BBC denuncia que mãe de criança de cinco anos está presa há 100 dias por furto de água
Defensores ouvidos pela agência de notícias britânica dizem que, nos últimos meses, tem aumentado o número de casos de furto famélico e de quantias ínfimas que chegam às instâncias superiores, como STJ e STF. O volume seria um reflexo do aumento da fome no país e do desemprego.
Publicado 17/11/2021 19:51 | Editado 17/11/2021 19:56
Uma diarista de 34 anos está há pouco mais de cem dias presa em uma penitenciária de Minas Gerais, sob acusação de ter furtado água, segundo relata a BBC News Brasil. Após duas negativas de instâncias inferiores, um pedido de habeas corpus chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada.
Maria (nome fictício*) foi presa na frente do filho de 5 anos, em julho, em uma casa de uma cidade no interior de Minas. Segundo a polícia, ela e o marido violaram o lacre da instalação de água do local onde a família vivia de favor.
A defensora Alessa Veiga soube do caso em outubro ao visitar a ala feminina de um presídio de Minas. “Ela me entregou um bilhete, dizendo que estava presa há três meses por furto de água e que seu filho tinha ficado com a irmã mais nova, que é adolescente e vive em outra cidade. A Justiça prendeu o pai e a mãe e não se preocupou com que aconteceria com o filho”, conta.
Para a defensora pública, que entrou com um pedido de habeas corpus no STF, o caso de Maria se enquadra no princípio de insignificância (quando o valor do objeto furtado é tão irrisório que não causa prejuízos à vítima, como no furto de comida, água, sucata e produtos de higiene pessoal).
“É um absurdo uma mãe ficar cem dias presa por furto de água, um crime não violento. Ela me disse que queria pagar a conta, mas não tinha dinheiro. É uma família muito pobre, usava a água para cozinhar para o filho, para beber, tomar banho… eles viviam de favor, em uma casa minúscula. Será que a prisão era a melhor solução para esse caso?”, diz a defensora.
Já o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, consideraram que Maria deve ser mantida presa por ser reincidente, por supostamente ter desacatado o policial no momento da prisão pelo furto de água, “cuspindo em seu rosto”, e porque não conseguiu provar ser a mãe da criança que carregava durante o episódio (leia mais abaixo).
“Os fatos já apurados e as circunstâncias dos crimes demonstram tanto a inaplicabilidade das medidas cautelares diversas da prisão, quanto o risco concreto à ordem pública, caso a autuada seja de pronto colocada em liberdade”, escreveu o desembargador Olindo Menezes, do TRF-1.
Reação à prisão
Segundo o Boletim de Ocorrência, por um mês a família usou a água disponibilizada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) sem pagar pelo consumo. Questionada pela BBC News Brasil, a Copasa não informou o total do prejuízo sofrido pela empresa nem qual seria o valor da conta que a família teria de pagar pelo mês que utilizou o serviço. O Boletim de Ocorrência também não informa esses dados.
Fotos da residência e da “gambiarra”, incluídas no processo, mostram que a água era retirada de um cano e redistribuída pela casa. Segundo o IBGE, em média, cada membro de uma família brasileira consome 116 litros de água por dia.
Em junho, dois agentes da Copasa visitaram a casa e constataram que a família tinha violado o hidrômetro da residência. Os funcionários lacraram a instalação novamente, interrompendo o fornecimento de água. Um mês depois, os fiscais retornaram e, segundo eles, o lacre havia sido rompido de novo. Eles contam que chamaram a Polícia Militar depois de terem sido xingados por João (nome fictício), servente de pedreiro e companheiro de Maria.
Em depoimento, Maria disse que voltava com o filho para casa quando encontrou uma viatura no local. Ela tentou fugir com a criança no colo quando soube que seria levada à delegacia por furto de água.
No BO, o funcionário da Copasa relatou a reação da diarista: “Exaltou-se, esboçou agressividade, proferiu palavras de baixo calão: ‘seus policiais de merda, seus vagabundos, vão procurar bandido'”. Ela teria tentado agredir e cuspir em um policial — acabou algemada e “colocada no xadrez” (compartimento traseiro da viatura). O filho assistiu à cena, ao lado.
Depois, na delegacia, Maria negou ter cuspido no policial ou tentado agredi-lo. Também afirmou que foi seu companheiro, João, quem rompeu o lacre no cano de água, porque a família não tinha como pagar a conta no momento. “Usava a água para cozinhar para meu filho”, disse.
“Foi uma reação espontânea e justificável de uma mãe muito pobre, que ficou desesperada ao ser presa por furto de água. Presa na frente do filho”, diz a defensora Alessa Veiga.
A diarista contou ter parado de estudar na quarta série do ensino fundamental. Ela diz ganhar entre R$ 50 e R$ 70 quando faz uma faxina.
O BO relata a versão dela: “Esclarece que só agiu assim pois o proprietário da casa, que tinha (anteriormente) deixado eles ficarem no imóvel, mandou cortar a água com eles no local. Além disso, esclarece que não poderiam ficar sem água, visto que têm uma criança de cinco anos”.
O servente de pedreiro João também foi preso em flagrante.
Em nota, a Copasa afirmou que a prisão do casal “não ocorreu por furto de água, mas sim devido ao comportamento agressivo dos moradores contra os empregados da companhia.”
“A companhia repudia qualquer ato de violência e orienta seus empregados que acionem a PM se ocorrer algum tipo de agressão, verbal ou física, durante realização de seus serviços”, diz a Copasa.
Princípio da insignificância
O Ministério Público de Minas Gerais pediu o relaxamento da prisão de João, alegando que o crime não era violento. Ele foi solto logo depois.
Já para a diarista o MP solicitou “prisão preventiva”, citando como agravantes o suposto desacato aos policiais, a “resistência à prisão” e reincidência.
A defensora pública entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Um dos argumentos é que o caso se encaixa no princípio de insignificância. A Justiça, porém, negou a soltura da diarista.
Desde 2004 existe um entendimento do STF que orienta juízes a desconsiderar processos em que o valor do furto é tão pequeno que não causa prejuízo à vítima do crime. Comida, água, sucata, produtos de higiene pessoal e ínfimas quantias em dinheiro, por exemplo, são considerados insignificantes. No entanto, o entendimento não é obrigatório e nem sempre é seguido pelos juízes.
Defensores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que, nos últimos meses, tem aumentado o número de casos de furto famélico e de quantias ínfimas que chegam às instâncias superiores, como STJ e STF. O volume seria um reflexo do aumento da fome no país e do desemprego.
Em 2020, cerca de 19 milhões de pessoas passavam fome no Brasil, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19. Em 2018, eram 10,3 milhões. Ou seja, em dois anos houve uma alta de 84,4% (ou quase 9 milhões de pessoas a mais).
Em junho, o ministro Sebastião Reis Júnior, do STJ, reclamou publicamente que instâncias inferiores não estão seguindo entendimentos jurídicos já pacificados pelo STF e pelo STJ, aumentando exponencialmente o volume de processos que chegam aos tribunais superiores.
A crítica foi feita durante o julgamento do habeas corpus de um homem acusado de furtar dois steaks de frango que valiam R$ 4.
“É um absurdo nós termos de julgar a insignificância de um furto de R$ 4. Não são só o Ministério Público e a advocacia que insistem em teses superadas, mas também os tribunais, que se recusam a aplicar nossos entendimentos. Não tem lógica isso. É uma brincadeira dizer que a política que estamos adotando no país e o comportamento de todos nós, os chamados atores do processo, estão diminuindo a criminalidade”, disse.
Em casos de insignificância, o juiz pode simplesmente arquivar o processo e não determinar nenhuma medida de punição. Ou ele pode impor medidas mais brandas a serem cumpridas em liberdade, como serviços comunitários, reeducação profissional ou tratamento e acompanhamento no SUS, caso a pessoa tenha problemas com drogas.
O ministro mostrou um levantamento com o número de ações criminais distribuídas ao STJ nos últimos anos.
Segundo ele, em 2017 foram 84.256 processos e, no ano passado, 124.276 — alta de 47%. Para este ano, ele projeta que serão 131.997 casos. O STJ tem duas turmas de cinco ministros para a área criminal — ou seja, cada um deles recebeu 12,4 mil ações só em 2020, em média.
Certidão de nascimento
No caso de Maria, o pedido de habeas corpus também mencionava o fato da diarista ter um filho de cinco anos. Em 2018, o STF decidiu que juízes podem substituir a prisão preventiva por domiciliar em processos envolvendo mães de crianças de até 12 anos.
Porém, tanto o Tribunal de Justiça de Minas Gerais quanto o TRF-1 consideraram que não ficou provado que Maria é mãe de uma criança, pois a certidão de nascimento do filho não estava anexada ao processo. “Não há nos autos comprovação idônea de que a acusada é mãe de uma criança menor de cinco anos, a não ser a palavra desta proferida”, escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1, ao negar o habeas corpus.
“Eles não consideraram que no próprio BO há o nome e os dados da criança, e os relatos das testemunhas e dos policiais citam que ela estava com o filho. Interessante notar que a Justiça só considerou o depoimento dos policiais quando eles disseram que ela os desacatou, mas não agiu da mesma forma quando eles mencionam o filho de cinco anos”, diz Alessa.
No novo pedido de habeas corpus, dessa vez ao STF, a defensora incluiu a certidão de nascimento da criança, documento ao qual ela só conseguiu ter acesso neste mês.
Reincidência
Outro argumento da Justiça para manter a prisão foi o fato de Maria ser reincidente. “E a de se frisar, ainda, a periculosidade concreta da flagranteada […] Tal reiteração ilícita é mais do que suficiente para evidenciar o risco à ordem pública. Logo, a prisão preventiva na espécie tem a essencial função de resguardar a ordem pública e a conveniência da regular instrução processual”, escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1.
Maria já foi condenada por roubo dez anos atrás, e cumpriu integralmente sua pena de cinco anos de prisão. Ou seja, embora não seja primária, não devia mais nada à Justiça.
Segundo defensores, a reincidência do réu é o principal argumento usado pelos magistrados para não aplicar o princípio da insignificância. Ou seja, para parte do Judiciário que acredita em endurecimento das penas como solução para o problema da criminalidade, a reincidência agrava a condição do réu e, por isso, a custódia normalmente é mantida.
No entanto, defensores públicos e alguns ministros do STJ e do STF, como Rosa Weber e Gilmar Mendes, costumam defender que a reincidência do réu não muda o fato de que o valor do furto é insignificante. Nos últimos meses, eles e também outros ministros têm usado esse argumento para soltar acusados de furtos de comida, além de pedir o arquivamento dos processos.
O pedido de habeas corpus de Maria será analisado pelo ministro Alexandre de Moraes. Ainda não há data para que isso aconteça.
*Os nomes das pessoas envolvidas nesta reportagem, além da localização dos acontecimentos, foram trocados a pedido da diarista.
Fonte: BBC News Brasil