Morre José Ramos Tinhorão, o marxista que revolucionou a crítica musical

Pesquisador escreveu mais de 25 livros e foi considerado a mais perfeita encarnação do temido crítico musical

O jornalista e escritor José Ramos Tinhorão, uma das principais referências em pesquisa, história e crítica da MPB (Música Popular Brasileira), morreu nesta terça-feira, aos 93 anos. A Editora 34, que publicou a maioria de seus livros, confirmou a notícia, sem informar a causa da morte. Ele esteve internado por dois meses devido a problemas de saúde causados pela idade avançada.

Com visão assumidamente marxista, Tinhorão é autor de livros clássicos, como História Social da Música Popular Brasileira, As Origens da Canção Urbana e A Música Popular no Romance Brasileiro. Ao longo de décadas, fez carreira em veículos como Diário Carioca, Jornal do Brasil, Última Hora, TV Excelsior, TV Globo, Rádio Nacional e Veja.

Rapidamente se consolidou como um dos principais teóricos da música popular brasileira e um repositório de histórias e documentos sobre o tema. Por muitos anos, foi considerado a mais perfeita encarnação do temido crítico musical.

Natural de Santos (SP), vivendo desde a infância no Rio de Janeiro, Tinhorão se formou em Direito e Jornalismo. Sua estreia na imprensa ocorreu na década de 1950. No Diário Carioca, devido a seu estilo polêmico, recebeu o apelido de Tinhorão, nome de uma planta venenosa, e começou a acrescentá-lo na assinatura de seus textos.

A imersão na pesquisa da música brasileira começou em 1960, quando foi convidado a escrever sobre samba em uma série do “Caderno B”, o célebre suplemento cultural do Jornal do Brasil. Lá, fez entrevistas com Ismael Silva, Donga, Pixinguinha e outros nomes relevantes da cena musical que ainda não tinham a história registrada.

Alguns desses artigos estão em Música Popular – Um Tema em Debate, seu primeiro livro, que foi lançado em 1966 com grande sucesso. A partir disso, ele começou a investigar outras manifestações da cultura popular e urbana do Brasil.

Ao todo, escreveu mais de 25 livros, como Os Sons que Vêm da Rua e O Samba Agora Vai – A Farsa da Música Popular no Exterior, uma das primeiras obras a projetar seu pensamento inquieto e provocador ao debate público. Publicou, ainda, ensaios sobre o fado e outras manifestações musicais portuguesas.

Tinhorão tinha um acervo gigantesco com dezenas de milhares de itens, incluindo 13 mil LPs (entre76, 78 e 33 rpm), 14 mil livros sobre cultura popular e mais de 35 mil documentos, como partituras, fotografias, filmes, jornais e revistas. O material, vendido ao Instituto Moreira Salles em 2001, mostra a evolução da música e da cultura urbana brasileira.

Polêmicas

Crítico de música sagaz, de visão marxista, ele produziu matérias e pesquisas que ajudam a entender e conceituar o que foi produzido nas últimas décadas. Os elogios a Karl Marx eram recorrentes. “Nos princípios e na forma de ver a realidade, ninguém bate o velho barbudo”, dizia o pesquisador. Era preciso, segundo Tinhorão, ver a história “de forma dialética”.

Por isso, o crítico batia de frente “com as coisas que são aceitas por comodidade e interesse”. Entre suas polêmicas, menosprezou a Bossa Nova e o Tropicalismo, acusando-os de serem movimentos de inspiração norte-americana, não de raiz brasileira.

“A Bossa Nova tem ritmo de goteira e é puro jazz pasteurizado”, afirmou ele em 2015, num debate na Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Para Tinhorão, o iê-iê-iê, um dos maiores fenômenos musicais do Brasil, não passava de “uma simplificação do rock – um rock trocado em miúdos para otário”.

O sertanejo tampouco foi poupado, notadamente seus cantores mais contemporâneos, que, de acordo com Tinhorão, trocaram o chapéu de caipira pelo de caubói. “A música sertaneja é uma média de sons que não são urbanos, mas que também não são mais das populações rurais em si. É um nada.”

Ao tratar da onda de funk no Brasil, manteve a verve. “Isso tudo é coisa de moleque de Nova York”, resumiu. “O funk não surgiu como necessidade de criação do povo brasileiro, mas como uma transposição. Ele pega elementos do maculelê e das cirandas? Ah, a bossa nova também incorporava coisas do samba tradicional.”

Não foram poucos seus desafetos ao longo da vida. Exagerado, referiu-se a Tom Jobim como “um coitado”, de quem dizia sentir pena. “Ele tinha um equívoco fundamental: achava que compunha música brasileira”, ironizou Tinhorão. Sobre Roberto Carlos, foi mais ferino: “No regime militar, ele era aquele menino que as mães até admitiriam como namorado das filhas”. Em Chico Buarque, apontou comodidade: “Me diz uma composição nova dele de 20 anos para cá”.

Sem crítica, sem música brasileira

Em entrevista concedida em 2015, Tinhorão atacou compositores e artistas. “Não tem mais música brasileira para criticar”, protestou. No fim da vida, mantinha-se irredutível em suas opiniões controversas. Ao fazer 90 anos, afirmou que era natural ser odiado por seu trabalho. “O artista tem uma sensibilidade muito à flor da pele e não gosta de ser criticado. Não importa que quem o critique tenha razão”, declarou.

No mesmo depoimento, sentenciou que a crítica cultural tinha acabado no Brasil: “Não existem críticos de música popular ou crítica sobre música popular. Existe o cara que dá notícia e louva conjuntos estrangeiros, que nunca vêm ao Brasil, mas que, quando vêm, ganham página inteira dos cadernos culturais”.

O velório e enterro de Tinhorão estão previstos para esta quarta-feira (4), no Cemitério dos Protestantes, em São Paulo. Seu conhecimento, porém, vai perdurar por muito tempo. “O pensamento do Tinhorão sobreviverá, ganhando espaço e importância à medida em que o conceito de identidade cultural brasileira for sendo revisto. Ele enxergava fundo”, diz Bia Paes Leme, coordenadora de música do Instituto Moreira Salles.

“Discordava um bocado dele, mas aprendi à beça com suas pesquisas”, tuitou hoje o jornalista e pesquisador musical Sérgio Augusto, autor de livros como Este Mundo É um Pandeiro e Cancioneiro Jobim. Segundo Sérgio, Tinhorão era um “extraordinário historiador da cultura popular, especialmente da música tradicional brasileira”.

O deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), cujo nome homenageia um dos grandes compositores da música braisleira, também usou as redes para lamentar a morte do crítico e pesquisador. “Que perda monumental”, escreveu Orlando. “Tinhorão era uma enciclopédia viva da música brasileira. Meus sentimentos aos familiares e amigos.”