54 anos sem Che: a saga do corpo do guerrilheiro após sua morte
Locais da morte e do sepultamento de Guevara viraram atrações turísticas
Publicado 08/10/2021 18:59 | Editado 08/10/2021 19:22
A morte de Ernesto “Che” Guevara (1928–1967), um dos líderes da Revolução Cubana, completa 54 anos neste sábado (9). Capturado pelo exército boliviano em 8 de outubro de 1967, o guerrilheiro argentino naturalizado cubano foi executado um dia depois, com nove tiros à queima-roupa, na aldeia de La Higuera.
Aos 39 anos, encerrava-se a vida do homem que, ao lado de Fidel Castro, liderou a épica Revolução de 1959. Seu corpo foi levado ao Centro Médico Nuestra Señora de Malta, no vilarejo de Vallegrande, onde passou por exames e reconhecimento, até ser fotografado sobre uma laje de cimento da lavanderia hospitalar.
As imagens do cadáver de Che foram exibidas à comunidade internacional, correndo o mundo como uma espécie de “troféu” da Guerra Fria. Pertences do guerrilheiro – das roupas aos diários – também viraram notícia. O militar Félix Rodríguez, chefe da operação que levou à morte do guerrilheiro e futuro agente da CIA, reteve, por exemplo, o relógio de pulso de Che, passando a usá-lo e a ostentá-lo.
Em meio a isso, habitantes de Vallegrande já associavam a aparência do revolucionário morto à própria representação de Jesus Cristo. Num célebre ensaio, a escritora norte-americana Susan Sontag comparou as derradeiras fotos de Guevara à pintura renascentista O Cristo Deposto, de Andrea Mantegna. Antes de Sontag, o crítico britânico John Berger também tinha associado o Che morto ao Cristo Deposto – e também ao quadro A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt.
Se, por um lado, as autoridades bolivianas deram um involuntário, mas vigoroso estímulo à mitificação da imagem de Guevara, por outro trataram de desaparecer com seus restos mortais. As mãos de Che foram amputadas, enviadas a Argentina para identificação de impressão digital e depois levadas a Cuba, como uma prova definitiva do fim da jornada guevarista. Já o corpo foi transferido para um local não revelado.
“A ordem foi para desaparecer com os restos dele para que não houvesse um lugar de peregrinação”, disse à BBC, em 2017, o general aposentado Gary Prado. Com isso, a família de Che esperou quase 30 anos para saber onde, exatamente, estavam seus restos mortais.
Em 1995, o jornalista e escritor norte-americano Jon Lee Anderson – que fazia entrevistas e pesquisas para seu livro Che Guevara, uma Biografia – encontrou-se com o oficial boliviano Mario Vargas Salinas, um general da reserva que participou da captura de Guevara. De forma surpreendente, o militar revelou que o corpo de Che estava enterrado próximo a uma antiga pista de pouso de Vallegrande. Mesmo aposentado das Forças Armadas, Salinas sofreu represálias.
De todo modo, o “furo” de reportagem, publicado por Anderson no jornal The New York Times, deu origem a uma missão internacional de buscas no interior da Bolívia, com a participação de especialistas cubanos e argentinos. “No início, tudo foi muito complicado”, afirmou à agência Efe, em 2007, Jorge González Pérez, chefe da equipe cubana. “Até 31 de março de 1996, como ainda não havia um estudo histórico sério, tínhamos aberto mais de 200 valas. Então era cavar onde quer que as pessoas diziam que poderia estar.”
Na mesma reportagem, María del Carmen Ariet, outra integrante cubana da missão, lembrou a “tensão” da última etapa do rastreamento, que impôs uma “corrida contra o relógio”. Tudo porque Hugo Banzer, “o ditador boliviano”, se elegeu presidente – “o que representava um risco para a busca”. Banzer, uma vez no cargo, deu 48 horas para a missão encerrar os trabalhos.
Sem contar a ação de pessoas interessadas em impedir a localização do corpo de Che. “Exemplo disto foi a visita do agente da CIA de origem cubana Félix Rodríguez, que, diante da proximidade da descoberta, apareceu em um pequeno avião em Vallegrande para indicar que o enterro aconteceu em um local distinto de onde nós buscávamos.”
A um dia do fim do prazo imposto por Banzer, a missão foi bem-sucedida – para “alívio muito grande” de toda a equipe, segundo González Pérez. Os cubanos aceleraram a busca e, às 9 horas de 28 de junho de 1997, um sábado, descobriram duas valas comuns, com sete corpos. O de Che foi o segundo a ser encontrado. “Ao cavar a vala, o braço da escavadeira se prendeu ao cinto de Che, que tinha sido enterrado com seu uniforme. Assim foi encontrada a sua ossada”, lembrou o especialista.
A identidade do cadáver de Che foi confirmada dias depois, com base em diversos indícios – as mãos amputadas, a saliência dos arcos superciliares, a arcada dentária, o casaco verde-oliva com o qual ele fora morto, seu saco de tabaco para cachimbo e resíduos do gesso da máscara mortuária presos ao casaco. Nas palavras do Granma, jornal do Partido Comunista de Cuba, foi uma “verdadeira proeza da ciência”, marcada pela “integração exemplar entre a investigação histórica, a sociologia e outras ciências sociais”.
Com a descoberta, aconteceu justamente o que os militares bolivianos temiam: o povoado de Vallegrande virou ponto de peregrinação. A vala de Che foi coberta e protegida por uma espécie de capela, que hoje é a grande atração turística do vilarejo. As paredes do local exibem fotos de todas as épocas da vida do argentino-cubano.
A missão regressou a Cuba ao lado das ossadas, pousando em Havana em 12 de julho de 1997. Os restos mortais de Che Guevara e de seus companheiros “de armas” foram velados no Memorial de Santa Clara, a 300 quilômetros de Havana. Santa Clara foi a cidade onde Che comandou uma das mais importantes batalhas da Revolução Cubana.
O governo socialista ergueu no local o Complexo Escultórico Ernesto Che Guevara – um mausoléu onde os sete guerrilheiros foram sepultados, com honras militares, em 17 de outubro de 1997, pouco mais de três décadas após a execução de Che. Ao lado do túmulo, o guerrilheiro também foi homenageado com uma estátua de bronze de mais de 6 metros de altura e um museu, encerrando a saga do seu corpo.
O mausoléu recebe, a cada ano, quase 400 mil visitantes, principalmente turistas alemães, franceses, italianos, ingleses e argentinos, que se somam aos cubanos de diferentes províncias do país. Em dezembro de 2016, depois da morte de Fidel Castro, as cinzas do comandante-em-Chefe chegaram a repousar por uma noite no local.
Da Redação, com agências