis. Destaco abaixo, inclusive, um trecho de uma fala muito importante sua extraída do vídeo “Cartografias para adiar o fim do mundo” que merecia ter mais visibilidade do que esse filme besta.
“Nós não podemos nos render a essa narrativa de fim de mundo. Essa narrativa é para nos fazer desistir de nossos sonhos.”
Existem muitas formas de olhar para o lado, seja doando dinheiro para os atingidos pelas chuvas na Bahia ou para alguma iniciativa que ajude a alimentar a metade da populacao brasileira atingida pela inseguranca alimentar. Mas uma forma mais contundente de enfrentar o colapso é doar tempo para se organizar de forma coletiva. Todo tempo doado para a organização coletiva é um tempo roubado do capitalismo. Pense nisso.
Fonte: Portal da Revista Jacobin Brasil