Cuba: algumas premissas para um debate

Na profusão de projeções nos quais alguns meios de comunicação, articulistas e analistas, são mais escancaradamente grossos e outros mais requintados – e diz um amigo que estes são os mais perigosos e atrasados, e não os primeiros – a vitalidade e perspectivas de uma estrutura social não são analisadas a partir do lugar que ocupa, ou do papel que cumpre, dentro da crise geral do sistema imperante e globalmente dominantes.

Comumente a primeira visão da pessoa que procura se informar sobre os acontecimentos em Cuba provêm das matérias jornalísticas. Entretanto, aprendemos que o jornalismo não reflete a realidade, senão que também ajuda a construi-la. Daí que deva ser prestada atenção aos tempos da reportagem e a sua linguagem. A funcional sutileza na forma de comunicar alguns fatos por parte dos chamados grandes meios de comunicação nem sempre acompanha a pretendida “objetividade”, especialmente quando a notícia caracteriza a situação de sociedades ou Estados que fogem da ótica e execução das propostas e opções econômicas e políticas predominantes, que de tão enraizadas no quotidiano foram naturalizadas. Quem se atreve ao diferente não banal, senão fundamental, para muitos é estranho, exótico, inviável, fora de moda ou extremadamente ousado como para dar certo.  Isso faz parte da concretização da ideologia dominante e é perfeitamente explicável. Althusser, dentre outros, detalhava já faz um bom tempo as tarefas dos aparelhos ideológicos do Estado, que servem exatamente para nos dizer, todos os dias, que esta é a única opção possível, que em nosso meio, é a opção que impõe a força do capital.  

Eu leio e tento compreender reações de amigos e conhecidos quando captam algumas dessas mensagens que são veiculadas todos os dias em relação a Cuba. Por exemplo, o espaço de contato entre o narrador e o leitor parte da expressão disseminada e projetada do “regime de Cuba”. No imaginário é cravada a ideia de “ditadura”. Quem diz para mencionar os atuais governos de Brasil e Colômbia: o “regime brasileiro” ou o “regime colombiano”? por mais mortos ou desaparecidos ocasionadas pelas forças do Estado colombiano, de onde o Ivan Duque é chefe, a pessoa continua sendo o Sr. Presidente. Regime é palavra dura; manter alguém sob um certo regime implica algo de força, de autoridade ou de autoritarismo. Fazer regime não parece nada bom. Algo parecido encontramos também quando se mencionam as “seis décadas de comando do país pelos irmãos Castro”, que dá a impressão de família no poder, de sucessão antidemocrática, de domínio despótico arquitetado na conversa de poucos, entre amigos e comparsas. Na imagem vêm à cabeça os primeiros episódios de Missão Impossível, o seriado de tempos de guerra fria que caricaturizava os ditadores caribenhos, de bigodes compridos, olhos pequenos e incisivos e sempre fardados.

Ao contrário do que ocorre em Cuba, protestos são duramente reprimidos na Colômbia

Nessa profusão de projeções nos quais alguns meios, articulistas e analistas, são mais escancaradamente grossos e outros mais requintados – e diz um amigo que estes são os mais perigosos e atrasados, e não os primeiros – a vitalidade e perspectivas de uma estrutura social não são analisadas a partir do lugar que ocupa, ou do papel que cumpre, dentro da crise geral do sistema imperante e globalmente dominantes. No caso, as consequências e a ação de um país como Cuba dentro desse contexto. O resultado é que se terminam emitindo juízos e sustentando veredictos despojados de argumentos, regularmente precoces e carentes de responsabilidade. O “modelo cubano”, que ousa desafiar a tirania do mercado e dos grandes grupos econômicos internacionais – como o faz empreendendo os caminhos de criar suas próprias vacinas, por sua conta e risco – estaria caminho a desaparecer por “antinatural” porque o natural é o predomínio do grande capital. Na ótica simplificada as causas do protesto social seriam bem claras: desabastecimento, demandas por direitos políticos e liberdade de expressão. Haveriam mais de 450 detidos, segundo organizações de direitos humanos e ainda Cuba estaria no pico da pandemia com 1.843 mortes e 275 mil casos de Covid.

Um respeitável setor da academia que reflete sobre a situação de Cuba aborda o país como objeto de pesquisa, procurando um distanciamento que o manteria no plano da neutralidade científica. Para alguns ciência e política não podem ir juntas porque posicionamentos políticos tenderiam a ser juízos de conveniência em oportunidade, longe das conclusões científicas. Assim, por exemplo, se realiza uma avaliação da situação de Cuba e no último parágrafo se menciona, então, como algo a não ser esquecido, o bloqueio econômico que padece a sociedade cubana. Veja-se que, por esta via, o bloqueio deixa de ser algo determinante e condicionante das opções econômicas, políticas e de funcionamento das relações sociais e passa a ser algo secundário, a ser levado em conta, mas que não explica tudo porque, ao final, mesmo com bloqueio, a sociedade deveria funcionar diferente. 

Não pretendemos, nem é possível reduzir todas as dificuldades ao bloqueio, mas este elemento está longe de ser secundário. O bloqueio não é apenas econômico, o que já seria algo a ser analisado com cautela, especialmente em tempos de pandemia, senão que suas dimensões são políticas, militares, culturais e, logicamente, interferem nas interpretações e subjetividades, é dizer, interferem diretamente no estado de ânimo das pessoas, em seus objetivos e projetos de vida.

Voltando às vacinas e à pandemia, o tema mais relevante e divisor de águas de nosso tempo, vale a pena, nesse sentido, fazer um paralelo entre o comportamento do sistema social e de saúde cubano e o de outros países da América Latina nos quais ser contagiado pelo Covid é uma tragedia física, mas também econômica e uma sentença de morte. Ou um paralelo, por exemplo, entre as expectativas da protesta em Cuba e a resposta de seu governo e o grau de força dos recentes estouros na Colômbia e a atuação do governo de Iván Duque. As cifras de desaparecidos, assassinados, violentados e violentadas pela força pública no país andino ainda estão sendo contadas pelos funcionários da Comissão Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, de Human Rights Watch e de outras missões internacionais. Mas, já sabemos que são mais de 1.260 pessoas vitimizadas, entre estudantes, lideranças sociais, defensores de direitos humanos.  

E como essa há várias indagações e paralelos que merecem ser colocados no tapete e, desde logo, questões que devem ser argumentadas e resolvidas para fugir da superficialidade e de slogans batidos, como a tradicional, “Há necessidade de um novo rumo…estamos com a Revolução, mas temos que ser críticos com o que está mal… há motivos legítimos para a protesta”. Oras, ninguém nega a necessidade da crítica, mas apontar e procurar soluções é outra coisa e claro que sempre poderá haverá descontentamento porque nenhum processo humano está isento de falhas, leves ou graves.

Por isso há que ir ao fundamental que é o desenvolvimento e melhora de uma Revolução solidificada ao longo do tempo. Coloquemos uma questão de início: como um país, com severas restrições econômicas, conseguiu enfrentar e posicionar-se no cenário político do mundo, dando amostras de solidariedade a outros povos, resistindo a exercícios diplomáticos de grandes potências que forçavam seu retorno à cobertura de um sistema fundado no mercado e suportando agressões diretas da maior potência militar desde o final da Segunda Guerra? Em contraste, qual tem sido o papel de governos de outros Estados do continente em termos de soberania, desenvolvimento e garantias sociais como educação e saúde?

Há quem esquece das premissas científicas para responder estas questões. Premissas que modestamente acho vale a pena lembrar, sem a intenção de doutrinar ou que sejam acabadas ou indiscutíveis, mas que me parecem perfeitamente defensáveis e importantes no debate. 1) a Revolução praticamente nasceu bloqueada, avançou bloqueada e continua e bloqueada apesar das votações da ONU e das exigências políticas e do Direito Internacional, Não é possível fazer nenhuma análise sem ter este elemento em perspectiva, mas não como ponto final, senão como ponto de partida, pela razões que esboçamos linhas atrás; 2) A Revolução não constitui somente um fato histórico, senão um processo histórico e  nenhum homem ou nenhum grupo de homens pode gerar uma mudança de sistema político-econômico se houvesse uma prática conspirativa permanente ou sem apoio popular. Foi precisamente o respaldo popular aquilo que permitiu a Cuba resistir e avançar a conquistas significativas em vários campos, como o a efetividade dos direitos que nem a modernidade tardia nem a chama pós-modernidade trouxeram por estas bandas; 3), É completamente descabido fazer girar o debate em torno à aplicabilidade do “modelo cubano” em outras realidades. O que é perfeitamente possível é comparar a realidade cubana com a realidade social de outros países da América Latina, e observar as condições em que se desenvolve cada opção de governo e economia e ao final comparar. Por isso frases soltas ou de advertência sobre governos que importariam o “modelo cubano” não passam de idiotices sem sentido, como quando se pretende advertir que escolhendo ou optando por candidatos ou programas antineoliberais o país “vai virar uma Cuba”. A ignorância costuma ser ousada em alguns casos. 4) Os cubanos nunca tiveram medo de reconhecer seus erros ou retificar, pelo contrário, fizeram autocríticas e renovaram processos quando teimosamente outros países, mesmo com o fracassado neoliberalismo continuaram nesse caminho, empobrecendo seus povos, privatizando e entregando recursos. Governos para sociedades empobrecidas que seguiram à risca os ajustes estruturais do consenso de Washington, por exemplo, nunca retificaram, senão que as classes dominantes trabalharam para obstaculizar as opções progressistas e populares que inevitavelmente apareceram no contexto e restaurar governos pusilânimes ou cúmplices ante a estrutura hegemônica de poder internacional; 5) a Revolução democratizou a vida nacional não apenas porque criou mecanismos deliberativos ou participativos, mas também porque democratizou a estrutura de poder que está detrás de todo sistema político. Zagrebelsky ensina isso em seu Direito Ductil com bastante propriedade.

O prestígio de Cuba está mais que demonstrado pela admiração que desperta e até pelo fato de que o mundo está a falar dela. Porque suscita inquietações, por uma simbologia nunca esquecida, que mantem viva a ideia de outra forma de conceber o mundo, mas, especialmente porque é um ponto desafiador que o grande capital nunca aturou. Isso não é pouco e nunca será na análise da realidade desde a metade do século XX até os nossos dias.  

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