O caso Bezos-Musk: nova era espacial ou captura do espaço pelos EUA?
EUA gostariam de converter o espaço em sua “fronteira final”, sob a premissa de que o espaço pertence a qualquer país que possa minerar suas riquezas
Publicado 28/08/2021 20:36
A corrida espacial certa vez foi travada entre dois países – a União Soviética e os Estados Unidos. Agora é (pelo menos na superfície) entre três bilionários – Elon Musk, Jeff Bezos e Richard Branson. Dois deles – Branson, fundador da Virgin Galactic, e Bezos, fundador da Blue Origin – viajaram recentemente nos voos suborbitais de suas respectivas empresas (o que significa que não podem ser considerados propriamente voos espaciais, pois não alcançaram uma órbita estável ao redor da Terra).
As ambições espaciais de Branson parecem estar limitadas ao desenvolvimento de um exótico mercado de turismo espacial. Elon Musk e sua empresa SpaceX se jogaram em uma jornada maior, com uma série de foguetes e lançamentos já realizados pela empresa, incluindo à Estação Espacial Internacional. Bezos e a Blue Origin também se enquadram neste último campo.
Por trás desse aparente show de crianças ricas brincando com seus foguetes espaciais caros, há forças maiores em jogo – a saber, o fato de que o grande capital está entrando no campo dos voos espaciais, até então domínio exclusivo dos Estados-nação. Embora pareça que três homens com bolsos fundos estão financiando seus próprios empreendimentos espaciais, a verdade é que são os contribuintes dos Estados Unidos que estão financiando esses esforços.
Nesta nova era espacial, os EUA estão também propondo passar por cima dos acordos espaciais que estabelecem o espaço como um “bem comum global”. Os EUA gostariam de converter o espaço em sua “fronteira final”, sob a premissa de que o espaço pertence a qualquer país que possa minerar suas riquezas.
Muitos estão convencidos de que os EUA foram os vencedores da corrida espacial contra a União Soviética, já que chegaram antes que os soviéticos na lua. Mas o que é esquecido nessa narrativa é que a competição espacial não se trata somente de quem enviou o primeiro homem à lua, mas também de quem construiu os melhores foguetes.
Estranhamente, foi a queda da União Soviética que trouxe à tona a informação de que a tecnologia de motores de foguetes desenvolvida pelos soviéticos havia superado consistentemente a dos americanos. Hoje, os motores de foguetes produzidos pelos russos – o RD-180 e o RD-181 – ainda fornecem energia para os foguetes estadunidenses. A linha de foguetes Atlas, que é o esteio dos veículos de lançamento de carga pesada dos EUA, usa motores RD-180. A Atlas é propriedade da United Launch Alliance (ULA), uma joint venture entre Lockheed Martin e Boeing.
Quando a Orbital Sciences (agora parte da empresa Northrop Grumman) estava procurando por veículos de lançamento para o seu programa Antares, eles usaram os motores de foguetes soviéticos NK-33, de 40 anos atrás. Depois que um deles explodiu devido a rachaduras nos antigos motores, a Antares trocou seus motores para outro modelo também projetado e produzido pelos russos, o RD-181.
Em 1992, quando os motores de foguetes russos estavam se tornando basilares para o programa espacial dos EUA, sanções foram impostas pelos norte-americanos contra a Organização de Pesquisa Espacial Indiana (ISRO) e a Glavkosmos da Rússia. A Glavkosmos era o braço de promoção da Rússia para a venda de motores de foguetes criogênicos e outras tecnologias.
Essas sanções só foram retiradas depois que a ISRO desenvolveu sua própria tecnologia de motores criogênicos. A contribuição da Rússia para o programa de foguetes da Índia foram os sete motores criogênicos vendidos para a ISRO, que eram parte dos foguetes N1, desenvolvidos para o estágio superior da missão lunar da União Soviética.
Por que os foguetes da era soviética eram superiores aos norte-americanos? Porque os soviéticos se tornaram mestres no que é conhecido como motores de foguete de ciclo fechado muito antes dos norte-americanos. Para que qualquer foguete seja capaz de realizar um voo espacial, é necessário tanto o combustível – por exemplo querosene, hidrogênio ou metano – quanto um meio de combustão, como o oxigênio.
Enquanto isso, em um motor de ciclo aberto – com o Saturn V do programa Apollo – uma parte do combustível não chega à câmara de combustão principal. Ele é usado para alimentar um turbo-compressor que bombeia combustível e oxigênio, que são descartados diretamente na atmosfera. Isso resulta em uma perda de eficiência para o motor, o que deve ser compensado com mais combustível.
Em um motor de ciclo fechado, ou no que é chamada de “combustão em estágios”, os produtos da primeira combustão que acionam o turbo-compressor são aproveitados na câmara de combustão principal, evitando qualquer perda de combustível. Os engenheiros soviéticos resolveram o problema dos materiais que precisavam suportar as condições extremamente adversas de injeção de produtos de combustão baseada em oxigênio na câmara de combustão principal.
Os engenheiros dos EUA acreditavam que isso não era possível e ficaram chocados quando, visitando a Rússia nos anos 90, viram os motores desativados do malfadado projeto N1, a tentativa soviética de chegar à lua. Esses foram os motores que a Orbital Sciences tentou usar no seu programa Antares, batizando-os de AJ-26, antes de mudarem para os motores russos mais avançados, os RD-181.
Após a crise da Ucrânia de 2014, os Estados Unidos impuseram sanções a muitas empresas russas. No entanto, eles continuam a usar motores de foguetes provenientes da Rússia para seus programas espaciais, tanto os civis quanto os militares.
Depois que o programa do ônibus espacial dos EUA foi encerrado em 2011, foi deixada para os foguetes russos Soyuz a tarefa de levar os astronautas norte-americanos à Estação Espacial Internacional e trazê-los de volta. Foi só após a SpaceX desenvolver seu ônibus espacial que os EUA voltaram a ter uma espaçonave para levar seus astronautas para a Estação Internacional.
O Congresso dos EUA decretou que as empresas norte-americanas terão de limitar os motores russos de seus lançamentos militares até o final de 2022. É aí que Bezos e Musk entram, já que ambos estão disputando os futuros lançamentos planejados pelo Exército dos EUA e a Nasa. Embora pareça que Musk e Bezos estejam desenvolvendo os foguetes com seu próprio dinheiro, ainda é a Nasa quem paga a conta. Ela faz o pagamento dos custos iniciais de desenvolvimento adiantado e, depois, paga o preço por lançamento.
Se os motores de foguetes são fundamentais para qualquer programa espacial sério, em que pé estão os EUA nessa nova era espacial? A United Launch Alliance (ULA) teve de trocar seus motores para os feitos nos EUA, de acordo com o novo requisito da Nasa. Ela escolheu o motor de foguete BE-4 da Blue Origin de Bezos, embora a ULA esteja supostamente descontente com os atrasos da Blue Origin e a falta de “atenção e prioridade” da companhia com o motor.
Os outros motores de foguete na disputa são da SpaceX de Musk. A Orbital Sciences ainda parece estar dependente dos motores russos para seus serviços de logística para a estação espacial. Portanto, os motores de foguete dos EUA parecem estar restritos aos motores BE-4 da Blue Origin e aos foguetes Falcon Heavy e motores Raptor da SpaceX. A corrida espacial americana é essencialmente uma corrida de dois cavalos, entre dois super-ricos bilionários.
Como Bezos e Musk financiam esses empreendimentos espaciais? O público crê que é com o dinheiro que os “visionários” bilionários ganharam como resultado de sua perspicácia para o empreendedorismo – eles representam uma versão dos “heróis” dos romances de Ayn Rand.
A verdade brutal é que Bezos, como capitalista, pressionou seus trabalhadores, aumentando tanto sua carga de trabalho que eles não podem nem mesmo fazer pausas para ir ao banheiro. A Amazon paga a seus trabalhadores salários que são “próximos da linha de pobreza para uma família de quatro pessoas” e precisam ser complementados pela previdência social. A empresa também destruiu o setor de pequeno varejo, e compete com seus próprios fornecedores com produtos da marca Amazon, “esmagando-os com precificação competitiva”.
Musk afirma ser o visionário por trás do Tesla, o carro elétrico do futuro. Já que as montadoras existentes demoraram para desenvolver carros elétricos, a Tesla tem a vantagem de ser a pioneira, lucrando com as regulamentações ambientais em vários países, que exigiam que as montadoras ganhassem créditos de carbono vendendo uma certa porcentagem de sua produção em carros elétricos. No primeiro trimestre de 2021, por exemplo, quase todos os lucros da Tesla vieram dos créditos de carbono que ela vende para outras montadoras.
Já que a Tesla só produz carros elétricos, ela tem um excedente de créditos de carbono, que vende para outras montadoras. O componente crucial para os carros elétricos são as baterias, que a Tesla terceiriza para outros. Um dos principais fornecedores de baterias para a Tesla é a Contemporary Amperex Technology Co. LTD. (CATL), que é a maior produtora de baterias de lítio no mundo. Seu dono, Zeng Yuqun, tem um patrimônio líquido superior ao de Jack Ma, do Alibaba. O que Musk tem é uma enorme presença nas mídias sociais, que ele aproveitou para divulgar seus empreendimentos automotivos e, agora, os espaciais.
O outro aspecto perturbador da nova era espacial inaugurada pelos bilionários espaciais é a captura espacial dos Estados Unidos para as suas companhias privadas. Isso viola o Tratado do Espaço Sideral. A posição dos EUA é de que, quer o espaço sideral seja ou não um bem comum global, a sua exploração comercial está à disposição de todos.
Essa é a mesma posição que os EUA tiveram sobre a mineração do fundo do mar em águas internacionais. Tal política privilegia os Estados poderosos e tecnologicamente avançados e é outra forma de bloquear a essência dos bens comuns globais.
Por trás dessa “moda” de uma nova era espacial está a realidade da captura do espaço. É isso que Bezos e Musk representam: uma nova era espacial na qual os bilionários podem deixar esse mundo que estão destruindo, na esperança de descobrir novas terras para conquistar e, de novo, destruir.
Fonte: Globetrotter | Tradução: Pedro Marin (Revista Opera)