Vida e morte na literatura: traço da realidade

A relação vida e morte constrói o enredo nas obras de Clarice, Graciliano e João Cabral, uma vez, que as condições em que se dá a vida de seus personagens é perpassada por uma travessia de degradação, negação e a busca iminente por um instante que dê sentido aos malogrados de uma existência de escassez

Fotomontagem feita com as fotos de: Ketut Subiyanto/Pexels; Eberhard Grossgasteiger/PExels

A morte faz parte da vida. Morte e vida são imbricações de uma mesma matéria. Ao vivermos, a única certeza da qual temos, é a de que a danada da morte um dia há de chegar. E se há morte, é porque houve vida. Se há vida, certamente haverá morte. Todos os dias tem gente que morre, todos os dias tem gente que nasce. É um enredo do qual não há como escapar. Esse intervalo entre as duas pontas seria o trajeto que dá sentido a não escolha do começo e a quase sempre, também não escolha do fim. Logo, tempo de vida é quase um pleonasmo. Esse intervalo, digo, esse tempo, seria a vida em si. Partindo da compreensão de que a vida é nada mais, nada menos, que o tempo de existência. Entretanto, a vida é mais do que isso, tem de ser mais do que isso.

A relação vida e morte constrói o enredo nas obras de Clarice, Graciliano e João Cabral, uma vez, que as condições em que se dá a vida de seus personagens é perpassada por uma travessia de degradação, negação e a busca iminente por um instante que dê sentido aos malogrados de uma existência de escassez. O determinismo social-geográfico de Graciliano nos apresenta em “Vidas Secas” personagens que sobrevivem em um contexto de pobreza social, econômica e cultural. Assim como “os severinos” de João, ambos partem na busca de novas possibilidades de existência. De sobrevivência.

Filme “Vidas Secas”, baseado na obra de Graciliano Ramos I Foto: Reprodução

A morte precoce. A morte naturalizada – perceba, não natural. A morte em vida. A morte como sombra. A morte como alternativa de uma vida sem vida. A morte como escapatória. A fuga da morte. Viver a vida entre a vida e a morte. A morte como um parto da vida. Todas estas são questões sobrepostas de uma vida de contradições e complexidades impostas.

Em um espaço de cerca de vinte anos, antes e durante a ditadura militar no Brasil, as três obras contextualizam um Brasil de grande fluxo migratório para os grandes centros urbanos. São entoadas críticas ao latifúndio, ao autoritarismo e as precariedades que a consolidação do regime ditatorial e do sistema capitalista impunha aos mais pobres. As limitações que infligem os personagens os colocam em uma situação de animalização e desprezo pela vida. Vide, a centralidade da personagem baleia na trama de Graciliano, e a dificuldade de comunicação do ser e sentir de Macabéa, Severino e Fabiano.

“Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim à outra molécula e começou a vida.” Assim inicia a narrativa que vai contar a história de Macabéa, uma abstração do narrador onipresente Rodrigo S.M. em “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector. Se a sucessão dos “sim ‘s” resultou na constituição da vida, como definir o sentido da então existência?

Filme “A Hora da Estrela”, baseado na obra de Clarice Lispector I Foto: Reprodução

“O viver ralo” de Macabéa figura o limbo de uma vida na qual não existe um sentido maior que não seja a manutenção precária da subsistência. Toda a sua trajetória é dada pela poupança do que lhe era minguado. “Vivia de si mesma, como se comesse as próprias entranhas”. O clímax de sua vida se dá na morte, quando é atropelada ao sair da cartomante. Pela primeira vez, Macabéa é protagonista de sua própria existência.

Em “Morte e Vida Severina”, o encontro com a morte na busca pela dignidade também é relatado:

“E esse povo lá de riba de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife,
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando,
cemitérios esperando.
Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.”

(NETO, João Cabral de Melo, Morte e Vida Severina; P. 50)

Filme “Morte e Vida Severina”, baseado na obra de João Cabral de Melo Neto I Foto: Memória Globo

Os marcadores sociais que moldam os sentidos no que consiste a experiência da vida humana estabelecida nas três narrativas, advém também da valoração dada à vida destes personagens. A incompletude do direito humano à vida em sua plenitude faz com que Macabéas, Severinos e Fabianos sigam em constante repetição de um mesmo roteiro com pontuais adaptações. A desumanização de parcelas da sociedade historicamente oprimidas, naturaliza a morte que não é natural. A chacina no morro do Jacarezinho no estado do Rio de Janeiro no início do ano, os casos de feminicídio, as mortes por Covid-19 devido ao esquema de corrupção que atrasou a vacina no Brasil e afetou sobretudo, os mais pobres e pessoas negras, e outros tantos exemplos, demonstram como estes marcadores socioespaciais, econômicos, de gênero e raça, por exemplo, permanecem antecipando a interrupção da vida incompleta de tantos severinos e macabéas. A ficcionalização da realidade na literatura serve para que possamos seguir questionando quais devem ser de fato os valores que balizam o sentido da vida, para que então a vida seja plena e a morte apenas o seu desfecho triunfal.

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