Observatório faz retrospectiva sobre principais fatos climáticos
No ano em que eventos extremos se sucederam em ritmo alucinante, sociedade despertou, mas políticos seguem atrasados
Publicado 31/12/2021 16:00 | Editado 31/12/2021 14:39
Dois mil e vinte e um foi um ano no qual todas as previsões dos cientistas sobre os impactos do aquecimento global desfilaram num compacto aterrorizante diante dos olhos da humanidade. Num intervalo de poucos meses, vimos seca extrema no Brasil, incêndios no Mediterrâneo, calor de 50 graus no Canadá, um ano de chuva caindo em uma semana na China e enchentes devastadoras na porção mais rica do mundo. A cidade de Madri teve em janeiro sua maior nevasca e em agosto sua maior temperatura já medida. E isso porque foi ano de La Niña, quando em tese o planeta inteiro resfria.
Neste ano de extremos sucessivos, enfim perdemos o pudor de pendurar o guizo no pescoço do gato e dizer claramente: sim, a culpa é da crise do clima. Em agosto, o IPCC (o painel do clima da ONU) quantificou pela primeira vez a contribuição humana no aquecimento global verificado e concluiu que provavelmente 98% da elevação de temperatura se deve a atividades como a queima de combustíveis fósseis e o desmatamento.
O sistema político, adivinhe, não acompanhou o despertar da opinião pública. Os EUA estão com dificuldades em implementar o plano de Joe Biden de estímulo à energia renovável, a China está em crise energética e pouco disposta a fechar muitas usinas a carvão neste momento, a Índia não quer abrir mão de subsidiar combustíveis fósseis e o Brasil, governado por um ecocida, aumentou emissões por desmatamento em plena pandemia.
A COP26, que deveria ter sido o ápice de uma reviravolta no combate à emergência climática, empurrou a ambição para o ano que vem. Faltam 97 meses para cortarmos emissões de forma a cumprir as metas do Acordo de Paris. Aparentemente perderemos mais 12.
Leia abaixo a nossa seleção das principais notícias de clima do ano que termina. E Feliz 2022.
1 – O ano da atribuição
O fato climático mais importante de 2021 não foi um fato, mas uma mudança de percepção. A imprensa global enfim abandonou o velho dogma de que “não se deve atribuir eventos extremos individuais à crise do clima”.
Para sermos justos com os jornalistas, essa noção não foi criada por eles, e sim pelos climatologistas, extremamente cuidadosos com o que dizem. Isso mudou nos últimos anos, quando estudos em tempo real de atribuição, nos quais a “impressão digital” da atividade humana é detectada num evento individual, começaram a ficar mais frequentes e mais precisos.
Neste ano, o WWA (Grupo Mundial de Atribuição Meteorológica) publicou uma análise-relâmpago mostrando que a onda de calor que atingiu o Canadá em julho teria sido impossível sem o aquecimento global. Os cientistas que chefiam a rede, a alemã Friederike Otto e o holandês Gert van Odenborgh (morto neste ano), foram listados pela revista Time entre as cem personalidades do ano de 2021. Otto também entrou na lista dos dez principais cientistas do ano da Nature.
2 – Biden chega chegando, mas perde o gás
A posse de Joe Biden, em 20 de janeiro, foi uma catarse: ali estava o homem mais poderoso do mundo mencionando a crise do clima entre as quatro prioridades de sua administração, assinando no primeiro dia de trabalho o retorno dos EUA ao Acordo de Paris, suspendendo exploração de petróleo em terras federais, colocando na mesa uma meta de 50% de redução de emissões até 2030 e baixando um pacote trilionário de recuperação verde.
Biden e sua vice, Kamala Harris, chegaram dispostos a recuperar a liderança que os EUA perderam para a China e a Europa nessa agenda durante o governo Trump. Tal liderança será cada vez mais estratégica para a economia americana, que domina tecnologias de energia limpa. Em abril, o presidente realizou uma cúpula de líderes sobre o clima, na qual metas mais ambiciosas foram anunciadas por emissores importantes, como Coreia, Japão e Canadá.
Mas o bolo climático americano desandou no segundo semestre. Dois senadores democratas, Joe Manchin (Virgínia Ocidental) e Kristen Sinema (Arizona), bloquearam o pacote de recuperação econômica de Biden, dizendo que só o aprovarão se o plano de US$ 150 bilhões de transição energética limpa for retirado do pacote. Como Biden tem maioria instável no Senado, qualquer voto democrata contrário ao governo pode significar derrota, e o pacote de energia periga cair. O impasse continuava até o final do ano.
3 – IPCC soa as trombetas
Em 9 de agosto, o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) publicou a primeira parte de seu aguardado Sexto Relatório de Avaliação, o AR6, contendo o estado da arte do conhecimento humano sobre a base física da crise do clima. Foi o mais contundente dos alertas já feitos pelo painel em três décadas. O AR6 mostra não apenas que é “um fato estabelecido” que os humanos estão esquentando a Terra, como pela primeira vez quantifica sua contribuição: do 1,09oC que o planeta já aqueceu, 1,07oC – ou 98% – se deve provavelmente às atividades humanas. O IPCC também diz que o limite de temperatura do Acordo de Paris, 1,5oC de aquecimento em relação à era pré-industrial, será excedido em algum momento nos próximos 20 anos, e somente um cenário de emissões – radicalmente reduzidas – poderá reduzi-la abaixo disso no fim do século. O secretário-geral da ONU, António Guterres, chamou o trabalho de “alerta vermelho” para a humanidade. Em 2022, o painel publicará mais duas partes do relatório, tratando de adaptação e de mitigação da mudança climática.
4 – IEA decreta o fim dos fósseis (mas ninguém escuta)
A crise climática é tão feia que aliados surgem de onde a gente menos espera. Em 2021, um organismo multilateral criado nos anos 1970 para ajudar países ricos a obter petróleo completou sua metamorfose em evangelista do baixo carbono. Em maio deste ano, a IEA (Agência Internacional de Energia) publicou pela primeira vez um mapa do caminho sobre como zerar emissões líquidas de gases de efeito estufa até 2050, de forma a cumprir a meta do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento global em 1,5oC neste século. Esse cenário tornou-se a referência para todas as novas projeções da agência.
A conclusão mais arrepiante do relatório diz respeito aos combustíveis fósseis: segundo a agência, nenhum projeto novo de petróleo e carvão mineral poderá ser licenciado, em parte alguma do planeta, a partir de 2021, se quisermos cumprir a meta.
Os governos mundiais receberam e arquivaram o alerta da agência. Países como o Brasil não apenas estão leiloando novos blocos de petróleo, como também querem novas usinas a carvão. E, na COP26, em Glasgow, mudaram o texto da decisão em cima da hora para trocar “eliminação” por “redução” de subsídios a fósseis.
5 – Salles cai, enfim (mas não comemore)
Em 23 de junho, o abjeto ministro do Meio Ambiente de Jair Bolsonaro foi finalmente apeado do cargo que jamais deveria ter ocupado. Foi necessária uma operação da PF e uma busca e apreensão nos endereços do ministro, autorizada pelo Supremo, para Bolsonaro e Paulo Skaf entenderem que Ricardo Salles estava dando mais trabalho que alegria.
Salles foi alvo da Operação Akuanduba, em maio, que também levou ao afastamento da cúpula do Ibama, por suspeita de facilitação do contrabando de madeira. O ministro é investigado por nove crimes, incluindo corrupção e advocacia administrativa. Convenhamos, ele estava afrontoso: em maio, poucos dias depois de prometer mundos e fundos ao czar climático dos EUA, John Kerry (também conhecido como “Jim Carrey”), Salles correu para Santarém a fim de melar uma apreensão de madeira da PF. Atuando em favor de madeireiros, foi objeto de uma queixa-crime no Supremo, impetrada pelo delegado Alexandre Saraiva. Ao mesmo tempo, caminhava com outro delegado, Franco Perazzoni, uma investigação sobre uma mudança de normas sobre exportação de madeira que liberou milhares de cargas ilegais para os EUA e outros países. A possibilidade de ter um ministro preso fez Bolsonaro atirar Salles ao mar. Mas, se você acha que este foi o fim do boiadeiro da rua Honduras, achou errado.
Antes de cair, Salles conseguiu derrubar os dois delegados da PF que lhe fizeram mal: Saraiva foi removido da superintendência do Amazonas para o interior do Rio de Janeiro e Perazzoni foi rebaixado. Com a saída do ministério, o inquérito desceu do STF para a segunda instância e virtualmente parou enquanto o TRF decide se deve encaminhá-lo para a Justiça comum do Amazonas ou do Pará. O ex-ministro pegou também a boiada de indicar seu sucessor, o amigo ruralista Joaquim Leite. Com recall elevado na base mais fanatizada do bolsonarismo, Salles já afia a motosserra para voltar a Brasília em 2022 como deputado federal.
6 – O desmatamento recorde que Joaquim escondeu
Na hora ninguém entendeu por que o ministro Joaquim Leite parecia tão desconcertado quando jornalistas lhe perguntaram na COP26, em Glasgow, sobre o aumento dos alertas de desmatamento em outubro. Leite disse não conhecer o número e, em seguida, protagonizou um dos momentos mais constrangedores do Brasil em Glasgow ao silenciar por mais de um minuto e meio diante das perguntas da imprensa.
A razão do pânico ficaria clara apenas dias depois: Joaquim estava escondendo algo muito mais grave do que um número mensal de alertas. Poucos dias antes da COP, em 27 de outubro, o Inpe finalizara a estimativa oficial da taxa de desmatamento da Amazônia em 2021. O dado, de 13.235 km2, mostrava ser falsa a expectativa do general Hamilton Mourão de uma queda de 5% na devastação – na verdade, houve um aumento de 22%. O Palácio do Planalto, como revelou a Associated Press, decidira esconder a estimativa do Inpe até depois da COP. O governo mentiria deliberadamente para toda a comunidade internacional em Glasgow, e Joaquim Leite era o encarregado de sustentar a farsa na conferência, ao mesmo tempo em que prometia mundos e fundos sobre o clima. O governo decidiu divulgar o número apenas depois de uma denúncia feita pelo sindicato dos servidores do Inpe de que o dado estava pronto e vinha sendo ocultado.
O número do Prodes é o maior em 15 anos e comprova o que todo mundo já sabia: a destruição da floresta é um projeto do regime. Pelo menos Bolsonaro pode pedir música no Fantástico: é o primeiro presidente desde a redemocratização a ver três altas consecutivas do desmatamento em um mandato.
7 – Fogo grego
Como ocorre agora quase todos os anos, a bacia do Mediterrâneo foi atingida por uma onda de calor severa na segunda metade do verão boreal. Na segunda semana de agosto, uma estação meteorológica na Sicília registrou 48,8oC, a maior temperatura já medida na Europa. A Espanha (47,4oC) e a Turquia (49,1oC) bateram recordes nacionais. Na Tunísia as temperaturas ultrapassaram 50oC, e na vizinha Argélia 40 pessoas morreram em decorrência de incêndios florestais.
Especialmente dramáticos, embora menos letais, foram os fogos que consumiram o sul da Turquia e a Grécia. As imagens de pessoas resgatadas da ilha grega de Evia observando de um ferry boat o inferno ao seu redor correram o mundo como um alerta do futuro que virou presente.
8 – A nossa bandeira será vermelha
O Centro-Sul do Brasil viveu em 2021 sua pior seca desde que os registros começaram, 91 anos atrás. A bacia do Paraná foi especialmente afetada e, como grande parte das hidrelétricas do país fica naquela região, o resultado foi que faltou luz. O país só não viveu um apagão porque a atividade econômica despencou devido à pandemia (e à insistência de Jair Bolsonaro em prolongá-la). Por conta disso, o governo aumentou ainda mais a conta de luz do brasileiro, baixando a “bandeira de escassez hídrica”, uma bandeira ultra-vermelha. Para resolver o problema, o Ministério de Minas e Energia decepcionou, mas não surpreendeu: determinou o acionamento permanente de termelétricas fósseis (que ajudam a causar ainda mais seca ao agravar o aquecimento global) e ainda meteu 8 gigawatts de gás natural extra na matriz na MP que privatizou a Eletrobras.
9 – Chuva na Groenlândia
Localizado a 3.216 metros acima do nível do mar, o topo do manto de gelo da Groenlândia é monitorado permanentemente desde 1989, com a construção da estação americana Summit. Nenhum ser humano jamais testemunhou chuvas naquele local, cuja temperatura média é de 30 graus Cesius negativos. Em 14 de agosto deste ano, choveu na estação Summit pela primeira vez, durante várias horas. A chuva foi resultado de uma onda de calor que causou derretimento superficial de 872 mil quilômetros quadrados, mais de 40% do território da ilha.
10 – Neve em Madri
Parece que foi em outra era, mas em janeiro de 2021 a ensolarada capital da Espanha foi atingida pela pior nevasca de que se tem registro. A tempestade Filomena abateu-se sobre a Península Ibérica matando seis pessoas, e não causou estrago maior por causa da quarentena, que mantinha grande parte da população em casa. Sete meses depois, Madri viveria o extremo oposto: uma estação no aeroporto de Barajas registrou 42oC, o recorde histórico para a cidade. Escapes de ar gelado do Ártico vêm sendo recorrentes à medida que a Terra esquenta e que a redução do gradiente de temperatura entre as altas e médias latitudes enfraquece o cinturão de ventos que mantém o ar frio “aprisionado” em volta do polo Norte.
11 – Vancouver, 40 graus, Sibéria, 38 graus
Uma onda de calor bizarra varreu o oeste do Canadá e o leste dos Estados Unidos em junho e julho. A cidade de Lytton, na Colúmbia Britânica, registrou 49,6oC, batendo o recorde canadense de temperaturas por 4,6oC. Foi varrida por um incêndio no dia seguinte. Os subúrbios de Vancouver, maior cidade da região, registraram temperaturas na casa dos 45oC. Quase 550 pessoas morreram por causa do calor apenas naquela Província canadense. No Vale da Morte, na Califórnia, os termômetros registraram 54,4oC, igualando um dia de 2020 como a temperatura mais alta vista na Terra desde 1930. E isso porque este ano foi “apenas” o quinto ou o sétimo mais quente desde o início dos registros: uma La Niña, nome dado ao resfriamento cíclico das águas do oceano Pacífico, ajudou a evitar que as ondas de calor fossem ainda mais graves.
Em dezembro, a Organização Meteorológica Mundial também confirmou que os 38oC marcados em 2020 na cidade russa de Verkhoyansk foram o recorde histórico absoluto de calor no Ártico. A Sibéria neste ano pegou fogo – pelo terceiro ano seguido.
12 – Alemanha e China submergem
No mesmo verão alucinante que trouxe uma amostra condensada do clima futuro da Terra, enquanto o Mediterrâneo cozinhava o norte da Europa estava debaixo d’água. Em julho, o oeste da Alemanha e o leste da Bélgica receberam mais de 150 milímetros de chuva em poucos dias sobre uma região que já vinha de chuvas recentes. O resultado foi uma inundação grave que deixou mais de 200 mortos e centenas de desaparecidos nos dois países A “Klimakatastrophe”, como ficou conhecida a enchente, causou US$ 20 bilhões em prejuízos e tornou a crise climática o principal eixo da eleição alemã de 2021 e abriu caminho para a vitória dos social-democratas, liderados por Olaf Scholz, que tornou-se chanceler, em aliança com o Partido Verde.
Apenas dois dias depois do pico da tormenta na Alemanha, a província chinesa de Hunan foi atingida por um temporal de filme-catástrofe: na rebarba do tufão In-Fa, choveu em uma hora 202 milímetros (lembre-se: 150 millímetros na mesma semana causaram a tragédia alemã) na cidade de Zhengzhou. Em seis horas o local recebeu 382 milímetros de chuva e, em cinco dias, o equivalente a um ano inteiro de precipitação. A enchente deixou 302 mortos e quase US$ 18 bilhões em prejuízos.
13 – Brasil aumenta emissões em plena pandemia
A Covid-19 parou o mundo em 2020. Com as pessoas trancadas em casa, a economia despencou, o barril do petróleo atingiu valores negativos, a poluída Índia voltou a ver o Himalaia, permanentemente escondido pelo smog, e as tartarugas retornaram à Baía da Guanabara. O tombo econômico, claro, impactou as emissões de gases de efeito estufa: segundo o Global Carbon Project, as emissões globais caíram quase 7% no ano passado. Mas um país rompeu essa escrita.
Dados do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa), do Observatório do Clima, mostraram em outubro que o Brasil viu suas emissões saltarem 9,5% em pleno ano pandêmico: de 1,97 bilhão de toneladas de CO2 equivalente em 2019, elas chegaram a 2,16 bilhões de toneladas no ano passado.
Isso aconteceu porque os desmatadores da Amazônia e do Cerrado não fazem home office: as emissões por mudança de uso da terra saltaram 24%. Como 46% das emissões do país vêm de desmatamento, essa subida mais do que compensou a forte queda (de 4,5%) no setor de energia. O Brasil foi provavelmente o único grande poluidor do mundo a ter emissões na contramão da tendência global no primeiro ano da Covid.
14 – Promessas e dívidas de Glasgow
Primeiro encontro multilateral presencial desde o início da pandemia, a COP26, a conferência de Glasgow, começou no dia 31 de outubro com uma crise e muitas promessas. O encontro foi marcado pelo “Apartheid de vacinas”, a relação desigual de imunização entre os países ricos e os pobres, sobretudo da África, o que rendeu acusações de inequidade de acesso e falta de segurança. Mas Glasgow foi adiante, embalada pela promessa dos anfitriões britânicos de fazerem dela a “COP da ambição”, que marcaria a volta dos EUA à agenda climática, o fechamento do manual de operações do Acordo de Paris e um impulso nas metas nacionais capaz de manter vivo o objetivo de 1,5oC.
Glasgow teve sucesso em fechar o livro de regras, inclusive a encalacrada regulamentação dos mercados de carbono. Mas os EUA, em crise política interna, não brilharam, e foram cúmplices da China e da Índia na mudança do texto que evitou uma decisão firme sobre o fim dos combustíveis fósseis. Dois acordos potencialmente importantes – mas completamente voluntários – sobre florestas e emissão de metano foram assinados. E o aumento da ambição foi chutado lá para o final de 2022.
15 – Pedalada climática nos tribunais
Em 2020, o nada saudoso Ricardo Salles apresentou uma atualização da NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada) que realizava a proeza de regredir na ambição do Brasil no Acordo de Paris. Ao rever a base de cálculo da meta sem reajustar seus percentuais, o Brasil “pedalou”, como o OC vinha avisando desde 2016, dando a si mesmo passe livre para aumentar suas emissões em 400 milhões de toneladas em 2030 e mesmo assim cumprir a meta.
Em abril deste ano, numa ação inédita no país, seis jovens dos coletivos Engajamundo e Fridays For Future Brasil processaram o governo na Justiça Federal de São Paulo, exigindo que a nova NDC fosse anulada. Oito ex-ministros do Meio Ambiente assinaram uma carta apoiando a ação popular. Segundo eles, a nova proposta do governo brasileiro viola a cláusula de progressividade das metas do Acordo de Paris.
O processo dos jovens se insere num movimento crescente de litígio climático no Brasil, que faz parte de uma tendência global. No mundo inteiro, o Judiciário vem sendo cada vez mais acionado para exigir de governos e entes privados que cumpram metas ou reparem danos climáticos. Neste ano, o Observatório do Clima impetrou uma ação na Justiça do Amazonas exigindo que o governo apresente um Plano Nacional sobre Mudança do Clima compatível com a meta de Paris de 1,5oC – a juíza acolheu e convocou uma audiência de conciliação, mas o governo não quis conciliar. E um grupo internacional de advogados e cientistas chamado AllRise entregou uma manifestação ao Tribunal Penal Internacional, em Haia, argumentando que Jair Bolsonaro deve ser julgado na corte de Haia por crimes contra a humanidade devido ao dano climático causado pelo desmatamento adicional de 4,000 km2 por ano em seu governo – que acarreta emissões maiores que as de países europeus. Entre as assessoras científicas da iniciativa está Friederike Otto, a especialista em atribuição eleita uma das dez cientistas do ano.
16 – Ibama e madeireiros, ligações perigosas
Um ano e três meses após o presidente do Ibama, Eduardo Bim, e o ministro Ricardo Salles terem atuado em favor de madeireiros para liberar a exportação de madeira nativa sem vistoria, uma operação da Polícia Federal resultou, em maio, no afastamento de Bim e outros nove servidores do Ibama e do MMA, além da já citada busca e apreensão em endereços de Salles. A investigação desvendou o que todo mundo já sabia: que o governo Bolsonaro montou um escritório do crime nos órgãos ambientais para favorecer quem destrói o meio ambiente. Não foi por falta de aviso: Bolsonaro afirma desde a campanha eleitoral que seu objetivo é acabar com as multas ambientais, as Unidades de Conservação e as Terras Indígenas. Além de registrar o nível mais baixo de autos por crimes contra a flora das últimas duas décadas na Amazônia, o Ibama perdoou sanções aplicadas em outros governos e liberou cargas de madeira da maior fabricante de pisos do país, para dar só um exemplo. Bim foi o primeiro presidente do Instituto afastado do cargo sob acusação de ter atuado para favorecer criminosos ambientais. O afastamento durou 90 dias. Ele e outros acusados retomaram os postos em agosto, enquanto a investigação virava pizza.
17 – Arthur Lira e o Combo da Morte
A eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara dos Deputados, em fevereiro, confirmou todas as previsões macabras de quem acompanha as pautas ambientais no Congresso. O desmonte mudou de patamar. Enquanto em 2019 e 2020 as ações contra regulações ambientais ocorreram por meio de decretos, instruções normativas e ordens executivas (as infames “boiadas” de Ricardo Salles), neste ano os ataques vieram em forma de mudanças na legislação, o que é praticamente irreversível.
Turbinado pelo orçamento secreto (a compra de apoio político disfarçada de emenda parlamentar), Lira atropelou ritos e conseguiu aprovar em maio, com apoio do governo e sem participação da sociedade, uma nova lei que, na prática, acaba com o licenciamento ambiental. Menos de três meses depois foi aprovado projeto de lei que anistia a grilagem de terras no país.
O Combo da Morte de Lira e Bolsonaro inclui um projeto que libera o garimpo em terras indígenas e outro que acaba com a demarcação dessas áreas (o que já ocorreu de fato sob Bolsonaro).
Após pressão de grupos ambientalistas, os dois projetos aprovados na Câmara (licenciamento e grilagem) não foram votados em plenário no Senado, mas a discussão será retomada no ano eleitoral de 2022. Como prévia do que vem por aí, o Senado aprovou numa das últimas sessões antes do recesso de fim de ano um projeto que flexibiliza regras de proteção de margens de rios em áreas urbanas.
18 – Europa diz não ao desmatamento
Em dezembro, cinco redes de supermercados e uma fabricante de alimentos, todas da Europa, anunciaram um boicote à compra de carne brasileira. A decisão ocorreu após reportagens revelarem um esquema de “lavagem de gado” para dar aparência legal ao que é ilegal na Amazônia.
A pressão de compradores é parte de um movimento iniciado em 2006, com a chamada moratória da soja, quando o McDonald’s anunciou uma suspensão temporária da compra de soja brasileira por causa do desmatamento. As ameaças de boicote, porém, nem sempre têm resultados. Mas agora há a expectativa de que isso se torne finalmente uma obrigação legal, pelo menos na Europa. O último anúncio ocorreu em meio à discussão, pela União Europeia, de uma mudança na legislação para banir a entrada de produtos ligados ao desmatamento nos países do bloco. O governo brasileiro reagiu do modo habitual, afirmando que se trata de “protecionismo” europeu. Ou seja: vestindo a carapuça e defendendo o seu direito de desmatar.
19 – Corrida do ouro, massacre indígena
Além de não demarcar nenhuma terra indígena, o governo Bolsonaro promoveu uma corrida do ouro na Amazônia que resultou no massacre simbolizado pela morte de duas crianças yanomami sugadas por uma máquina de garimpo em um rio, em outubro. Com as promessas do governo de liberar a mineração em terras indígenas e as pressões para impedir a fiscalização nessas áreas, a mineração ilegal explodiu. As imagens de centenas de balsas perfiladas em busca de ouro no Rio Madeira correram o mundo no fim de novembro como símbolo do colapso. Os apelos de lideranças indígenas e as ordens do STF para que o governo retirasse invasores não tiveram resultado. Mais de 20 mil garimpeiros continuam operando livremente na terra yanomami. Em pelo menos duas ocasiões, aldeias foram atacadas a tiros. Além desses ataques, crianças sofrem com desnutrição porque o governo cortou atendimento médico às aldeias. Mais ao sul, entre os munduruku, no Pará, a pressão do garimpo causou uma guerra civil na etnia. Indígenas cooptados parssaram a agir com violência e ameaçar lideranças contrárias à atividade, como Maria Leusa Kabá, que teve sua casa incendiada. Em novembro, foi revelado que a Fundação Nacional do Índio (Funai), loteada entre ruralistas e missionários evangélicos no governo Bolsonaro, apoiou uma “conciliação” com invasores que poderá reduzir pela metade a terra indígena Apyterewa, no Pará, a segunda terra indígena mais desmatada do país.
20 – Nasce uma líder
Com a ausência do presidente Bolsonaro na COP26, em Glasgow, a única representante do Brasil a discursar na Cúpula de Líderes da conferência do clima foi a ativista e estudante de direito Walelasoetxeige “Txai” Suruí, de 24 anos. Depois do discurso histórico, aplaudido por líderes mundiais, ela foi intimidada pelo gerente de projetos da Secretaria de Clima e Relações Internacionais do Ministério do Meio Ambiente, Luiz Vicente Vicentin Aguilar. O servidor a abordou durante uma entrevista e afirmou que não era para “falar mal do Brasil”. Por conta do “tratamento tenebroso e inaceitável a povos indígenas”, o Brasil recebeu durante a conferência o antiprêmio “Fóssil da Semana”, concedido por uma rede de mais de 1.500 organizações ambientalistas. Depois de ser hostilizada pelo servidor bolsonarista, Txai passou a receber ataques racistas em suas redes sociais da gangue de seguidores do Presidente da República.
No discurso, ela lembrou do amigo de infância Ari, do povo Uru-Eu-Wau-Wau, assassinado com golpes na cabeça em abril de 2020. Ele atuava como guardião de seu território, em Rondônia, e até hoje o caso não foi solucionado pela polícia. O pai da estudante, o cacique Almir Suruí, sofreu tentativa de intimidação pela Funai por criticar Bolsonaro. “Nós temos ideias para adiar o fim do mundo”, discursou a ativista no palco da ONU.
21 – Vaza, soldado, cabeça de papel
Anunciada como panaceia após as grandes queimadas de 2019, a operação militar comandada pelo general Hamilton Mourão na Amazônia foi abortada em outubro deste ano, após mais um fracasso: o desmatamento subiu pelo terceiro ano consecutivo, atingindo a maior alta em 15 anos, apesar do gasto extra de R$ 550 milhões com a tropa. É isso mesmo: o governo torrou mais de meio bilhão para brincar de soldado na Amazônia, fingindo que combatia o desmatamento. Na verdade, com o Ibama e o ICMBio subordinados ao Exército, o que ocorreu foi o contrário. Militares impediram ações de fiscalização que poderiam desagradar ao chefe e até deram carona para garimpeiros. A queda histórica de multas e embargos na Amazônia ocorreu apesar do “reforço” de 3 mil militares na região.
Fonte: Observatório do Clima