O Chile de todas as vozes
E a principal delas, nesse quadro pluricultural da nova Carta Magna, é a da professora mapuche Elisa Loncón, eleita presidente da Constituinte
Publicado 08/07/2021 22:38
No último dia 4, o Chile viveu um momento histórico: depois de conviver por décadas sob a égide de uma Constituição engendrada nos porões truculentos da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), foi empossada uma Assembleia Constituinte que terá a função de escrever uma nova Carta Magna para o país. Por si só, essa assembleia também já traz contornos históricos, pois é formada por 77 mulheres e 78 homens – uma paridade nunca vista na história eleitoral chilena. Mas a História se faz de vários capítulos, e estes são apenas alguns desse momento que certamente ficará marcado nos livros. Porque havia mais naquele dia domingueiro de Santiago. Para presidir a Assembleia Constituinte, foi escolhida com 96 votos uma mulher, que caminhou entre os olhares atentos dos constituintes para tomar assento na cadeira de onde comandará por nove meses – prorrogáveis por mais três – os trabalhos para se criar uma nova Constituição. Mas, para além da liturgia que aquele momento inspirava para a ocupação do cargo, a presidente Elisa Loncón vestia roupas típicas e levava na mão uma bandeira. Não aquela com a estrela solitária sobre fundo azul e com as barras branca e vermelha que representam o pavilhão nacional chileno. Roupas e bandeira representavam, sim, a etnia mapuche, um dos principais povos originários do país andino. E isso quer dizer muita coisa: pela primeira vez, uma representante indígena chegava tão alto na hierarquia política chilena, na esteira de uma eleição para a Constituinte que relegou a um segundo plano os partidos tradicionais – principalmente os de direita, apoiadores do presidente Sebastián Piñera – e trouxe para o foco principal uma pluralidade de vozes e representação nunca vista antes por aquelas terras para além da Cordilheira dos Andes. Mas que traduzem, mais do que nunca, o que o professor da Universidade do Chile Marco Moreno chamou de “Chile real”. E Elisa Loncón agora é sua representante mais destacada.
“Saudações ao povo chileno, do norte da Patagônia e do mar até a cordilheira”, iniciou seu discurso Loncón, de 58 anos, doutora em Linguística e professora de Letras na Universidade de Santiago, nascida em uma comunidade humilde de Araucanía, na parcela mais ao sul daquele país comprido, imprensado entre o Pacífico e as montanhas nevadas. Essas primeiras palavras de Elisa Loncón foram proferidas, inicialmente, em mapudungún, a língua de sua etnia, e também em castelhano. Com o território devidamente demarcado, ela continuou, dessa vez apenas em espanhol. “Esta força é para todas as pessoas, para todos os setores e regiões, para todas as nações originárias que nos acompanham, para todas as organizações de diversidade sexual. Esta saudação é para as mulheres que caminharam contra qualquer sistema de dominação.” A dirigente da Constituinte recém-empossada afirmou que o órgão que vai presidir “transformará o Chile em um país intercultural”. Ela também deitou um olhar sobre as causas defendidas pelos povos indígenas, como o cuidado com a “mãe terra e das águas”. “Este sonho é o sonho dos nossos antepassados. É possível, irmãos, irmãs, colegas, refundar o Chile”, garantiu ela. Pacha Mama agradece.
Assista no link abaixo ao discurso de Elisa Loncón na Assembleia Constituinte do Chile, no dia 4 de julho de 2021.
“Há alguns anos, teria sido impossível imaginar a eleição de uma mulher mapuche como presidente de uma convenção constitucional no Chile. O país já teve uma presidente (Michelle Bachelet), mas a etnia é uma questão crucial no país”, afirmou ao jornal O Globo David Altman, professor da Universidade Católica do Chile.
Já para o professor do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP e colunista da Rádio USP Pedro Dallari, a escolha de Elisa Loncón para a presidência da Assembleia Constituinte chilena alcança um aspecto ainda mais amplo do que as estreitas fronteiras do país. “A escolha da líder indígena mapuche para presidir a Constituinte do Chile está em sintonia com um aspecto de renovação da democracia no mundo contemporâneo, que é a busca da maior legitimidade para as instituições por meio da incorporação da diversidade”, afirma ele. “Assim, a promoção das culturas originárias e seus representantes, como se vê neste caso, se alinha à defesa da igualdade racial e de gênero, à proteção da liberdade de orientação sexual e a tantas outras perspectivas relacionadas à diversidade”, garante Dallari.
Culturas originárias
Essa maior representatividade das culturas originárias no mundo globalizado – entre a de outras –, à qual se refere Pedro Dallari, ainda é algo pouco usual na América Latina. Vem mais em situações esparsas, pontuais, do que necessariamente a partir de um projeto mais amplo de inclusão social. O ex-presidente boliviano Evo Morales, da etnia uru-aimará, e a guatemalteca da etnia quiché-maia Rigoberta Menchú, Prêmio Nobel da Paz em 1992 pela defesa dos direitos humanos, principalmente dos povos indígenas, são alguns dos pouquíssimos exemplos que a América Latina pode apresentar. No Brasil, este quadro ainda precisa ser muito amplificado. O País teve, em finais do século passado, um deputado federal indígena, o cacique Mário Juruna, que acabou sendo mais tratado como “pitoresco”, com seu gravador na mão “para registrar o que o homem branco falava”, do que com a atenção merecida. Há, claro, líderes que chamam a atenção do mundo, como o cacique umoro Raoni, hoje com 91 anos, Ailton Krenak e, hoje com mais relevância, Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – ela chegou a ser candidata à Vice-Presidência do Brasil na chapa de Guilherme Boulos nas eleições de 2018 –, e a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR). Mas ainda há um caminho que precisa ser percorrido e bem pavimentado para levar ao protagonismo que essas falas merecem.
Mesmo o Chile, que agora comemora a presidência da Constituinte de Elisa Loncón, teve um caminho de quase meio século para percorrer até chegar a este momento histórico. Desde o bombardeio do Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973 – que levou ao suicídio o presidente socialista Salvador Allende, substituído no poder pelo carrancudo Pinochet com sua ditadura sangrenta e que legou ao país, em 1980, a Constituição que começa a ser, com as 50 emendas que recebeu ao longo dos anos, coisa do passado –, indo pela campanha do “No”, em 1988 – de acordo com as disposições transitórias da Constituição, o triunfo do “Não” implicava a convocação de eleições democráticas conjuntas de presidente e parlamentares para 1989, que levaram ao fim da ditadura e ao início do período da transição para a democracia –, até a redemocratização plena, o percurso foi tortuoso.
E esse longo trajeto que levou uma índia mapuche a uma liderança significativa inédita no país passa, necessariamente, pelas manifestações populares de 2019, que fizeram do Chile um caldeirão em ebulição assustadora. As vozes pouco ouvidas pelo governo de Sebastián Piñera falaram alto nas ruas – na verdade, gritaram até serem atendidas. E foram, obrigando o presidente a chamar uma Assembleia Constituinte para criar um novo caminho político, econômico e social para o país. E entre essas vozes estava justamente a de Elisa Loncón.
Nascida na comunidade mapuche de Lefwelan, na província de Malleco, e oriunda de uma família pobre – sete irmãos e um pai que nunca teve condições de estudar –, Loncón cresceu em um ambiente em que a cultura originária de seu povo tem um força social considerável – tão considerável quanto as tensões pela propriedade de terras, tiradas dos indígenas pelo Estado. Foi nesse cadinho cultural e político que ela se criou e abriu caminhos, primeiro se formando professora – não sem dificuldades, já que precisava percorrer a pé oito quilômetros de sua casa até a escola – e depois fazendo estudos de pós-graduação no México, na Holanda e no Canadá. Mas sem abandonar, jamais, suas origens e as bandeiras levantadas pelos povos originários – ainda maiores e mais emblemáticas do que aquela que segurou no dia de sua posse. Elisa Loncón é também coordenadora da Rede pelos Direitos Educacionais e Linguísticos dos Povos Originários do Chile – o que torna as primeiras palavras de seu discurso, ditas em sua língua original, ainda mais representativas. Porque, nesse momento de união inédita e pluricultural, o que Elisa Loncón precisa é “muita força e que a luta continue”, como aconselhou o mapuche Daniel Antigual no dia da posse. Ou, em mapudungún: Harto newen, Amulepe taiñ weichan.
Do Jornal da USP