Rebeca Andrade: “Precisamos de pessoas que possam ver nossos talentos e nos ajudar a crescer”
Ela conquistou a primeira medalha olímpica da ginástica feminina e foi a primeira brasileira com dois pódios em uma edição dos Jogos. Rebeca teve como exemplo Daiane dos Santos – e agora quer inspirar futuras gerações.
Publicado 02/08/2021 17:12 | Editado 02/08/2021 17:21
Jovem, negra e brilhante: Rebeca Andrade é o maior destaque brasileiro em Tóquio. A atleta de 22 anos foi a primeira ginasta da história do país a subir no pódio olímpico e a primeira brasileira a conquistar duas medalhas na mesma edição dos Jogos, prata no individual geral e ouro no salto.
Com os holofotes do mundo todo voltados para ela, Rebeca agradeceu à família e aos treinadores, e aproveitou para chamar atenção para a situação do esporte em seu país. Questionada sobre o sentimento de se tornar a primeira ginasta brasileira a ganhar uma medalha olímpica, ela afirmou: “É muito bom, porque tem muita gente como eu no Brasil.”
“Precisamos de ajuda, precisamos de pessoas que acreditem em nós. Precisamos de pessoas que possam ver nossos talentos e nos ajudar a crescer”, disse a ginasta.
E Rebeca, melhor do que ninguém, sabe a importância de uma rede de apoio. Sem a ajuda incondicional da família e o auxílio, inclusive financeiro, de professores e treinadores, dificilmente a carreira da jovem atleta teria decolado dos bairros humildes de Guarulhos para os pódios do Japão.
Durante a infância pobre, professores e família fizeram vaquinhas para arrecadar dinheiro para pagar a ida de Rebeca a competições e financiar suas roupas de apresentação.
“Essa medalha é de todo mundo”, disse a paulista após ganhar a prata na categoria individual geral, na última quinta-feira.
Rebeca se referia a todos os brasileiros, mas especialmente a alguns que ela fez questão de citar. Dois deles fundamentais: o irmão Emerson e a mãe Rosa. Logo após a prata, ao vivo na televisão, Rebeca reclamou aos risos que a mãe, sua grande incentivadora, não tinha atendido à sua ligação.
No começo dos anos 2000, separada do pai dos cinco primeiros de seus oito filhos, Rosa trabalhou como doméstica para sustentar a família sozinha, até se casar com o atual marido. Sempre com dificuldades financeiras, a família se mudou várias vezes durante a infância de Rebeca, a caçula do primeiro casamento de Rosa.
Quando a menina tinha quatro anos, foi levada pela tia para fazer um teste no ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos, no qual havia começado a trabalhar e onde havia um projeto social para jovens ginastas.
De cara, Mônica Barroso dos Anjos, técnica da equipe de ginástica de Guarulhos e árbitra internacional, viu o potencial da menina e, em pouco tempo, ela já estava em competições.
“A Rebeca chegou com a tia no ginásio, toda tímida. Quando pedi para ela fazer um movimento, logo vi um talento incrível, que precisava ser lapidado”, lembrou recentemente Mônica, que foi sua primeira professora.
Sacrifícios da família
Confiante no talento da caçula e com o apoio dos outros filhos, Rosa passou então a ir trabalhar a pé para que o dinheiro da condução fosse usado pelo irmão Emerson para levar Rebeca aos treinos.
Depois, quando já não era possível nem contar com o dinheiro do transporte público, Emerson, então com 13 anos, passou a levar Rebeca a pé aos treinos, em uma caminhada de duas horas até o ginásio.
Saíam de casa por volta das 5h da manhã – e Rebeca muitas vezes já chegava exausta para o treino. Comia lá mesmo e, depois, era deixada pelo irmão na escola. Só então Emerson partia para suas aulas, muitas vezes sem se alimentar por falta de tempo, contou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo.
Pouco tempo depois, Emerson trocou latinhas por uma velha bicicleta e, aos poucos, foi arrumando o veículo para levar a irmã caçula aos treinos.
A família enfrentou o preconceito de vizinhos, que não acreditavam que uma mãe solo poderia “criar bem” cinco filhos. À Folha, Emerson contou que chegou a ver amigos apanharem por andarem com ele, descrito como um “negrinho”.
Aos 9 anos, a convite do técnico Francisco, que ela considera um pai, Rebeca saiu de casa e foi treinar por um ano em Curitiba.
“Muitos me criticaram na época, porque logo aos 9 anos ela [Rebeca] foi morar fora, foi se dedicar aos treinos”, disse Rosa em entrevista ao portal UOL.
Em seguida, ingressou no clube do Flamengo, no Rio de Janeiro, quando seu sonho de alcançar os pódios do mundo foi se concretizando. Com seus primeiros sucessos, comprou um novo apartamento para a família.
Francisco, que acompanha Rebeca desde 2006, esteve com ela em Tóquio. Após o ouro no salto, a atleta prestou homenagens ao treinador.
“Você é o meu orgulho, você é o melhor de todos e você me ajudou fazer acontecer! Obrigada por sempre acreditar em mim! Nós somos campeões olímpicos! Deus é bom o tempo todo, e o trabalho duro tá aí! Obrigada a todos pela torcida, orações e tudo mesmo!”, escreveu a ginasta no Instagram, acompanhada de uma foto dos dois.
Para treinar em Curitiba, ginasta saiu de casa aos 9 anos
Daianinha de Guarulhos
Ainda muito nova, o talento de Rebeca ficou claro e ela recebeu o apelido carinhoso de “Daianinha de Garulhos”, em referência a Daiane dos Santos, que brilhava à época ao som de Brasileirinho e conquistava o primeiro título mundial da ginástica artística para o Brasil.
Daiane, como Rebeca, é negra e de família humilde – foi descoberta somente aos 11 anos por uma professora de ginástica enquanto brincava em uma pracinha de Porto Alegre.
Cinco anos depois, Daiane conquistou duas medalhas nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg. Em 2003, mesmo ano em que ganhou bronze por equipes nos Pan-Americanos de Santo Domingo, escreveu o nome na história como a primeira brasileira a conquistar uma medalha de ouro no Mundial de Ginástica, disputado na Califórnia.
No auge da carreira, criou o “duplo twist carpado”, movimento que passou a levar o seu nome: Dos Santos. A medalha olímpica escapou por pouco em Atenas, em 2004, mas a redenção veio com o pódio de Rebeca, na semana passada, para quem abriu caminho e serviu de modelo.
“A primeira medalha [da ginástica feminina] do Brasil em um Mundial foi negra, e a primeira medalha olímpica é negra. Isso é muito forte. Durante muito tempo as pessoas diziam que não poderia ter uma ginasta negra. Que as pessoas negras não poderiam praticar certos esportes. E a gente vê hoje a primeira medalha para uma menina negra. Tem uma representatividade muito grande atrás de tudo isso”, emocionou-se Daiane, ao vivo na TV Globo, logo após a prata de Rebeca.
Caminhos cruzados
Mas o caminho das duas se cruzou muito antes. Um vídeo antigo viralizou nas redes sociais na semana passada: uma reportagem de TV de 11 anos atrás mostra Daiane dos Santos passando um dia com jovens talentos no ginásio Bonifácio Cardoso, em Guarulhos. Rebeca é uma das meninas.
“Às vezes eu não estava conseguindo fazer alguma coisa e elas estavam me ensinando”, diz uma sorridente Rebeca ao se referir a Daiane e a Lais Souza.
Em outro vídeo, de 2009, em entrevista à afiliada da TV Globo no Paraná, Rebeca já externava sua admiração por Daiane: “Quando ela entrou, ela entrou tarde, e ela conseguiu fazer tudo que ela sabe. Então se eu entrei mais cedo, posso fazer tudo que ela faz”, disse à repórter.
E, assim como Rebeca teve Daiane como inspiração, ela quer inspirar outras. “É importante que as pessoas possam escolher o que desejam fazer. É importante que as pessoas acreditem em talentos”, afirmou.
Rebeca disse que sempre considerou sua história como “um processo de melhoria”, porque passou “por coisas muito difíceis”. “Eu não cheguei aqui sozinha, tive muitas pessoas me ajudando e muita ajuda espiritual de Deus”, completou.
Funk no solo
Depois de já ter o nome consolidado, a resiliência de Rebeca para superar os obstáculos mais difíceis seria testada da maneira mais estafante, não uma nem duas, mas três vezes nos primeiros anos de competições profissionais.
Porém, nem mesmo as cirurgias do ligamento cruzado anterior do joelho direito em 2015, 2017 e 2019 foram suficientes para extinguir a chama olímpica que ardia dentro dela. Ela desanimou e até pensou em desistir, mas aquela rede de apoio foi mais uma vez fundamental, incentivando-a a seguir adiante.
Já conhecida e classificada para os Jogos Olímpicos depois de se recuperar da terceira cirurgia, Rebeca não esqueceu a origem humilde: sua coreografia no solo, que ajudou a garantir a prata no individual geral, foi ao som do funk Baile de favela, de MC João.
“Eu sou negra e vou representar preto, branco, marrom, todas as cores, verde, amarelo. O esporte tem que representar a todos. As pessoas te admiram, querem ser você, como você”, disse.
“Então você faz o seu melhor por você e pelos outros. E acredito que fiz isso hoje, trazendo minha música para cá”, afirmou a atleta que, nesta segunda-feira (02/08), ficou em quinto lugar na final do solo, mas volta para casa com duas medalhas históricas na mala.
Fonte: DW